Nacional

A discussão programática reúne de forma inseparável a formulação de idéias e a criação de condições para a ação

Quando, em 1993, o PT criou uma comissão encarregada de elaborar a proposta de programa de governo para a eleição presidencial do ano seguinte, a primeira tarefa que o grupo se deu foi a de elaborar uma análise das transformações ocorridas no Brasil e no mundo a partir de 1989 até aquela data. O Brasil de 89 era bem diferente daquele em que se daria a eleição de 94.

Em 1989 o Brasil vivia o fim de uma conjuntura excepcional. Os anos 80 haviam sido, do ponto de vista econômico e social, a "década perdida". Findo o regime militar e após o impacto da morte prematura de Tancredo, a sarneyzação do país lançou o sistema político em crise profunda, a ponto de não haver candidatura em 89 que reivindicasse a continuidade da "Nova República".

Os anos 80 foram no entanto uma "década ganha" do ponto de vista político. O país viveu um clima de efervescência sem precedentes, sobretudo devido à entrada de "novos personagens na cena política", para evocar a expressão do saudoso Eder Sader.

A derrota das esquerdas em 89 teve pesadas conseqüências. Collor deu início à abertura neoliberal da economia, que teve hesitante continuidade no governo Itamar Franco, ganhando impulso com a eleição de Fernando Henrique.

Se o Brasil de 94 diferia bastante daquele de 89, que dizer do Brasil de 2002 em relação ao momento em que FHC iniciou seu governo? Cinco anos de sobrevalorização cambial, associada a taxas de juros elevadíssimas e à abertura comercial e financeira irresponsáveis, desestruturaram e desnacionalizaram o sistema produtivo, ao mesmo tempo que provocaram profundas alterações na área financeira. A crise fiscal agravou-se com o crescimento exponencial da dívida interna e o aumento da dívida externa, e não foi resolvida pela venda massiva de ativos no celebrado "maior programa de privatização do mundo", que, por sua vez, retirou do Estado capacidade de planejamento estratégico, como se pode ver da catástrofe energética atual. O equilíbrio fiscal imposto pelo FMI estrangula estados e municípios, sacrifica investimentos fundamentais de infra-estrutura, corta os gastos sociais do orçamento, agravando mais a situação dos pobres.

Quando, em 1993, o PT criou uma comissão encarregada de elaborar a proposta de programa de governo para a eleição presidencial do ano seguinte, a primeira tarefa que o grupo se deu foi a de elaborar uma análise das transformações ocorridas no Brasil e no mundo a partir de 1989 até aquela data. O Brasil de 89 era bem diferente daquele em que se daria a eleição de 94.

Em 1989 o Brasil vivia o fim de uma conjuntura excepcional. Os anos 80 haviam sido, do ponto de vista econômico e social, a "década perdida". Findo o regime militar e após o impacto da morte prematura de Tancredo, a sarneyzação do país lançou o sistema político em crise profunda, a ponto de não haver candidatura em 89 que reivindicasse a continuidade da "Nova República".

Os anos 80 foram no entanto uma "década ganha" do ponto de vista político. O país viveu um clima de efervescência sem precedentes, sobretudo devido à entrada de "novos personagens na cena política", para evocar a expressão do saudoso Eder Sader.

A derrota das esquerdas em 89 teve pesadas conseqüências. Collor deu início à abertura neoliberal da economia, que teve hesitante continuidade no governo Itamar Franco, ganhando impulso com a eleição de Fernando Henrique.

Se o Brasil de 94 diferia bastante daquele de 89, que dizer do Brasil de 2002 em relação ao momento em que FHC iniciou seu governo? Cinco anos de sobrevalorização cambial, associada a taxas de juros elevadíssimas e à abertura comercial e financeira irresponsáveis, desestruturaram e desnacionalizaram o sistema produtivo, ao mesmo tempo que provocaram profundas alterações na área financeira. A crise fiscal agravou-se com o crescimento exponencial da dívida interna e o aumento da dívida externa, e não foi resolvida pela venda massiva de ativos no celebrado "maior programa de privatização do mundo", que, por sua vez, retirou do Estado capacidade de planejamento estratégico, como se pode ver da catástrofe energética atual. O equilíbrio fiscal imposto pelo FMI estrangula estados e municípios, sacrifica investimentos fundamentais de infra-estrutura, corta os gastos sociais do orçamento, agravando mais a situação dos pobres.

Esse quadro não permite o crescimento da economia. A competitividade internacional não arranca, nem mesmo depois das mudanças na política cambial. A vulnerabilidade externa mantém a economia em permanente sobressalto, tendo em vista as incertezas que rondam os mercados financeiros mundiais.

Todas essas mudanças alteraram o perfil das classes dominantes. Setores da burguesia industrial desapareceram ou se viram confinados à condição de rentistas. Aventureiros assumiram um papel de surpreendente preeminência no mundo econômico e financeiro. Médios, pequenos e microempresários quebraram ou se encontram sem perspectivas. Um programa alternativo tem de levar em conta a nova realidade do país, sob pena de propor transformações para um país que não mais existe.

As esquerdas e o PT têm duplo desafio. Devem apresentar um programa de efetiva e radical mudança para o novo Brasil. Ao mesmo tempo, devem fazer com que sua proposta, além de coerência e solidez internas, seja capaz de interpelar os corações e mentes de uma ampla maioria da sociedade. O programa tem de ser importante instrumento para vencer as eleições mas, sobretudo, para governar de forma distinta.

A frustrada experiência argentina da Alianza, que rifou as esperanças populares, realizando um governo tão conservador como o de Menem, deve servir de alerta para os que aspiram abrir um novo ciclo histórico para o país.

Tornou-se hábito à direita, mas inclusive em setores de centro-esquerda, afirmar que o PT "não está preparado para governar", posto que não possuiria programa e quadros, além de estar preso ao passado e desconhecer os constrangimentos internacionais. Esse sentimento, apoiado em uma visão apocalíptica da globalização, tem até mesmo uma vertente teórica de ultra-esquerda que considera ingênua a possibilidade do PT vir a realizar um programa de transformações mais radical.

Ora, a política, não desconhecendo a teoria, não se deduz dela. Nem do facilitário ideológico do neoliberalismo, nem de elaborações mais sofisticadas fundadas em análises sobre a "implacável lógica do capital". As grandes transformações históricas são obra de sujeitos que se movem "sobre condições dadas", mas que atuam e alteram essas condições. Por essa razão, a discussão programática reúne de forma inseparável a formulação de idéias e a criação de condições para a ação. Tudo isso supõe aprofundar o debate sobre as forças sociais capazes de sustentar o programa.

Um sentimento de mudança atravessa o país. Os que anunciavam o fim da "era Vargas" e o início de um novo ciclo histórico, beneficiando-se de um suposto Renascimento em curso no mundo, viram rapidamente seu sonho desvanecer-se. A aventura neoliberal tornou a América Latina e o Brasil mais pobres, afastou mais o país e o continente do sonho basbaque de participar do banquete do Primeiro Mundo.

O "governo dos intelectuais" amesquinhou o debate de idéias, tentou desqualificar seus oponentes, mediocrizou seus próprios ideólogos. Os atuais governantes lançaram mão dos expedientes mais tradicionais do cambalacho político, toleraram e encobriram a corrupção. Obstruem sua investigação e tentam apresentar os que a denunciam como vulgares moralistas.

Assim, o sentimento de mudança é profundo e complexo. Atinge as raízes de um modelo que não comporta remendos. A agenda programática das esquerdas no Brasil exige o debate de três grandes questões: um novo modelo econômico para enfrentar os grandes desafios sociais, a radicalização da democracia política a partir de um novo enfoque da democracia econômica e social e a redefinição do lugar do Brasil no mundo.

O novo modelo econômico, distante do nacional-desenvolvimentismo – concentrador de renda e de poder e oposto ao neoliberalismo –, deve partir da necessidade de uma forte retomada do crescimento, alavancada pela distribuição de renda que será função de reformas sociais capazes de viabilizar um amplo mercado de bens de consumo de massas. Essa política terá efeito irradiador sobre a economia e exigirá uma discussão aprofundada sobre um novo padrão de financiamento. Redistribuição dos sacrifícios e retomada pelo Estado de seu papel regulador exigirão amplo debate e mobilização nacionais, tendo em vista as alterações que provocarão nas relações de força. Um plano de transição se impõe. Não só para não produzir desequilíbrios macroeconômicos, como para atender fortes demandas sociais, muitas das quais deverão ser objeto de políticas compensatórias até que as reformas estruturais produzam seus efeitos.

O novo modelo econômico será comandado pelas demandas sociais, o que não se confunde com populismo. Difere radicalmente, no entanto, da atual política econômica, dominada pela obsessão do ajuste não importando os sacrifícios sociais que impõe, ou os graves comprometimentos que traz para uma estratégia de desenvolvimento.

Do ponto de vista político, o país necessita de uma sucessão de choques democráticos. É necessário ampliação e garantia dos direitos humanos. Uma reforma política e eleitoral viabilizará mecanismos de representação mais consistentes, como fidelidade partidária, combate à interferência do poder econômico nas eleições, respeito aos legislativos, com a limitação de medidas provisórias. Mas ao mesmo tempo é necessário criar mecanismos de controle social do Estado, seja por meio dos orçamentos participativos, seja por intermédio de conselhos que regulem e controlem a formulação e implementação de políticas públicas. O mundo do trabalho deverá ter maior participação na regulação da vida econômica, seja na perspectiva macro, seja na micro. Deverá ser democratizado o acesso aos meios de comunicação. A ampliação da cidadania passa pela garantia de direitos sociais, como aqueles outorgados por meio de políticas públicas de educação, saúde, habitação, cultura etc.

Finalmente está o problema do lugar do Brasil no mundo. Os níveis atingidos pelo tipo de globalização econômica desenvolvido nas últimas décadas criaram constrangimentos que não podem ser desconsiderados. Um projeto nacional exige claras definições da política externa, ao mesmo tempo que a política externa supõe a sua existência.

O Brasil tem de pensar seu crescimento no marco de uma nova política de regionalização que privilegie a área sul-americana, com ampliação e redefinição do Mercosul, de maneira a transformá-lo em ponto de convergência de políticas de desenvolvimento que permitam à região enfrentar melhor os constrangimentos internacionais. A Alca, tal como desenhada, não nos interessa. Um governo de esquerda deverá apresentar uma agenda alternativa ao projeto atual, colocando os EUA em situação defensiva.

Ao mesmo tempo, o Brasil desenvolverá uma política de reaproximação com a África, especialmente com a África do Sul, e reforçará relações bi e multilaterais com países como Índia, China, Irã e Rússia, independentemente das diferenças que possua com os regimes políticos aí imperantes.

Trata-se de contribuir para o surgimento de um mundo mais equilibrado, onde tenham um curso importante as políticas de paz, de respeito aos direitos humanos, ao meio ambiente à diversidade étnica e cultural.

Marco Aurélio Garcia é secretário de Cultura do município de São Paulo e membro da Comissão Executiva Nacional do PT.