Internacional

Sociólogo e politólogo Atílio Boron nos dá um panorama das mudanças na Argentina nas últimas décadas

O sociólogo e politólogo Atílio Boron é secretário executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor de Teoria Política na Universidade de Buenos Aires. Autor de Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina e A Coruja de Minerva, Boron nos dá um panorama das mudanças na Argentina nas últimas décadas

Que marcas deixou a ditadura na vida política argentina?
A ditadura foi superada há quase vinte anos e, entretanto, seu impacto ainda se sente fortemente. Primeiramente, na desvalorização tremenda da política. Se há uma coisa que ela fez muito bem, foi convencer os argentinos de que a política era uma atividade improdutiva, no melhor dos casos, e arriscada e perigosa, no pior. Hoje, os políticos são considerados parasitas ou excrescências do corpo social, que não têm outro lugar onde ter sucesso e buscam-no então na política que é, no fundo, o reino das artimanhas, dos golpes e das manobras sujas. E tudo o que os políticos têm feito se ajusta, de algum modo, àquilo que os militares diagnosticavam. Se há um fracasso rotundo na Argentina, é o dos políticos. Tudo isso contribuiu para o enorme descrédito que a política tem hoje.

A segunda herança dos militares traz um elemento ideológico mais claro. Durante muitos anos, eles se equilibraram entre um certo nacionalismo belicista, centrado na permanente exaltação da ameaça interior (a guerrilha) ou exterior (o Brasil, em seguida o Chile e depois os ingleses) e, combinada a isso, uma política de corte claramente neoliberal, inaugurada em 76 com o famoso discurso do ministro da Economia Martínez de Hoz1 em que expôs suas diretrizes para a sociedade e a economia argentinas. O êxito dessa iniciativa foi clamoroso. Muitos se confundem ao dizer que houve um fracasso das políticas de Martínez de Hoz. É claro que fracassou em algumas coisas, mas me dá a impressão de que ganhou a guerra. Durante os pouco mais de cinco anos em que permaneceu no cargo, ele contou com o apoio irrestrito do capital financeiro e introduziu os principais elementos da política neoliberal. A liberalização financeira começou com Martínez de Hoz e foi o governo militar que a desenvolveu plenamente. Quando voltou a democracia, em 1983, havia no país uma forte presença de uma ideologia contrária ao protecionismo, aos subsídios, à intervenção do Estado. A reestruturação do capitalismo operada durante a ditadura militar já tinha, como uma de suas expressões, a conformação de grandes conglomerados econômicos com interesses em diversos setores da produção. E o velho slogan dos militares, “achicar el Estado es agrandar la Nación” (reduzir o Estado é engrandecer a Nação), pegou muito profundamente na opinião pública, inclusive na liderança política; todas as políticas que se implementaram durante esses dezenove anos tiveram essa premissa.

O terceiro legado terrível que o regime militar nos deixou foi o desaparecimento de lideranças sociais. Falamos de 30 mil vítimas, entre mortos e desaparecidos. É um número enorme, levando em consideração, acima de tudo, que muitas dessas vítimas eram dirigentes sociais de base. Foram eliminadas cabeças do que poderia ter sido, nos anos da democracia, uma liderança política e sindical com capacidade de contestação como, por exemplo, a que existe no Brasil.

Tenho a impressão de que, quando ganhou do Partido Justicialista (peronismo) em 1983, Alfonsín ensaiou nos planos da política e da economia uma certa heterodoxia, uma tentativa que se frustrou no final...
Alfonsín é uma pessoa a quem aprecio e estimo muitíssimo; apesar de não concordar com ele em muitas coisas. É um homem honesto e bem intencionado. Mas seu problema foi, primeiramente, a herança muito pesada da dívida externa. Em segundo lugar, a oposição selvagem do peronismo, que é um partido de máfias da pior espécie, que no entanto teve sempre uma enorme base popular – e continua tendo, ainda que cada vez menos. O peronismo de hoje tem muito pouco a ver com o de Perón; é um peronismo absolutamente vendido, transformado numa espécie de travesti do neoliberalismo, cuja direção só se importa em roubar o máximo no menor prazo possível.

Alfonsín deparou-se com tudo isso, mas também com suas próprias limitações como dirigente de um partido pequeno-burguês como o radicalismo, que tem um temor impressionante às massas, que prefere sempre fazer acordos pessoais, de costas para a população. Alfonsín teve muitas dificuldades em seu primeiro ensaio heterodoxo, porque seu primeiro ministro da economia, Bernardo Grispun, era detestado pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo Departamento do Tesouro dos EUA. E o radicalismo não acompanhou Grispun em suas iniciativas, além do que ele não tinha a ductilidade necessária para negociar como ministro da Economia. Ele era o que chamamos de um “viejo cascarrabias” (velho rabugento), que xingava o imperialismo e os americanos, mas carecia de eficácia negociadora e de uma estratégia realista. E, é claro, os grupos econômicos estavam ativamente conspirando contra essa possibilidade e dificultando cada passo seu.

Considero que Alfonsín tinha os instrumentos para quebrar a resistência do peronismo. Ele poderia ter dito: “temos um obstáculo – o justicialismo enquistado fisiologicamente no Senado somado à liderança sindical corrupta” e convocado uma consulta popular, como fez no caso do conflito com o Chile, em que ganhou. Não o fez por essas vacilações próprias de um partido pequeno-burguês, e Alfonsín é um líder nato desse partido. Não o fez porque temia um veredicto popular que provavelmente o impulsionaria a fazer outras coisas que ele e seu partido não estavam em condições de fazer. Mas, além desse, Alfonsín tinha um segundo recurso – devemos dizê-lo em sua homenagem – que não utilizou: ele poderia ter comprado um voto no Senado, e teria custado muito barato. Poderia ter comprado um voto do Movimiento Popular Neuquino, um partido filoperonista, o do senador Sapag, que todos sabiam que, por um milhão de dólares, vendia o voto. E Alfonsín disse não, porque é um homem ético. Ou seja, não entrou pela via corrupta; mas também não entrou pela via do plebiscito popular. Então Alfonsín, em fevereiro de 1984, dois meses depois de ter assumido o governo, estava com as asas totalmente cortadas, sem capacidade para democratizar a vida sindical, que é um escândalo na Argentina.

No plano da política externa, Alfonsín em 1985 iniciou, junto com Sarney, um processo de aproximação decisivo para a posterior formação do Mercosul. Esse projeto rompia com uma tradição de rivalidade secular e tinha uma perspectiva de uma integração mais estratégica, com políticas complementares, bem diferente do Mercosul do Tratado de Assunção, assinado por Menem e Collor. Que opinião você tem sobre esse processo?
O Mercosul é uma boa iniciativa de buscar a cooperação, a aliança estratégica com o Brasil; é algo muito valioso e importante, e é uma das contribuições mais perduráveis de Alfonsín, não somente para a Argentina, mas para as relações argentino-brasileiras. Ele tentou fazer uma boa política exterior, mas não encontrou companhia. A visão internacional do Itamaraty oscila entre o isolamento e a inatividade no terreno internacional. O Brasil se isolou, em 1985, no tema internacional. Acreditou ingenuamente nas promessas norte-americanas de que era diferente, uma velha estória que os americanos contam para todos: para a Costa Rica, a Guatemala, o México, a Argentina e também para o Brasil; e todos acreditaram. É claro que o Brasil tinha mais razões que os outros para acreditar, porque de fato não é a mesma coisa Brasil ou Guatemala – mas no fim das contas o tratamento foi o mesmo.

Então, Alfonsín não teve apoio, nem tinha o flanco interno solidamente galvanizado, seu próprio partido não o acompanhava muito; os grupos econômicos argentinos operavam fortemente contra ele; o peronismo fazia essa política rasteira de fazer um discurso de autonomia nacional por um lado e ao mesmo tempo bloquear qualquer iniciativa. Isso ficou muito claro na conduta dos senadores peronistas quando ocorreram as privatizações absolutamente escandalosas de Menem. Mas é necessário reconhecer que Alfonsín teve uma política muito boa em relação à América Central. Um dos momentos mais importantes foi perante Reagan. Num ato na Casa Branca, Reagan fez um discurso muito agressivo, muito anti-sandinista; aí Alfonsín guardou o texto que tinha preparado e improvisou um lindo discurso de reafirmação da luta pela autodeterminação dos povos o que, pelo menos, o instalou na história latino-americana como um dos pouquíssimos líderes que teve a valentia, na própria Casa Branca e diante de Reagan, de dizer o que pensamos.

E houve também o julgamento das Juntas Militares2, inédito na história latino-americana.
Esta é, sem sombra de dúvida, a mais importante herança de Alfonsín. É um marco na história mundial. Os julgamentos aqui foram muito mais sérios que os de Nuremberg. Na Alemanha, dez anos depois, os hierarcas nazis estavam completamente reabilitados, jurídica e socialmente; na Argentina, não houve nenhuma reabilitação jurídica. Apesar do indulto de Menem; os militares julgados continuam em prisão domiciliar, continuam chovendo processos sobre suas cabeças e não podem nem sonhar com uma reabilitação social.

Como se explica a primeira vitória de Menem, uma liderança do interior com traços folclóricos e discurso messiânico?
Os argentinos elegeram Menem porque o governo de Alfonsín teve dois grandes fracassos. O primeiro foi o econômico, ao lançar o famoso Plano Austral – que foi copiado no Brasil pouco depois com o Plano Cruzado –, que fracassou rotundamente porque era um programa que, exceto em um ou outro ponto, inscrevia-se nos moldes da doutrina neoliberal e persistia em não atacar um problema-chave, que está na base de toda a crise econômica argentina: a questão tributária, que desembocou na crise fiscal e na hiperinflação, fenômeno muito traumático.

O segundo fracasso foi na política militar, e se revelou na crise da Semana Santa3e na forma como ela foi resolvida, que gerou depois uma série de novos motins e insurreições militares. Nesse marco de decomposição total da ordem política, com Alfonsín governando sozinho com seu Partido Radical, com programas antipopulares – não tanto quanto os que depois aplicaria Menem –, a única alternativa era o candidato do justicialismo, Menem. Os argentinos não votam em candidatos, mas sim por grandes identidades políticas; e num contexto de crise econômica, recrudesceu a identidade peronista. Menem dizia coisas que as pessoas queriam ouvir, falava em abrir as portas das fábricas fechadas; fez uma campanha profundamente demagógica, mas a sociedade precisava acreditar nessa demagogia e por isso votou nele.

Na Argentina houve muitas tentativas de desmontar o Estado de bem-estar que, mesmo com deformações, permitiu a homogeneização econômica e cultural que caracterizava o país. Não é paradoxal que Menem, do Partido Justicialista, tenha conseguido desmontá-lo?
Menem é uma figura absolutamente inescrupulosa, capaz de fazer qualquer coisa, movido por uma grande ambição, e com enorme talento político; um homem muito hábil, sem limitações éticas ou morais de nenhum tipo. Assim que chegou ao governo, percebeu que havia uma estrutura de poder à margem da vontade popular, que não se modificava pelos resultados dos sufrágios e, sendo um homem pragmático e inescrupuloso, pensou: “não posso governar contra os poderes estabelecidos; se quiser cumprir a tarefa que pretendo, vou ter que governar com eles”, e então lhes ofereceu tudo, pôs a Nação e o Estado a seus pés.

Menem adotou o programa mais radical de reformas neoliberais que se conheceu na história latino-americana, com o que, em muito pouco tempo, concretizou-se o programa que a ditadura militar havia iniciado e que não havia conseguido se estabelecer completamente. Os anos de Alfonsín tinham sido anos de incerteza, e mesmo quando, no final de seu governo, retomou a linha que vinha da ditadura, quando o Plano Austral começava a fazer água, ainda não havia força suficiente para impor essas reformas. Era necessária a enorme legitimidade popular do peronismo para levar adiante a tarefa de destruição que Menem executou. Esse processo está bem explicado em meu livro A Coruja de Minerva, mas vou expor um só elemento importante: o peronismo produziu a maior redistribuição de renda da história latino-americana do século XX, com a única exceção da Revolução Cubana.

Antes de Perón chegar ao poder, a distribuição da renda nacional entre capital e trabalho era de 23% para o trabalho e 77% para o capital; dois anos depois de Perón chegar ao poder era de 49% para o trabalho e 51% para o capital. E o canalha do Menem nos instala como na época pré-peronista, 23% para o trabalho e 77% para o capital! Então, se nos perguntamos por que o povo acreditou em Menem, devemos levar em consideração que a lembrança do que havia sido o peronismo pesou muitíssimo, transmitiu-se de pais para filhos, e ainda existe no imaginário coletivo; é a lembrança da época dourada da Argentina. Quando era pequeno, nos anos 50, ia a uma escola pública de Buenos Aires e voltava a pé para casa. Era o auge da construção civil – anos de pleno emprego – e, nas obras, os trabalhadores faziam churrascos de carnes maravilhosas, bifes de chorizo e eles iam me dando pedacinhos de carne em vários pontos do meu trajeto! E é essa a lembrança do operário da construção, o pior remunerado, que tinha carne de sobra a ponto de dar um pedaço aos meninos de classe média que saíam da escola! Por isso Menem venceu.

Mas como ele se reelege em 1995?
Reelegem-no porque a Argentina havia estado sufocada pelo problema da instabilidade monetária e Menem o resolveu. Trata-se de um país que padeceu uma hiperinflação que fez com que as pessoas tivessem que se armar, se trancar em suas casas, sobretudo nos bairros populares, para se defender dos vizinhos desesperados que saíam para saquear até a casa do pobre. E Menem conseguiu congelar essa fonte de desespero que era a hiperinflação. Isso também explica, em parte, o que acontece com Cavallo hoje, o porquê das pessoas terem tanto medo do fim da convertibilidade; ela foi um remédio eficaz para acabar com aquele pesadelo. Em 1995, Menem disse: “Eu lhes prometi salariazo, revolução produtiva etc.; tivemos que fazer outra coisa, mas vocês não estão melhor hoje? Vocês sabem qual é o valor da moeda, não há inflação, não há corrida bancária”. E isso, de algum modo, se relacionou com um processo de ampliação do consumo, que teve lugar de maneira muito forte entre 1991 e 1995, até que o “efeito tequila” fez com que houvesse crédito muito abundante e muita gente se endividasse. Assim, votaram de novo em Menem, porque qualquer alternativa aparecia como pior.

Como você interpreta a mudança radical na política externa argentina, que passou a defender “relações carnais” com os EUA?
Quando Cavallo foi chanceler, na primeira etapa do governo de Menem, a Argentina decidiu deixar de lado qualquer argumento de caráter político internacional, histórico e de tradições diplomáticas e resolveu que a maneira de sair da paralisia nas relações econômicas internacionais era o alinhamento incondicional com os EUA.

Há um velho artigo meu que se chama “Los axiomas de Anillaco” e nele eu digo que um dos axiomas fundamentais de Menem é que o mundo se governa a partir do centro e que o poder do centro é onímodo. Então, assim como ele, quando era governador de La Rioja, pensava que não podia governar se não tivesse o OK de Buenos Aires, quando estava em Buenos Aires pensava que não podia governar sem o OK de Washington. E por isso se moveu tão habilmente para se tornar um aliado incondicional e obseqüente do governo de Bush. A Argentina mandou tropas à Guerra do Golfo! E nos causou indignação, particularmente, a forma como o governo argentino votou contra Cuba na ONU, ao mesmo tempo que não sancionava outros países onde havia problemas graves de violação aos direitos humanos, como a China, por exemplo, mas que os EUA não estavam interessados em sancionar. Mas, apesar desse alinhamento, os EUA persistem em nos tratar discriminatoriamente, por exemplo, impedindo as exportações argentinas, entrando para competir no mercado brasileiro com trigo subsidiado contra os interesses argentinos, e endurecendo a posição norte-americana no FMI em tudo o que concerne à nossa dívida externa.

De la Rúa é continuísta porque ainda perdura o mito da estabilidade monetária? Mesmo quando o “remédio” da convertibilidade está matando o país?
O que prevalece quando se compara o governo da Alianza e o de Menem é o elemento de continuidade. Primeiramente no plano econômico: a Alianza não é senão a continuidade e o aprofundamento, inclusive a níveis mais regressivos e mais reacionários ainda, da política de Menem, que, em dez anos e meio, nunca reduziu os salários; o governo atual já os reduziu em duas ocasiões e está no terceiro plano de ajuste. Não há na Argentina experiência de uma política desse tipo; nem sequer os militares fizeram isso. Segundo, este governo também dá continuidade e aprofunda a política do menemismo em relação às “relações carnais” com os EUA.  De todo modo, há ingredientes novos. O menemismo foi uma experiência possibilitada pela estabilidade monetária e pela afluência fácil de capitais, produto da venda indiscriminada de grandes empresas. Os resultados negativos dessa experiência só começaram a ser percebidos muito depois – é o que estamos vendo agora.

Mas, além de tudo isso, Menem pôde ser reeleito em 1995 porque os partidos que se colocavam como alternativa ofereciam exatamente o mesmo esquema de política econômica. Isto me parece muito importante como lição para o Brasil: Fernando Henrique Cardoso, que é muito inteligente, sempre disse que é preferível o original à cópia; então se vou fazer um programa neoliberal, vou encomendá-lo a um neoliberal, não a um social-democrata ou a um partido populista. Menem conseguiu ser aceito como um converso real, ele é o grande dirigente de massas que o neoliberalismo tem: Se Menem resolver seu problema com a justiça, que é muito grave e muito difícil de ser resolvido, ele será o próximo presidente da Argentina! Porque a Alianza4não apresentou nenhuma alternativa. E isso é parte do que eu chamo de “a fenomenal vitória ideológica do neoliberalismo”. O neoliberalismo foi um fracasso rotundo como política econômica, nos países da periferia e do centro, mas foi um dos maiores êxitos da história em matéria ideológica, porque convenceu, cooptou ou comprou toda a liderança política latino-americana, com algumas exceções, e me refiro a exceções que contam, porque temos os partidos das esquerdas ululantes, mas esses não contam.

Em que outras áreas houve continuísmo?
Há um elemento de continuísmo menos visível: o abuso dos decretos de necessidade e urgência – equivalentes às medidas provisórias no Brasil –, que são muito importantes na experiência de De la Rúa. Não há instituição mais desacreditada na Argentina do que o Congresso, pela corrupção, pelo roubo, pela falta de seriedade. Por isso é que as pessoas se animam com a estória do tal “custo da política”, que é um argumento absurdo porque, na verdade, o problema grave da Argentina não é o custo da política – embora seja verdade que é preciso reduzi-lo. Mas o povo quer que os políticos desapareçam ou que cada vez tenham menos influência e menos recursos.

Como se explica o fracasso da Frepaso5, que era uma esperança quando surgiu no cenário político com 30% dos votos em 1995? Por que se desperdiçou essa oportunidade de introduzir um novo ator progressista?
Por várias circunstâncias. Primeiramente, a Frepaso foi um fenômeno eminentemente mediático, ou seja, por baixo dela não havia uma estrutura partidária minimamente organizada. Era um líder indiscutível, Chacho Álvarez, que usava sua presença mediática de maneira admirável. Tanto é assim que a primeira reunião efetiva da Frepaso, de acordo com uma certa norma institucional, só aconteceu no final de 1999, quatro anos depois dela ter tido uma presença importante nas eleições. Isto é, foi uma coisa absolutamente caudilhesca, baseada nos meios de comunicação de massa, que expressava a inquietude do eleitorado, mas sem ter nada por baixo.

Tenho a impressão de que o povo visualizava uma possibilidade de mudança, que se expressava no discurso de Chacho Álvarez de defesa da ética na política.

O discurso da ética, que sempre aparece na Argentina, é valioso, mas no fundo oculta coisas muito importantes. Chacho levantou esta bandeira, mas de forma alguma fez uma crítica ao neoliberalismo. E foi impossível conciliar o discurso de transparência ética e administrativa com a vigência dos princípios da política econômica neoliberal, que ele nunca questionou.

É por isso que ele renunciou?
Não, eu acho que ele renunciou porque se deu conta de que não havia nada que o sustentasse. No fundo, Chacho conduziu pessimamente a dinâmica da Alianza. E, além do mais, resistiu em fazer o que deveria ter feito: organizar e canalizar o conflito social na Argentina. Em vez de fazer isso, a Alianza tentava disfarçar o conflito e evitar que este se manifestasse.

No seu livro A Coruja de Minerva, você desenvolve uma concepção de democracia que gostaria que comentasse resumidamente.
Eu digo que a democracia implica um programa radical de reorganização da vida integral de nossas sociedades, e que os princípios sobre os quais isso se apóia são contraditórios com os do mercado, que regem a vida pública na América Latina, que sofreu um processo de mercantilização; tudo se mede por seu custo, por seu preço, em função de sua rentabilidade. Dizem que o Estado é uma empresa, o que é um absurdo. Então, a prática da democracia foi-se adequando a essa mudança fundamental mediante a qual os países latino-americanos foram renunciando à sua vocação nacional e se convertendo, graças à traição dos grupos dirigentes, em mercados. Hoje se fala muito pouco de países em vias de desenvolvimento; Argentina, Brasil, México são mercados emergentes. Devemos essa degradação ao neoliberalismo, a seus cultores locais, à classe dirigente que admite que a bússola para orientar sua gestão no governo deve ser a resposta dos mercados e não o bem-estar popular. Isso se traduz numa concepção minimalista, procedimental da democracia. Democracia na Argentina hoje significa que a cada dois anos elegemos algum representante e que a cada quatro anos elegemos um presidente, ou um governador, mais nada.

Qual é sua opinião sobre o papel dos novos atores do movimento social como a Central dos Trabalhadores Argentinos?
O papel do novo movimento sindical argentino, como a CTA, é bem positivo, mas sua força é muito pequena e insuficiente para mudar as coisas. Não temos nenhum movimento sindical poderoso e com vocação de esquerda como no Brasil. O movimento sindical majoritário é profundamente conservador, para não dizer reacionário; é macartista, anti-socialista, anticomunista. São as duas CGTs, a dissidente também – há uma diferença de matizes, mas que obedecem mais a ambições pessoais que a visões políticas.A CTA, que é representativa de uma esquerda ou centro-esquerda moderada, tem uma força muito menor que as outras.

Como você vê o cenário político futuro?
A experiência do menemismo danificou profundamente o partido peronista e o justicialismo. A experiência da Alianza praticamente liquidou a Frepaso e prejudicou seriamente o Partido Radical. O que vejo é um sistema político tremendamente debilitado. Os grandes partidos já não têm condições de responder às demandas da cidadania, não geram fervor, adesão, interesse; há uma desorientação muito grande. A apatia política está chegando a níveis nunca vistos. Faz seis meses que quem governa efetivamente a Argentina é Cavallo.

Há possibilidade de revitalização do Partido Justicialista?
Talvez, mas muito pequena. Tudo está indo por um mau caminho. Provavelmente veremos um crescimento de alguns dos partidos novos como o ARI6 e talvez o Pólo Social7. Eu diria que mais o ARI, mas também não acho que se deva depositar muito entusiasmo neste. Minha impressão é de que o ARI é uma nova Frepaso, embora respeite muito mais sua dirigente máxima, a deputada Elisa Carrió, que tem demonstrado ser muito mais convincente em sua crítica ao neoliberalismo que Chacho.

Acredito que ela possa fazer algo positivo, mas isso é muito prematuro. A Argentina está num estado de efervescência subterrânea onde o desinteresse pela política é muito marcado.

Você vê alguma perspectiva de intervenção da sociedade civil e dos parlamentos para modificar o rumo do Mercosul?
Há uma perspectiva, mas ainda não temos um Mercosul social, muito menos um Mercosul político. Temos um Mercosul das grandes empresas. É necessário apontar os avanços que estão ocorrendo, pequenos, mas que existem, no Mercosul sindical. É preciso avançar mais na coordenação dos movimentos sociais. Temos que reforçar muito a presença conjunta no Fórum Social Mundial. Este é muito importante como âmbito fundamental de construção. Não devemos esperar pelos governos, porque estes não vão querer que haja um Mercosul social e político. Os partidos sim, talvez possam querer. Mas há um problema, enquanto no Brasil vocês têm um grande partido político de massas como o PT, ele não tem interlocutor aqui.

A idéia seria que o Mercosul fosse algo mais que este mero acordo empresarial. E pode chegar a ser. Há um Mercosul de universidades que está avançando, há o Mercocidades. Algo bom pode acontecer. Mas é preciso que o Brasil exerça uma liderança muito enérgica; espero que aconteça em 2002. Porque o Brasil é o único país sul-americano que tem forte gravitação internacional. E não é questão de falsos chauvinismos, eu espero que o Brasil assuma a liderança e a Argentina tem que se alinhar atrás dela, e mais ainda se for com um governo progressista, de esquerda; aí acho que se pode tentar uma recuperação do Mercosul, colocando pela primeira vez a idéia de um Mercosul com um sentido político e social muito diferente do que teve até agora.

Tradução de Celina Lagrutta

Ana Maria Stuart é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) – USP e assessora da Secretaria de Relações Internacionais do PT.