Nacional

O processo de descentralização na área da saúde não quebrou com a lógica de o governo central manter totalmente o controle e as rédeas do repasse de recursos. Configura-se, assim, muito mais um processo de desconcentração da execução das ações de saúde do que de efetiva descentralização

Enquanto na década de 70 o tema dominante entre os militantes do setor da saúde era o da condenação do processo então vigente de privatização do setor, promovido pelos militares e a conseqüente defesa da estatização da saúde, com ênfase na saúde comunitária e no sanitarismo, os temas predominantes nos anos 80 consistiram na formulação de propostas de organização institucional do setor, tendo seu modelo pilar (resumidamente, o do SUS) sido sacramentado na famosa VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) e instituído oficialmente a partir da Constituição de 1988.

Esses temas centrais eram então trabalhados e debatidos a partir de alguns pressupostos que prevaleceram até o início dos anos 90. Dentre eles, o principal consistia em confundir o público com o estatal. Isso significava, em conseqüência, a defesa sem restrições do setor estatal como produtor de serviços de saúde, tendo como seu oposto o setor privado. Era o embate do bem contra o mal; noutros termos, do mercado versus Estado.

O segundo desses pressupostos consistia em conceber o Estado como o grande agente modernizador da sociedade. Vale dizer, consistia na permanência da concepção desenvolvimentista de Estado, perfeitamente coerente com o pressuposto do qual se partia: a confusão entre o público e o estatal.

O terceiro residia na concepção de que o "local" – o nível municipal – é o âmbito de governo por excelência para a promoção de um novo modelo de atenção à saúde. Em resumo, de que a descentralização é um processo pilar na reforma da saúde, aqui também se confundindo descentralização e democratização da saúde como processos intrínseca e automaticamente vinculados entre si. Em resumo, que tudo que é "small is beautiful".

Um quarto pressuposto residia no "controle social", traduzido na VIII Conferência Nacional de Saúde e na Constituição de 1988 nos famosos conselhos de saúde, em todas as esferas de governo. Note-se, no entanto, que a própria expressão "controle social", quando no interior do ideário das concepções então reformistas da saúde, vinha ainda marcada pelo pressuposto (o quinto) do Estado versus sociedade. Tanto assim é, que os conselhos têm caráter deliberativo e deveriam em tese definir as diretrizes das políticas a serem implementadas pela respectiva pasta do Executivo...

Os anos 90 foram marcados na área da saúde pelos desafios e constrangimentos à implantação do SUS enquanto sistema de saúde único, público, descentralizado, hierarquizado, universal e equânime, com controle social. No entanto, nessa década houve uma aceleração do processo de desmonte do Estado (governo Collor), seguida por um governo orientado exclusivamente pela estabilização econômica e o ajuste estrutural da economia. Mutatis mutandis, a década de 90 é marcada, talvez de forma mais explicitamente contundente do que nunca, pelo que tenho denominado de "a ditadura dos economistas sobre a área social, aí incluída a da saúde".

Os pressupostos para a reforma sanitária, no entanto, continuam os mesmos dos anos 80, "adaptados" à nova conjuntura. Quais são essas "adaptações", ou releituras? Na verdade são poucas, e dentre elas somente uma especialmente significativa e que representou um avanço na agenda do debate: o abandono da confusão entre "público e estatal". Talvez esteja aí parte do grande avanço nas concepções – e somente nelas – que orientam as propostas nos anos 90, com a sua projeção para o novo século.

De fato, no final dos anos 90 inicia-se uma série de estudos e propostas que têm por objetivo melhor investigar a relação entre o estatal e o privado, vale dizer, revisitou-se a antinomia prevalecente na década anterior do Estado versus mercado. A ênfase então nos estudos e propostas para o arcabouço institucional do setor passa a ser dada às dimensões da avaliação dos serviços e das novas formas de gestão dos sistemas locais e dos serviços de saúde. A agenda portanto dos anos 90 é composta, dentro do movimento reformista da saúde, pelas questões do custo/efetividade, de uma nova racionalidade estatal (custo/efetividade/eficiência).

No final dessa década observa-se, assim, um deslocamento das temáticas centrais debatidas tendo em vista, de um lado, o desafio e os descaminhos da construção do Sistema Único de Saúde, e de outro, as evidências que essa construção vai trazendo à luz, ganhando destaque o crescente estrangulamento financeiro do setor e o impacto das crescentes desigualdades sociais sobre o perfil das necessidades de saúde da população brasileira.

Entra-se assim no novo milênio com essa mesma pauta que em última análise, desde os anos 90, sobretudo a partir de sua segunda metade, revela-se essencialmente reativa ao processo em curso das políticas de saúde, com um perfil extremamente baixo de potencial propositivo. De fato, os temas e as questões em curso não sofrem significativas mudanças; no entanto, talvez estas residam mais nos processos políticos em curso no que diz respeito não só à implementação do SUS, mas também no que ela vem provocando em termos de mudanças da racionalidade do sistema de saúde frente às diretrizes centrais de universalidade, integralidade e eqüidade da atenção à saúde que nortearam a construção do arcabouço institucional do sistema expresso na Constituição de 1988.

Essa mudança no que diz respeito à Reforma Sanitária brasileira, no entanto, é extremamente significativa. Enquanto nos anos 70, 80 e início dos 90 a estratégia política adotada consistiu "na ocupação de postos estratégicos do aparelho de Estado" pelos quadros do movimento, e a proposta política era a de se fazer uma reforma do sistema de saúde "por dentro do Estado", a partir dos primeiros anos da década de 90 o cenário político mudou: tratava-se agora não mais da possibilidade de se ocupar diretamente esses postos, mas de se assumir a tarefa de assessoria ao Ministério da Saúde, ao mesmo tempo que o eixo central de promoção das mudanças passa a ser o nível local, vale dizer, os municípios.

Retoma-se, assim, sob uma nova ótica a questão da descentralização. E nesse processo, em termos da composição político-partidária do movimento sanitário, promove-se uma nova divisão de trabalho: quando nas décadas de 70 e 80 a hegemonia do movimento sanitário era claramente do PCB, aqueles postos executivos estratégicos eram ocupados por seus quadros, cabendo aos quadros do PT fundamentalmente ocupar postos eletivos no Legislativo. A partir do final dos anos 80 evidencia-se claramente uma inversão: cargos de assessoria e posições estratégicas de segundo plano, à sombra do foco central do palco político-administrativo, são ocupados por quadros do próprio PCB, ou com origem nele, enquanto cargos do Executivo municipal passam a ser crescentemente ocupados por quadros petistas. A esse movimento corresponde uma segunda evidência: o deslocamento do eixo central do locus privilegiado de mudanças do setor da saúde para o nível local, não mais no sentido anterior do "small is beautiful", mas no sentido de que se a descentralização não traz consigo automaticamente maior democratização da saúde, é o nível local que de fato vem demonstrando maior capacidade de inovação na gestão do SUS.

É nesse novo contexto que emerge a questão da descentralização, curiosamente num momento em que no conteúdo da agenda sanitária ela vem sofrendo uma crescente perda de destaque a favor de temas como o da qualidade de vida, da eqüidade, e das "cidades saudáveis", dentre outros.

Nacional e local

A partir dessa trajetória é que se deve discutir os impasses em que o setor da saúde se encontra hoje. Isso porque se eles envolvem, como principal ator, o governo central, este é um setor que na área social conseguiu formular uma proposta institucional mais bem acabada, datando suas principais diretrizes já do início dos anos 80. Não se trata, portanto, de um processo em que o ator central não se relaciona com os demais, sejam eles de outros níveis de governo, sejam dos assim denominados "quadros sanitários", sejam da sociedade.

No entanto, nessa interlocução o predomínio na definição das políticas de saúde é quase absoluto do nível central de governo. E se isso não é dessa atual administração, ela simplesmente vem levando adiante o que o próprio movimento sanitário brasileiro praticou: o Estado nacional ditando as normas inclusive da descentralização da saúde, na medida que ele é tido como o grande agente modernizador da sociedade.

Não obstante, embora sempre muito debatida, foi pouco equacionada – sobretudo dada a estratégia adotada pelo movimento sanitário – a questão do financiamento da saúde. De fato, é próprio do ideário do movimento sanitário que deve ser o Estado o grande financiador, cabendo discordâncias no que diz respeito a dois problemas: a origem dos recursos e as modalidades de repasse para as demais esferas de governo.

No que diz respeito à primeira questão, a discussão que marcou a década de 90 e continua (embora bastante menos acentuada diante da aprovação da PEC/96) é menos a da necessidade de fontes estáveis de financiamento do setor – sobre o que existe um consenso – e mais e centralmente a da origem dos recursos. Vale dizer, tratando-se de uma sociedade tão profundamente desigual e injusta, fica evidente a necessidade da natureza redistributiva do SUS, o que implica ser financiado por recursos fiscais da União, nos moldes dos melhores modelos de proteção social típicos do welfare state. A esta perspectiva defendida pelos assim chamados pelos atuais governantes de jurássicos ou neobobos contrapõe-se uma política governamental que nada mais faz do que reproduzir a prática de décadas para a área social: buscar novos tributos específicos para financiamento do setor, como é o caso do Cofins e mais recentemente da CPMF. Não nos esqueçamos que o financiamento da saúde no interior do sistema previdenciário brasileiro assim surgiu já nos anos 20, e foi reafirmado nos anos 30 com os IAPs de Getúlio Vargas, e posteriormente com os militares nos anos 60... Neste ponto, portanto, nada de novo no horizonte.

O que há de novo é o fato de no Brasil a extensão dos direitos sociais ter sido efetivada, na maior parte dos casos, em períodos de crescimento e expansão econômica, quando então isso significava possibilidade de criação de novos postos de trabalho e portanto de aumento da arrecadação previdenciária e fiscal, o que não é o caso hoje. O que se tem no presente é exatamente como se fosse o negativo do passado: um contexto de recessão ou, quando muito, baixo crescimento econômico, em que se perdem postos de trabalho e oportunidades de fontes de recursos para sobrevivência, sendo que mesmo o crescimento econômico não vem mais acompanhado de crescimento de oportunidades de trabalho (para não dizer de emprego), num crescente processo de desigualdade social, em que a situação de pobreza não é mais a da marginalidade dos anos 70 e parte dos 80, mas a da condenação à exclusão social. Recursos para a saúde são cada vez mais submetidos aos determinantes do modelo econômico vigente e portanto cada vez mais dependentes de fontes extra-orçamentárias.

Por outro lado, o problema da saúde não é só o de quanto se gasta, mas o de como e o que se financia. E neste quesito há duas considerações a serem feitas: a primeira diz respeito ao fato de que o processo de descentralização em prática não quebrou com a lógica de o governo central manter totalmente o controle e as rédeas do repasse de recursos, seja em termos da definição de sua quantidade, seja de definição das modalidades através das quais eles são repassados. Configura-se, assim, muito mais um processo de desconcentração da execução das ações de saúde do que de efetiva descentralização, com atribuição aos estados e municípios de plena autonomia na definição, implementação e controle das suas respectivas políticas de saúde. Evidencia-se uma recorrente e crescente normatização desse processo de delegação tutorada de tarefas e responsabilidades às esferas subnacionais de governo sob tutela estrita do nível central, haja vista as sucessivas Normas Operacionais Básicas.

A segunda consideração diz respeito a um traço da modalidade de repasse de recursos do setor público estatal nacional para os setores públicos estatais subnacionais, instituída já na década de 80, e que significa o Estado tratar da mesma forma os setores privado e público estatal de saúde, isto é, por meio de convênios baseados na produção de serviços, prevalecendo assim a quantidade sobre a qualidade. Isso foi instituído com as AIS e o Suds e prevalece até os dias atuais.

Com essas modalidades de repasse o nível central passa a contar com mecanismos que lhe possibilitam exercer absoluto controle sobre a magnitude do gasto em saúde, o que é perfeitamente condizente com a submissão dos gastos sociais aos ditames do modelo econômico. E ao mesmo tempo deixa a pressão da demanda sobre os governos municipais, uma vez que o que se verifica nesse processo é o crescente distanciamento do nível estadual frente à crise fiscal em que se encontra, muito mais grave do que a crise dos municípios, que bem ou mal foram levados a fazer sua reforma fiscal.

Como conseqüência, o que se tem atualmente é tanto uma submissão mais explícita da saúde, em termos de recursos financeiros, às políticas econômicas em vigor, quanto um reforço da regulação do governo central sobre as demais esferas no que diz respeito aos destinos políticos do setor. Não se supera, portanto, a tensão e a disputa entre o central e o local e promove a competição entre os municípios para obtenção de recursos.

Rumos

As tendências apontam para pelo menos três direções, nem todas tão interessantes do ponto de vista da efetiva concretização do direito à saúde.

A primeira delas diz respeito ao fato de continuar prevalecendo um modelo dual de saúde: o sistema público-estatal e o sistema supletivo de assistência médica, dividindo assim grosso modo a sociedade entre os que têm e os que não têm acesso ao mercado. Associada a isto, registra-se a incapacidade demonstrada pelo Estado, com as políticas nacionais que vem desenvolvendo, de implantar um modelo integral à saúde no que diz respeito ao acesso da população aos distintos níveis de atenção: primária, secundária e terciária, para não se falar da quaternária.

De fato, o que se verifica é uma enorme investida do Ministério da Saúde na universalização da atenção primária, por meio de Programas de Agentes Comunitários de Saúde e Saúde da Família. No entanto, em que pesem as virtudes desses programas, de fato eles não contam com uma efetiva retaguarda dos níveis de maior densidade tecnológica de atenção à saúde, uma vez que não vêm sendo investidos recursos no setor de infra-estrutura hospitalar de nível secundário, por exemplo. Lembremo-nos ainda que se tais programas implicam uma potencial racionalidade na demanda da população pelos serviços de saúde, também trazem consigo um aumento dessa demanda na medida em que captam na rede de serviços um amplo segmento da população até então fora dela.

Mas por outro lado também vem se verificando significativa investida do Ministério sobre a regulação do sistema supletivo de assistência médica e da produção de medicamentos, o que acaba se configurando numa estratégia governamental de atuar nos dois extremos da pirâmide assistencial: a base, representada pela atenção primária (produzida pelo setor público estatal), e o ápice, representado pelo sistema supletivo, faltando assim o nível intermediário de atendimento, mas também não sendo enfrentada a questão do acesso universal da população à satisfação das suas necessidades de saúde.

A segunda direção diz respeito a um processo "invisível" porém efetivo e extremamente perverso de mudança da natureza pública do setor estatal de saúde. E não se trata aqui somente da sua parte mais imediatamente presente na acalorada discussão das "fundações" e da "dupla fila". Trata-se de um processo insidioso que diz respeito ao transplante da racionalidade da administração privada (leia-se do mercado) para o interior dos serviços estatais de saúde. E isso tanto no que diz respeito ao cálculo do custo/efetividade dos distintos tipos de investimento – portanto na definição das diretrizes e prioridades políticas na saúde – como na forma como vem sendo equacionada a tão propalada busca de eficiência do setor estatal. Em conseqüência, verifica-se um pipocar de experiências de novas formas de gestão, desde a do PAS em São Paulo, com as conseqüências desastrosas já conhecidas, até as modalidades de organizações sociais e autarquias, todas elas privilegiando a agilidade administrativa frente ao engessamento das regras da administração direta, em detrimento da salvaguarda da eqüidade do acesso. De fato, o que se comprova em algumas delas, como no caso do PAS, e se infere em várias outras, é que essas "reformas na gestão dos serviços" trazem consigo um potencial vigoroso de imprimir outro tipo de seletividade no acesso da população aos níveis de atendimento que utilizam maior densidade tecnológica e que portanto são mais onerosos para os cofres públicos.

A terceira direção consiste na evidência de um processo de institucionalização do controle social. Os inúmeros estudos a respeito das experiências dos conselhos de saúde trazem fortes evidências de que se em si representam um passo adiante enquanto existência de um canal institucional de participação, na prática não vem garantindo um efetivo controle público sobre essa política setorial. E isso por dois motivos básicos: a tendência à profissionalização da participação popular e dos sanitaristas, que resistem à formação de novos quadros; e o fato de, na lógica do arcabouço institucional e das contingências das políticas de saúde apontadas, caberem a essas instâncias, em que pesem na letra serem deliberativas, na maior parte das vezes o mero papel de legitimação das decisões tomadas e implementadas pelo Executivo (dos três níveis de governo).

No entanto, não resta a menor dúvida de que o potencial inovador e a criatividade que vêm revelando os municípios na gestão da saúde significam que a luta não está perdida. Ao contrário, apontam para o PT a tarefa de construir este país a partir, uma vez mais, das suas bases, vale dizer no caso, de prestar real e especial atenção às gestões municipais. Afinal, não nos esqueçamos que na avaliação das experiências de governos locais tidas como vitoriosas, em sua grande maioria, estas pertencem a governos petistas...

Amélia Cohn é socióloga, pesquisadora do Cedec e docente do Depto de Medicina Preventiva/FMUSP.