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Coleção O Século XX é leitura insubstituível para alunos e professores de História

“A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca...”
Eric Hobsbawm1


Os historiadores do século XX não foram os primeiros a dividir e a contar a história em séculos. O cristianismo referia-se ao “século” para denominar a vida humana na Terra, em contraste com a vida espiritual, mas foi apenas no século XVI que eruditos passaram a fazer referência a uma duração de cem anos. No setecentos, o século passou a ser identificado a partir de uma característica específica ou das relações entre tempo e poder, sendo associado a algum “grande personagem” (Voltaire escreve, em 1751, Le siècle de Louis XIV). Mas é o século XIX que faz triunfar de maneira sistemática essa marcação cronológica, dotando-a de unidade e sugerindo que a história muda na virada dos séculos. Ao analisar os sistemas de medida do tempo, o historiador Jacques Le Goff considera que essa forma de enquadrar a história permitiu um maior controle do tempo, dividindo-o em períodos mais longos. Por outro lado, tal divisão em séculos não corresponde a qualquer realidade específica2.

Com efeito, o “Breve Século XX” de Eric Hobsbawm começa em 1914 e se encerra com o esboroamento da União Soviética. Nada há de fortuito nesse balizamento cronológico: os anos da eclosão da Primeira Guerra Mundial ao colapso da URSS “formam um período histórico coerente já encerrado”. Entre outros fatores, o que confere coerência e sentido a um “século de oito décadas” é o caráter global dos acontecimentos traumáticos que o marcaram, em especial a transnacionalidade das crises que afetaram em escala crescente várias partes do globo. Em nenhum outro momento da história existiu uma “economia mundial única, integral e universal” capaz de transcender as características particulares das diferentes formações nacionais3.

Não é por outra razão que o livro O século XX, organizado por Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira e Celeste Zenha, começa na formação da economia-mundo européia a partir do final da Idade Média, quando teve início o processo de unificação do mundo pelo chamado capitalismo comercial. A obra é composta por três volumes (900 páginas), que totalizam 24 capítulos, dos quais cerca de um quarto dedica-se ao período do século XVI à eclosão da Primeira Guerra Mundial. A ênfase nesse período pode causar ansiedade no leitor que, inadvertidamente, adquiriu o livro para entrar imediatamente no século em que viveu. Para leitores mais afinados com conceitos historiográficos, o primeiro volume poderá parecer uma introdução teleológica e determinista ao século XX, ou seja, tudo o que nele ocorreu já estaria gestado e prefigurado nos quatro ou cinco séculos anteriores.

Não se trata disso. O século XX foi marcado, entre outros aspectos, por um duplo processo: pela mundialização do capitalismo e pelo triunfo dos valores burgueses. Assim, o livro dedica quase duas centenas de páginas a três temas fundamentais para o entendimento daquele duplo processo: a natureza histórica do capitalismo, desde o final da Idade Média até o colonialismo do século XIX; as revoluções burguesas (com ênfase nos “casos” inglês, francês, norte-americano, alemão e japonês); e o colonialismo no século XIX.

Mas o século XX também foi marcado pela resistência ao capitalismo e à partilha do mundo pelas nações economicamente mais desenvolvidas. Assim, dois outros textos destinam-se à análise da emergência da classe operária, das mulheres e de “uma vasta plebe urbana” no cenário político do século XIX e da luta pela descolonização e independência em países da África, Ásia e Oceania desde as últimas décadas do século XIX até 1914. O primeiro volume termina onde começa o Breve Século XX: na Primeira Guerra Mundial. É neste ponto que ganham sentido os temas precedentes. A guerra imperialista e global, fruto da competição entre as potências beligerantes que disputavam a palmo mercados e capitais, abalou o Tempo das Certezas. Passou a ser sistematicamente questionada a crença irrefreável na capacidade auto-reguladora do mercado, na expansão ilimitada das nações mais industrializadas, no progresso como resultado da Razão.

Com a guerra, finda uma era. Outra se inicia: O Tempo das Crises. O segundo volume abre com a crise do liberalismo, no centro da qual estavam os Estados Unidos, país beneficiário da Primeira Guerra Mundial, credor no mercado internacional, dono de invejável prosperidade material, mas em cujos porões se anuncia a crise de 1929, enraizada na natureza monopolista do capitalismo norte-americano. O entreguerras é, por outro lado, o período da afirmação do socialismo, do comunismo e dos fascismos. Todos, a seu modo, foram uma resposta ao liberalismo, tratados em três capítulos sob a perspectiva de uma abrangente diversidade histórica.

Mais do que o triunfo do bolchevismo e das promessas de uma “revolução mundial”, a Revolução Russa e a construção do socialismo se apresentam sob múltiplas contradições que jamais abandonariam a história da URSS, sobretudo o problema da autodeterminação dos povos não-russos e o modelo socialista associado ao terror stalinista e ao partido político organizado em moldes leninistas. O fascismo, talvez o tema melhor trabalhado na obra, é submetido a uma conceituação refinada e a uma tipologia capaz de dar coerência a um fenômeno histórico geralmente reduzido ao chamado totalitarismo.

As décadas de crise, que desembocaram na Segunda Guerra Mundial, foram sucedidas por cerca de 25 anos gloriosos do capitalismo. Essa Era de Ouro de implantação radical de uma economia-mundo foi o período do triunfo sobre o fascismo, expansão do fordismo, extraordinários avanços científicos e tecnológicos e afirmação dos discursos sobre os valores democráticos do Ocidente. Merece destaque o texto sobre a Guerra Fria, entendida não apenas como conflito, mas também como sistema integrador dos interesses expansionistas das superpotências em sua disputa pela hegemonia mundial. A consolidação do “projeto social-democrata para a humanização do capitalismo”, motivada pelo medo da influência dos avanços sociais soviéticos no movimento operário nos países capitalistas, encerra o segundo volume.

O Tempo das Dúvidas, subtítulo do último volume, engloba temáticas bastante diversificadas, mas articuladas, em grande parte, pelo problema da “questão nacional” (soberania dos Estados nacionais) frente a um mundo cada vez mais globalizado. O volume pode ser dividido em duas partes. A primeira vai da expansão à desagregação do socialismo, passando pelas lutas de libertação nacional e crise dos impérios na África e Ásia, pelas ditaduras e guerrilhas na América Latina, pela “questão do Oriente Médio” e pelas rebeliões de 1968. A segunda parte estende-se da globalização aos desafios que se colocam no limiar do século XXI, passando pela revolução científico-tecnológica, destacando-se o impacto da mídia e da informática.

Essa síntese dos temas contemplados em O século XX é certamente mais enumerativa do que analítica. Seria impossível no breve espaço de uma resenha acompanhar a exposição de 23 autores que colaboraram em obra tão alentada, com enfoques, estilos e problemas diferenciados. Vale ressaltar que são todos especialistas nos temas para os quais foram escalados a escrever.

Cabe, então, apresentar o aspecto mais importante do livro: o público para o qual foi prioritariamente concebido e a estratégia de sua elaboração. O século XX é destinado a alunos de graduação em ciências humanas e, sobretudo, a professores do 2º grau. E nisso reside seu principal mérito. Quem já lecionou História Contemporânea, seja no ensino médio, seja em cursos de graduação, conhece perfeitamente a dificuldade de escolher o que tratar em sala de aula quando o assunto é o século XX. O professor de História Moderna, por exemplo, esbarra em dificuldades menores, pois encontra um campo temático consagrado (Renascença, Reforma, Estado Absolutista, Revoluções Burguesas) e um bom aporte bibliográfico. Quanto ao século XX, são mais raras as boas sínteses, há a ilusão de que o “tempo presente” é mais acessível ao conhecimento do que tempos remotos e aumenta a perplexidade diante do vasto leque temático a ser abordado (quantos alunos já não disseram: “o curso acabou e nem chegamos a ver Modernismo, Guerra Civil Espanhola, Guerra Fria, Maio de 1968, Descolonização...”?).

São inúmeros os assuntos tratados em O século XX, cada um dos quais pode ser lido de maneira autônoma. No entanto, encontram-se articulados por questões bem definidas, periodizações que dão coerência ao processo histórico, sem caírem no engodo do abandono da cronologia. Vista em seu conjunto, a obra oferece uma leitura multifacetada e abrangente do século XX, sem se tornar um manual panorâmico com penduricalhos factuais que, ao serem lidos, vão despencando da cabeça do leitor. Os organizadores esclarecem logo na apresentação que os textos da coleção “estão mais interessados em levantar e apresentar questões, debater problemas, propor hipóteses interpretativas, em suma, estimular e enriquecer a reflexão e a perspectiva dos leitores”.

Mas é justamente nesse ponto que se revelam alguns desequilíbrios. Por um lado, a coleção se caracteriza pela fuga ao paroquialismo acadêmico e, assim, pela abertura à diversidade institucional e à pluralidade de estilos e orientações teóricas dos autores. Por outro, talvez seja inevitável que uma obra dessa magnitude deixe margem a algumas discrepâncias. Há textos, como o denso capítulo “Os fascismos” de Francisco Teixeira da Silva, que se estruturam em bases fortemente conceituais, entrando de algum modo na seara do debate historiográfico. “Globalização e nova ordem internacional” de Octavio Ianni, por exemplo, também segue um corte de caráter mais conceitual, mas sacrifica totalmente as informações históricas. Em sentido inverso, alguns textos são bastante descritivos, ricos em detalhes factuais ou apresentam uma inócua cadeia enumerativa e seqüencial de informações (ver, por exemplo, o artigo de Leandro Konder no volume 2, p. 73).

Há outras pequenas diferenciações internas à coleção que não a comprometem, mas podem ser diluídas em outras edições. Talvez pela complexidade do assunto, o texto de Keila Grinberg, “O mundo árabe e as guerras árabe-israelenses”, é o único a apresentar notas de rodapé em forma de verbetes. No entanto, diversos outros temas e fatos também mereceriam melhor explicação, satisfazendo a curiosidade e o interesse do leitor, por exemplo, quanto ao caso Dreyfus, às revoluções de 1848 e à França de Vichy. Mas algumas lacunas são contrabalançadas por excelentes indicações bibliográficas, filmográficas e cronológicas.

É ocioso afirmar que em toda obra a seleção dos assuntos obedece a determinados critérios. Mas alguns temas e questões ausentes, mesmo em trabalho tão volumoso, também poderiam ser de alguma forma contemplados em outras edições. Na história de um século em que a condição feminina passou por uma verdadeira revolução, é de se lamentar o silêncio sobre a “história das mulheres”. Em nenhum outro período histórico houve tamanha expansão urbana como no século XX, mas uma análise sobre as cidades e sua relação com o campo é apenas tangenciada e diluída nos textos. A ênfase nos aspectos políticos, sociais e econômicos deixou à margem as inovações no campo das artes. Em um texto sobre a América Latina, que enfoca o peronismo na Argentina, as revoluções Cubana e Sandinista e o militarismo no Peru, causa estranheza o completo silêncio em torno do Chile de Allende e Pinochet.

Tais problemas, porém, não invalidam as qualidades da coleção. O êxito quanto aos seus propósitos é indiscutível. Se o já clássico A Era dos Extremos é leitura insubstituível, exige, no entanto, que alunos e professores, aos quais O Século XX se destina, tenham muitas referências históricas para acompanhar o fôlego de Hobsbawm. A obra organizada por Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira e Celeste Zenha é um “livro de divulgação”, mas que não faz concessões aos apelos do mercado pelo didatismo fácil e pela condescendência dos autores.

Coleção O Século XX - Volume 1: O tempo das certezas, 280 páginas/ Volume 2: O tempo das crises, 302 páginas/ Volume 3: O tempo das dúvidas, 322 páginas, organização de Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira e Celeste Zenha, Editora Civilização Brasileira, 2000.

Fernando Teixeira da Silva é professor na Universidade Metodista de Piracicaba e autor de A carga e a culpa. Os operários das Docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 1937-68.