Política

As relações entre moral e política podem ser fundamentadas num plano puramente histórico. As relações entre ética e política têm outro estatuto, pois exigem, para a sua fundamentação, argumentos ontológicos, sem as mediações da vida histórica

O filósofo José Arthur Giannotti abriu um debate extraordinariamente importante, quando, escrevendo sobre moral e política (no âmbito temático da corrupção de Estado e suas relações com a política atual), defendeu claramente um certo convívio "negativo" com a corrupção não grave. Considerou este convívio uma fatalidade do projeto democrático e se dispôs, de certa forma, a "entender" as concessões da ação política "amoral" – desde que não imoral – voltadas para um bom objeto, ou seja, melhorar o Estado e os padrões da socialidade política.

A elaboração de Giannotti visava honestamente a justificar a sua aprovação das alianças de Fernando Henrique Cardoso, em crise, desde que os seus principais líderes no Congresso mostraram-se enredados em atos de vandalismo contra a moralidade pública. Seu fundamento teórico mais importante é a observação de Kant, no seu Tratado sobre a Paz Perpétua, quando o filósofo assevera que "a razão dá seu aval à ação injusta, desde que aja tendo a justiça no horizonte do seu comportamento".

É das relações entre ética e política que derivam as relações entre moral e ação política. Aquelas são categorias abstratas, estas são determinadas historicamente. Estas compõem uma particularidade concreta, estruturada por dois conceitos articulados no presente: a moral, expressão das possibilidades da ética, na história em curso, articula-se com uma ação política atual, que debate finalidades, projetos, programas.

As relações entre moral e política são, portanto, as relações que estamos vivendo empiricamente e podem ser fundamentadas num plano puramente histórico. As relações entre ética e política têm outro estatuto, pois exigem, para a sua fundamentação, argumentos ontológicos, "enunciados diretos sobre o ser", sem as mediações das exigências da vida histórica. As relações entre ética e política e as relações entre moral e política, portanto, estão situadas em níveis distintos de análise. O vínculo entre ética e política é um vínculo entre categorias de um território abstrato, no qual ambas as categorias se contemplam a partir de esferas separadas. Elas têm suas leis próprias e seus mandamentos abstratos específicos, todos verificáveis sem as "impurezas" da história: elas se cortejam, integram-se e separam-se no "pensado". E o fazem para que melhor assumam as suas identidades e possam então se explicitar de forma cada vez mais plena: para iluminar a vida vivida, para ajudar os impasses da história, para poder orientar as relações entre moral e política.

Já a relação entre moral e política está na cotidianeidade. Está no curso das relações sociais reais, num espaço social e histórico concreto, logo prenhe das vontades e paixões humanas. São vontades e paixões articuladas por projetos de pessoas reais e por compromissos necessários, cujas exigências vêm da centralidade do presente para o agora já. Moral e política, ao contrário da relação entre ética e política (que não está determinada por nenhuma tensão teleológica), só podem explicitar-se plenamente ao integrarem-se no mundo real: as relações entre moral e política exigem juízos mínimos para o agora vivido.

Sou obrigado a dizer, por exemplo, se aceito um "pequeno ato de corrupção" para viabilizar o projeto neoliberal, ou se aceito um outro pequeno ato de corrupção para desmobilizar um golpe militar em andamento. O elemento finalístico é que, ao mesmo tempo, separa e unifica moral e política. Separa: sou obrigado a avaliar concretamente a moralidade do meu ato político, segundo um processo social em andamento e faço-o por meio de determinados valores que estão fora da política. Unifica: posso sustentar, por exemplo, que a própria pequena corrupção (comprar com dinheiro público uma informação reservada para contra-arrestar um golpe militar) é, ela mesma, uma ação radicalmente política, logo, a sua suposta amoralidade ou imoralidade pode dissolver-se na finalidade justa.

Ética e política, por outro lado, estão separadas pela radicalidade que só o "pensado" pode permitir. E experimentam relações que só podem ser estabelecidas respeitando os princípios informadores de cada território, que ambas habitam separadamente. Esta separação entre ética e política, portanto, é uma separação que é, ao mesmo tempo, ponto de partida metodológico e produto da vontade humana. Esta quer refletir sobre o mundo "acima" da história: para vê-la melhor, sem as paixões originárias das disputas de projetos e de sociedade.

Moral e política também estão separadas, mas permanentemente em conúbio pela ação real dos homens na busca dos seus projetos. É como se a ética, tornada vida moral, tenha se "degradado" no mundo "profano" para poder existir. Projetos de poder e glória, de sociedade e Estado, passam a vincular-se ao "agora" da história, por meio de uma consciência dos sujeitos que têm finalidades e enfrentam movimentos imprevistos e traiçoeiros. Só assim a teleologia sai do âmbito da teoria e consegue manter-se viva como história.

Aquilo que, no plano da "filosofia pura" (ética e política) articula-se só a partir de abstrações, no plano da "filosofia da política" (moral e política) – as abstrações prestando "serviços concretos" – articula-se por uma racionalidade empírica, buscando fins plenamente verificáveis. Estes é que se constituem como parâmetros da mera "amoralidade" ou da plena "imoralidade" dos juízos em disputa. Um exemplo concreto: mentir para proteger o torturador é diferente de mentir para não proteger o torturador. O juízo sobre a mentira, em ambas as hipóteses, vai definir-se por uma teleologia: proteger ou não proteger o torturador. A primeira mentira é imoral, a segunda pode ser amoral, mas não é imoral, pois ela quer proteger um bem maior, a intangibilidade do corpo e do espírito, o uso não instrumental do corpo (Kant).

Aqui podemos situar melhor a questão da pequena corrupção, ou da corrupção tolerável para uma determinada finalidade. Ela se destina a quê? Ora, se Giannotti parte do pressuposto que o governo FHC quer modernizar o Estado, para torná-lo mais democrático e assim reduzir a força da corrupção na política, a pequena corrupção, que atrai determinadas alianças, justifica-se pelo seu fim. Tudo segundo o juízo kantiano: "aja tendo a justiça no horizonte". Mas, se a pequena corrupção é apenas um episódio do processo de privatização do Estado, de expropriação de direitos duramente conquistados pela maioria, para facilitar o ciclo expansivo do capital financeiro, assim mesmo ela se justifica? Parece certo que não.

Voltamos assim a Kant, o mesmo da Paz Perpétua, que diz: "a verdadeira política não pode fazer nenhum passo sem antes ter prestado homenagem à moral, embora a política seja por si mesma uma arte difícil, não é contudo sua união com a moral absolutamente nenhuma arte, pois esta corta em dois o nó que aquela não consegue destrinchar, assim que ambas entram em conflito uma contra a outra". A posição do sujeito, a respeito deste conflito, só pode se realizar mediada por valores morais, constituídos historicamente.

Defendo, pois, que Giannotti coloca uma questão verdadeira e importante ao interpelar abertamente a interdependência dialética necessária entre fins e meios. Mas os fins, a que a sua equação teórica pretende fundamentar, é que tornam a tolerância com a pequena corrupção totalmente imoral (considerando-a pequena para os efeitos deste debate).

Uso uma formulação do próprio filósofo, que está ao final do seu artigo (caderno "Mais", da Folha de S. Paulo de 24 de junho de 2001, pg. 15): a aliança que ele quer justificar e pretende defender com seus argumentos "não contém nenhuma negatividade em si mesma", é apenas um pequeno elo de um sistema de poder. Um sistema que é – sustento – necessariamente corrupto e corruptor para que possa manter sua sobrevivência. Esta afirmativa não é originária de nenhuma irracionalidade, mas de um juízo verificável empiricamente e deduzido, não de um futuro utópico, mas de um presente trágico: construído precisamente pelas tolerâncias e usos das pequenas e grandes corrupções.

Tarso Genro é prefeito de Porto Alegre (PT-RS).

*Texto originalmente publicado na newsletter Brasil 21, nº 2, julho de 2001