Sociedade

Em entrevista, o jornalista Juca Kfouri trata do submundo do futebol revelado em duas CPIs

Inegavelmente o futebol brasileiro vive o pior momento de sua história. Dentro e fora do campo. Má fase técnica, sem dúvida. Mas o pior está mesmo nos bastidores. Clubes à beira da falência, desorganização total, corrupção, escândalos envolvendo jogadores, técnicos, empresários e principalmente dirigentes. Muitas dessas coisas não são novas em nosso futebol, é verdade. Talvez agora estejam vindo mais à tona devido em boa parte ao clima, que envolve o país, de luta contra a corrupção, que levou a que se criassem duas CPIs, uma na Câmara e outra no Senado, para investigar o futebol brasileiro. Mas também em boa medida devido ao surgimento de uma nova safra de jornalistas, alguns nem tão novos assim, que vêm botando a boca no trombone e levando ao conhecimento do grande público as mazelas até então encobertas. Entre estes, um dos que mais se destacam é Juca Kfouri. Articulista da revista Lance, comentarista da Rede TV! e apresentador de um programa diário de esportes na CBN, Juca é um dos mais atuantes nessa área. Em entrevista exclusiva, ele nos revela alguns dos muitos problemas que cercam o futebol brasileiro.

O que as CPIs do futebol, na Câmara e no Senado, têm revelado?

Juca Kfouri - Esse momento é exemplar no sentido de trazer à tona, com a ajuda da imprensa, tudo que andou escondido e que favoreceu essa grande pirataria em que o futebol se transformou, principalmente do final dos anos 80 para cá.

O futebol brasileiro ainda está na fase pré-capitalista, de acumulação primitiva. Está na fase da pirataria. O que temos no controle do nosso futebol são piratas que tratam de saquear, sem nenhum prurido, sem nenhum plano. São incapazes até de perceber que o saque que fazem agora é muito menor do que poderiam fazer paulatinamente, se tivessem um projeto.

Acho, no entanto, que estamos às portas de termos um projeto capitalista de gestão do futebol. A questão que está posta é de que maneira isso vai se dar. Se vamos repetir o modelo do país, ou seja, se vai ser uma forma selvagem de apropriação do negócio do futebol, ou se vai se poder fazer isso de alguma maneira um pouco mais civilizada, sem que se jogue fora a obviedade que é a transformação do futebol em negócio. E o negócio será tanto melhor quanto mais exacerbar a paixão do torcedor, porque não se pode tratar o futebol sob a ótica lógica, racional e fria. É necessário trabalhar a paixão, que é o que faz o futebol ser o que é.

Como caracterizar esse período que você chama de pré-capitalista?

É o assalto, é a ausência de preocupação em fazer com que o futebol progrida no Brasil, é a falta de preocupação em ter uma organização que leve o torcedor ao estádio e que mantenha os ídolos no país. Porque para a satisfação pessoal desses poucos piratas que tomaram conta do futebol não é preciso que ele gere grande volume de dinheiro. O que ele gera, que é incomparavelmente menor, por exemplo, do que se gera na Europa, é mais que o suficiente para alimentar os poucos que o tomaram de assalto.

Sempre digo, sem medo de errar: a superestrutura do nosso futebol vai ser a última coisa a mudar nesse país, e não é apenas porque ela é conservadora, mais do que isso, ela é extremamente reacionária. Os dirigentes não querem mudar porque sabem que a mudança mata a galinha dos ovos de ouro deles. Qualquer transformação no sentido da profissionalização, por exemplo, do dirigente brasileiro, é o fim deles. Portanto, não interessa.

E por que não interessa?

Em qualquer seminário sobre futebol, seja de jornalistas, seja de atletas, seja de dirigentes, se diz: "o calendário do futebol brasileiro é um horror, precisa mudar. Os campeonatos do Brasil, do jeito que são feitos, não podem dar certo!" É consensual que se tem que mexer. E por que não se mexe? Porque alguém ganha com isso. Quem? Esses caras que foram ouvidos pela CPI. Apareceram coisas na CPI que até a imprensa já não está divulgando muito, porque são práticas comuns. Por exemplo, o depoimento do presidente da Federação Mineira de Futebol, Elmer Guilherme. Perguntaram a ele: "o que é a empresa FW?". Ele respondeu: "não sei". E olhou para o irmão, que o estava assessorando no depoimento. O irmão fez um gesto e ele corrigiu: "Ah, me lembrei, essa empresa é do meu filho com um sócio; é um escritório de contabilidade". Aí perguntaram: "é o escritório que faz a contabilidade da Federação?" "É sim, é exatamente isso, por coincidência". "E esse seu filho é o diretor financeiro da Federação Mineira?" "É, sim senhor". "E o senhor acha isto ético?" "Não, não acho ético." "E o senhor acha moral?" "Não, não acho moral." Esse é o presidente da Federação Mineira...

Outro dia foi lá o ex-presidente do Santos, Samir Abdul-Hak, aliado do Pelé. E ele não sabia explicar por que o mesmo jogador, o Lúcio, tinha três registros de salário. Num deles ganhava R$ 60 mil, no outro, R$ 120 mil e no terceiro, R$ 180 mil. Não sabia explicar por que o dinheiro da compra do Caio, em vez de ir para o time italiano que o vendeu, parte foi para fulano, parte para sicrano, outra para beltrano. E assim acontece com o presidente do Vasco, com o presidente do Botafogo, com o do Corinthians.

Há um cidadão, chamado Ariberto dos Santos Pereira Júnior, contador da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Descobriu-se que ele é provavelmente o maior laranja do esquema da CBF. Pediu-se a quebra do seu sigilo bancário e fiscal. Ele contratou um dos escritórios de advocacia mais caros do Rio. Um funcionário modesto entra no STF com um mandado para não ter a quebra de sigilo! Ele é o fio da meada. E se vai descobrindo como essa teia foi construída: a lavagem de dinheiro no exterior etc. Assim se criou essa casta que está aí, que tomou conta do futebol brasileiro do final dos anos 80 para cá. Essa é a gente que se dá bem nessa história. Isso tudo está no relatório da CPI.<--break->Por que você aponta o final dos anos 80 como um marco?

Porque é quando o João Havelange consegue retomar o controle do futebol brasileiro por intermédio do seu genro Ricardo Teixeira, que ganha a eleição para a CBF.

O modelo que temos no Brasil é, sem tirar nem pôr, o que o Havelange instituiu na Fifa em 74. O Havelange tomou a Fifa num momento particularmente importante do ponto de vista das comunicações. Isso ninguém pode negar, ele teve essa sacada. Ele pegou a Fifa no momento da "aldeia global", quando a Copa do Mundo começou a ser transmitida por televisão para o mundo inteiro. Ele se associou a uma empresa de marketing esportivo chamada ISL, "por acaso" dos mesmos donos da então maior empresa de material esportivo do mundo, a Adidas. Juntou-se à Coca-Cola e montou seu modelo de controle do futebol mundial.

Ele tinha largado a CBF, que então era CBD (Confederação Brasileira de Desportos), em má-situação, forçado pela ditadura. O governo Geisel exigiu que ele fosse embora, pôs no lugar dele o almirante Heleno Nunes. Ele só não foi preso porque seria ruim para a imagem do Brasil no exterior. Mas a ditadura tinha diagnosticado o tamanho do rombo que ele tinha dado na CBD. Em 89, ele conseguiu retomar o controle do futebol brasileiro por intermédio do genro. Ricardo Teixeira pôs em prática aqui o mesmo modelo. Juntou-se à Traffic, empresa de marketing esportivo, em seguida à Nike, depois à Coca Cola, agora à Ambev.

O que fez o Havelange? Em 74, a Copa do Mundo era disputada por 16 países, depois passou para 24, e mais tarde pulou para 32. Com isso, ganhou o colégio eleitoral africano. Qual era o modelo no Brasil? Cento e tantos times no Campeonato Brasileiro. Com isso, Teixeira ganhou as federações do Norte e do Nordeste. Tem sempre a eleição na mão, compra um aqui, outro ali.

Só que hoje, no mesmo momento em que no Brasil estamos vendo essa gente ruir, a ISL quebrou e deixou a Fifa na mão. Quem quebrou a ISL foi uma empresa americana, gigante do marketing esportivo, a IMG. Esta empresa, em 97, fez uma proposta para comprar os direitos do campeonato mundial a partir de 2001. Ela ofereceu à Fifa um bilhão de dólares, por meio de carta aberta, publicada na imprensa. Até então a ISL pagava cerca de US$ 180, 200 milhões por esses direitos. A IMG nem tinha aquele dinheiro e sabia que a Fifa não ia aceitar sua proposta, mas ia ter de dizer para os seus filiados que tinha uma proposta melhor da própria ISL, que ofereceu então US$ 1,2 bilhão. A IMG sabia disso, mas forçou a ISL a fazer uma proposta melhor e quebrar. Dito e feito. Quebraram!

Você acha então que o centro da corrupção no futebol está na relação com a TV, com relação aos direitos de imagem e no marketing esportivo?

Depende do nível em que as coisas se dão. No plano das confederações é no grande mundo do marketing, da venda de direitos para televisão, para patrocínio. No mundo dos clubes é na venda de jogadores. Existe sempre a falácia de que o Brasil não tem como resistir às propostas da Itália ou da Espanha porque, afinal, trata-se de Primeiro Mundo e não dá para competir.

Mas se há uma área na qual o Brasil é "Primeiro Mundo" é no futebol. Por que não somos capazes de gerar no futebol algo equivalente ao que eles geram lá? Porque vendemos o artista em vez de vender o espetáculo. Nós vendemos o Pato Donald em vez de vender o filme do Pato Donald.

E isso porque os predadores que estão aqui não têm nenhum compromisso com a paixão chamada futebol. Não têm nenhum laço que os obrigue a fazer o que o torcedor brasileiro quer. Se um jogador novo é convocado para a seleção, imediatamente alguém lá de fora oferece US$ 10 milhões. Daria para fazer frente, só não fazem porque não querem. Vendem o jogador por aparentes 10 milhões e enriquecem, porque com três jogadores vendidos...

No Brasil, vende-se o futebol para a televisão por cem, na Inglaterra vende-se por dez vezes mais. Se estivéssemos com os estádios lotados, se se vendesse para a televisão pelo valor que o nosso futebol vale... Claro que o comprador dirá: "Só que no campeonato inglês, se o jogo está marcado para começar às 5 horas, ele começa às 5 horas; se o jogo está marcado para dia 18, ele será no dia 18!" Sem dúvida. Aqui, uma mão lava a outra na bagunça. A televisão paga menos, mas o que os dirigentes oferecem é incomparavelmente pior do que os ingleses. Aqui tudo é feito para não fazer frente a nenhuma investida externa. Porque não há o que justifique essa exportação de jogadores aos magotes. A gente podia segurar, mas não faz isso porque o interesse pessoal do cartola que vende se sobrepõe. Por que eles não querem que o clube vire empresa? Porque não querem que haja nenhum tipo de controle externo. Não querem prestar contas!

<--break->E o torcedor, não tem nenhum direito?

Hoje tenho preocupação com a proteção dos direitos do cidadão torcedor brasileiro. Ele tem o direito de saber tudo o que se passa nos bastidores e alguém tem de dizer isso; está sendo roubado, estão lhe tirando uma das suas maiores paixões; estão tirando a possibilidade de ter seus ídolos; não lhe dão o mínimo conforto quando vai ao estádio. Tratam-no feito gado. O que aconteceu em São Januário é apenas um exemplo. Aliás, só não acontece mais vezes porque cada vez menos os estádios lotam. Em cada estádio que lotar no Brasil, hoje, corre-se o risco de acontecer o mesmo que em São Januário. E o torcedor ainda é iludido com essa história de que vamos fazer uma Copa do Mundo aqui...

Como você explica a mudança de atitude do Pelé, que sempre foi crítico a esse esquema e agora se aliou ao Ricardo Teixeira?

O Pelé foi uma das figuras que ajudou a deixá-los de joelhos e na hora H lhes deu a mão. Mas acho que o tiro lhe saiu pela culatra, ele está pagando o preço, a opinião pública dessa vez não engoliu, e eu tenho para mim que ele está sentindo isso.

Acho que algumas coisas são claras. Em primeiro lugar, houve um óbvio acerto de negócios, que se manifesta em dois fatos: o acordo dele para ser garoto-propaganda da PSN, PSN que é Hicks Muse, Hicks Muse que é Traffic, Traffic que é CBF; e, depois de dez anos de litígio em que ele estava processando a CBF, o acordo feito em torno do direito de marketing das figurinhas. Mas qual é a jóia da coroa desse acordo? É a idéia de fazer a Copa do Mundo no Brasil. Porque em torno disso há a necessidade de reforma e de construção de novos estádios, e o grande expertizing da Pelé Sports Marketing é a sua associação com uma empresa inglesa na construção do que se chama hoje de arenas de multiuso.

Há esse lado. Um negocião, claramente. Há o outro lado, que eu suponho, tenho alguma informação e posso fazer uma inferência. O outro lado chegou na turma do Pelé e disse "não vamos nos ferrar sozinhos. Se vocês ficarem nos bombardeando, vamos contar também o que vocês já fizeram. Se ambos nos segurarmos, reintroduzimos vocês no grande mundo dos negócios do esporte no Brasil". É só isso que explica. Porque eu acompanhei durante oito anos, mais ou menos de perto, essa tentativa de levarem o Pelé para o lado deles, e o Pelé resistindo. Eu vi o Pelé perder dinheiro quando assumiu o Ministério dos Esportes, porque abriu mão de fazer propaganda no Brasil, que é com o que ele sempre ganhou mais. Ele foi para o Ministério levado por uma idéia. Viu essa idéia ser traída pelo governo Fernando Henrique tão logo deixou o cargo. Ficou puto, recebeu acenos do Fernando Henrique e devolveu banana. De repente, esse acordo...

Em que consiste o acordo?

O acordo foi feito em março. Ele tinha quatro pontos fundamentais. Primeiro: campeonato brasileiro com 26 clubes. Já são 28. Em segundo lugar, um calendário quadrienal, que era para ter sido apresentado até final de abril e até agora nadaUnknown Object; depois, Copa do Mundo no Brasil em 2010. A Fifa já disse que vai ser na África; e por último a manutenção do fim do passe, como estava previsto na Lei Pelé. Só que a "Lei Áurea" virou a "Lei dos Sexagenários". O que foi publicado na medida provisória é a reconstituição do passe sob nova forma.

Explique como a "Lei Áurea" virou a "Lei dos Sexagenários".

Anteriormente, o jogador não podia mudar de emprego sem a anuência do seu empregador, que detinha um instrumento chamado passe, que teria de ser vendido para que o atleta pudesse mudar de clube. Agora não existe mais esse instrumento, porém existe uma multa rescisória que equivale a 200 vezes a média anual do salário do atleta. Se isso não é uma forma de escravidão, de manutenção do vínculo, eu não conheço outra. Porque é inteiramente desproporcional o tamanho da multa. Então o passe na verdade não acabou.

No dia em que se aprovou a Lei do Passe, o Pelé disse que estava pagando uma dívida que tinha com os atletas brasileiros, porque quando foi atleta ele tinha sido muito alienado. Qual é a sua justificativa para aceitar essa mudança agora? É que nenhum atleta se mobilizou para defender a sua proposta. O que é até verdade. Aí, vamos falar da nossa incipiente organização sindical, de que nós brasileiros temos pouca capacidade de mobilização, de lutar pelos nossos direitos etc.

Como você explica esse baixo nível de organização dos atletas brasileiros, quando por exemplo na Argentina, no Uruguai, na Europa eles defendem seus direitos e até fazem greves?

Tem a ver com o nível de escolarização dos nossos atletas. Diferentemente da Argentina e do Uruguai, a esmagadora maioria dos nossos atletas ainda tem baixa escolaridade. Significa dizer que, ou o jogador, de repente, se torna um multimiliardário e fala "eu estou pensando em mim, na minha mãe, nos meus irmãos e vocês me desculpem, mas eu me fiz por mim mesmo, vocês que façam igual", ou é o bóia-fria do futebol, que não tem tempo sequer para formar a consciência de classe e não se mobiliza por nada.

A única experiência de que eu me lembro de organização e participação dos jogadores no futebol brasileiro foi a da democracia corintiana, no início dos anos 80. Por que ela não foi adiante?

Volto ao começo da entrevista: o mundo do futebol não é apenas conservador, é extremamente reacionário e corrupto. A democracia corintiana perdeu a eleição dentro do clube em 84. Seu candidato era Adilson Monteiro Alves contra Roberto Pasqua, num ano em que o Corinthians era bicampeão e estava decidindo o tricampeonato com o Santos. Estava tudo dando certo e mesmo assim perdeu a eleição. Os conselheiros rejeitaram aquela proposta. Aquilo assustava: "os jogadores agora dão ordem e resolvem se vão se concentrar ou não. Estão tomando nosso espaço!" O Pasqua foi eleito e na mesma noite teve de sair pelos fundos do Parque São Jorge. Os Gaviões da Fiel invadiram, a torcida queria dar porrada...

Você quer dizer que a democracia corintiana existiu durante um período porque houve uma circunstância absolutamente especial e aí o papel do Adilson Monteiro Alves foi fundamental, aproveitando uma brecha...

O Corinthians estava na segunda divisão brasileira. O Valdemar Pires, presidente eleito, era uma rainha da Inglaterra, porque quem mandava era o Vicente Matheus. Aí o Pires resolveu dar um basta, pôs o Matheus no seu devido lugar, mas não tinha massa crítica, não tinha know how para tocar, e apareceu um barbudinho – o Adilson Monteiro Alves – dizendo que sabia tocar. Por circunstâncias da história estavam no time um Sócrates, um Vladimir, um Casagrande...

E aí é o acaso mesmo. Não foi o Adilson quem trouxe esses jogadores, eles já estavam lá...

Mero acaso. Foi o Vicente Mateus quem trouxe o Sócrates. Num momento de efervescência do país, depois da anistia em 79, das eleições para governador em 82, começando a campanha das diretas. E aquilo se deu num time de massa, para melhorar as coisas ainda mais, e que não só fazia a discussão como era capaz de ganhar dentro de campo, passando cada vez mensagens mais positivas: "campeão ou não, mas com democracia". É uma pena dizer isso, mas aquilo foi um aborto... É impressionante a incapacidade que os atletas têm de se darem conta da sua força!

<--break->Como você vê a anticandidatura de Sócrates à Presidência da CBF?

É uma boa coisa para despertar a polêmica, e acho que ele vai poder tocar em muitas feridas. Ele está desafiando o Ricardo Teixeira para um debate, na hora e local em que o Teixeira quiser. É óbvio que ele não irá. Mas o Sócrates diz que está impressionado com a repercussão que sente nas ruas. As pessoas lhe dizem: "se eu pudesse, votava em você..." É o que se pode fazer, trazer essa discussão e fazer as pessoas tomarem consciência.

E depois, veja como as coisas vão se encaminhando pelo mundo. Platini virou cartola número um do futebol francês, um dos organizadores da Copa do Mundo. Beckenbauer virou presidente do Bayern de Munique. Na Itália, é raríssimo o clube que não tem um ex-atleta como alto dirigente ou como treinador. Nós hoje já temos no Brasil gente suficiente para ocupar esses espaços também. Já imaginou um Falcão como dirigente do Inter, um Casagrande dirigindo o Corinthians, um Tostão no Cruzeiro, um Zico no Flamengo, Júnior, Gérson... Temos gente com cabeça, que tem identificação para assumir responsabilidades nos clubes e com visão suficientemente esclarecida para saber que não podem reproduzir o modelo em vigor. Naturalmente, eles teriam que contratar profissionais. Caberia a eles o papel do relacionamento com a massa, com a gestão entregue a profissionais.

Tradicionalmente, a imprensa esportiva brasileira era, digamos, uma extensão dos cartolas. A grande maioria dos setoristas que cobria um clube tinha relações com dirigentes, técnicos, recebia favores, ia de carona nas viagens etc. Mas hoje há uma nova geração, com um olhar crítico, que vem desempenhando um papel importante. São jornalistas como você, o Trajano, o Flávio Prado, o Tostão etc...

Não é muito diferente hoje. O esquema se sofisticou, mas em geral não se sabe quem é jornalista, quem é garoto-propaganda, quem é empresário de atleta, quem é promotor de evento, quem é assessor de imprensa. Há gente que trabalha para um clube e para um jornal ao mesmo tempo. Há setorista da CBF que viaja às custas da CBF. Há repórteres que são procuradores e empresários de jogador. Há jornalista fazendo propaganda disso ou daquilo, promovendo um evento aqui, outro acolá, em geral numa relação muito promíscua com a cartolagem.

Mas as escolas de jornalismo têm uma grande qualidade: elas oxigenam, trazem uma molecada mais crítica, que obriga os mais velhos a darem algum exemplo positivo. A imprensa escrita esportiva brasileira hoje, principalmente a grande imprensa, é de uma dignidade a toda prova. Não é à toa, isso é fruto da redemocratização do país. Cada vez mais um profissional vai se distinguir pela credibilidade. E se não fizer assim vai se dar mal, vai perder a concorrência.

Então, há uma evolução. A televisão ainda é um caos, porque ela compra os eventos esportivos e ainda não foi capaz de entender que comprar um evento não a transforma em sócia dos cartolas. Essa promiscuidade é um horror.

Como você vê o papel das CPIs nisso tudo? Você acha que elas contribuíram?

Acho que sim. Eu tiro meu chapéu hoje para o Aldo Rebelo. Ele foi de uma competência a toda prova. A proposta de criação da CPI estava há mais de ano na gaveta do Michel Temer. Ela foi criada porque o Senado conseguiu aprovou outra no mesmo sentido. Quando elegeram o Aldo presidente, era uma tentativa de manietá-lo, mas ele, com perseverança, conseguiu levar aquilo, levantar coisas. O relatório final que o deputado Sílvio Torres apresentou é porreta, é uma peça que interessa à opinião pública. Mostra uma face do futebol brasileiro. E da mesma maneira a CPI do Senado. Esse senador do PFL de Santa Catarina, Geraldo Althoff, que é o relator, caiu ali meio de pára-quedas e de repente se viu estarrecido com as primeiras coisas que começaram a chegar às suas mãos.

Se a imprensa brasileira cumprir o papel que lhe cabe, as CPIs podem levar a muita coisa, pelo simples fato de se ter obrigado esta gente a se despir perante a opinião pública. Isso já é um serviço inestimável. Agora, a CPI não prende, quem prende é o Ministério Público. A CPI relata ao Ministério Público.

O papel que as CPIs e parte da imprensa esportiva vem desempenhando, ao denunciar, é muito importante. Mas a CBF é uma entidade privada, que tem estatutos próprios. Seu presidente não pode ser cassado pelo Congresso. Na estrutura atual, os sócios dos clubes elegem os conselheiros, que elegem os presidentes dos clubes, que por sua vez elegem os presidentes das federações, que elegem o presidente da CBF. Os jogadores, como falamos, não têm maior consciência. Como se arrebenta essa estrutura?

Há um movimento de limpeza, que torna cada vez mais difícil a permanência de um certo estilo de dirigente, mas não basta trocar seis por meia dúzia. Cai essa gente e põe quem no lugar? Essa é a grande angústia e a grande pergunta. Eu respondo argumentando que há uma molecada surgindo, na área do marketing esportivo, profissionais que podem, junto com ex-atletas, começar a dar uma outra direção. Essa é a minha esperança. E acho que cada vez mais isso tende a fazer parte do programa de quem quiser assumir esse país. O presidente da CBF que der jeito no futebol brasileiro pode ser candidato a qualquer coisa!

Vamos falar um pouco sobre o futebol dentro do campo. Eu tenho a impressão que estamos vivendo tecnicamente a pior safra do futebol brasileiro, no mínimo desde 58...

O Brasil foi, indiscutivelmente, o melhor futebol do mundo, numa época bem marcada, a era Pelé. Nessa fase, de quatro copas que disputou, o Brasil ganhou três. Não só por Pelé, mas pela conjunção de astros. Além de Pelé – o maior de todos os tempos –, havia Garrincha, Didi, Tostão, Carlos Alberto, Nilton Santos etc. Uma geração extraordinária. Antes do Pelé, o Brasil era importante no futebol mundial, mas não tinha ganhado nenhuma copa do mundo, chegando a perder uma dentro de casa. Depois do Pelé, o Brasil conseguiu ganhar uma Copa – Deus sabe como! –, a dos Estados Unidos, uma das de índice técnico mais baixo da história.

Então, essa coisa de dizer: "nós temos o melhor futebol do mundo", alto lá! Tivemos. E estamos sempre entre os quatro, cinco melhores. Fazemos parte do primeiro mundo do futebol.

Parodiando o Euclides da Cunha, eu diria que o jogador de futebol brasileiro é antes de tudo um forte. O Juninho, aquele quarto zagueiro que jogou no Corinthians e na Ponte Preta, costumava dizer que quando a seleção brasileira chegava a outro país para um jogo qualquer e o Nabi Abi Chedid era o primeiro a descer do avião, já estava 1 x 0 para os adversários. Tínhamos de ganhar do adversário e da nossa cartolagem.

O que estamos vivendo agora não é apenas uma safra de jogadores medíocres mas, sem querer politizar, acho que há muita falta de compromisso, com o mau exemplo dos cartolas. Sem querer ser romântico mas, quando tínhamos um Paulo Machado de Carvalho no comando da seleção, a coisa era diferente.

Ou seja, enquanto não se resolverem os problemas fora de campo não há grandes perspectivas dentro de campo?

Eu acho que não é à toa que, se você comparar, apesar de tudo, da crise, da mediocridade, o desempenho dos nossos clubes ainda é melhor que o da seleção. Os clubes brasileiros continuam dominando a Libertadores, podem até perder para o Boca Juniors, mas faz dez anos que os brasileiros quase sempre chegam às finais e ganharam sete. O Corinthians foi campeão mundial, o Palmeiras foi para Tóquio, o Grêmio também e o Cruzeiro idem. Mas quanto à Seleção Brasileira não vejo grandes perspectivas. Acho que estamos colhendo o que essa gente plantou.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate.