Internacional

O longo ciclo de expansão da economia mundial nos anos 90 teve como referência a recuperação da economia norte-americana que, depois de um período de crescimento elevado, está entrando em um ciclo de desaceleração ou, talvez, recessão

Os acontecimentos violentos do 11 de setembro nos Estados Unidos implicam uma alteração significativa nos cenários econômicos para a potência hegemônica e para o mundo? A resposta é: muito provavelmente, não. Há cerca de um ano já se delineava claramente um cenário de desaceleração da economia norte-americana. O dilema que havia no ano passado persiste na atualidade: a desaceleração pode se transformar em recessão profunda e duradoura. A trajetória futura de médio prazo dependerá, em grande medida, da disposição do governo norte-americano de realizar gastos públicos substantivos, mais especificamente, de transformar o atual equilíbrio fiscal, em um elevado déficit.

Na ausência de conflitos bélicos, Bush mostrava-se ambivalente e, provavelmente, seria levado a um certo equilíbrio entre os gastos sociais e os gastos na indústria de armamentos. Os acontecimentos de Nova York e Washington acabaram com a ambivalência de Bush que, agora, está na confortável posição de poder concentrar os gastos no complexo industrial e militar norte-americano. No que diz respeito aos efeitos macroeconômicos, faz pouca diferença deixar de gastar 100 bilhões de dólares em programas sociais para gastá-los em conflitos bélicos.

Os dados divulgados no início de setembro mostraram que a renda da economia dos Estados Unidos cresceu somente 0,2% no segundo trimestre de 2001 em comparação com igual período do ano anterior. Depois de um longo período de crescimento elevado, a economia norte-americana está entrando em um ciclo de desaceleração ou, talvez, recessão. O longo ciclo de expansão da economia mundial nos anos 90 teve como referência básica a recuperação da economia norte-americana a partir de 1992. A partir de 1995 os EUA apresentaram taxas de crescimento econômico significativamente elevadas pelos padrões históricos de países capitalistas avançados. No período 1995-2000  o PIB dos EUA cresceu a uma taxa média anual de 4,3% e o PIB mundial cresceu 3,1% anualmente. Esta diferença, bem como o peso dos EUA na economia mundial, mostram que eles desempenharam o papel de locomotiva do sistema econômico internacional nos últimos anos do século XX.

A mudança drástica na conjuntura econômica nos EUA a partir do terceiro trimestre de 2000 pode ser explicada pela interação de quatro fatores: queda dos investimentos, redução dos preços das ações, aumento da taxa de juros e elevação do preço do petróleo. Três destes fatores são de natureza endógena, enquanto o último é, em certa medida, de natureza exógena à economia norte-americana.

Alterações em variáveis importantes da economia mundial servem, principalmente, para ressaltar elementos centrais da dinâmica econômica internacional. O primeiro refere-se ao papel-chave da economia americana para a evolução da economia mundial (fenômeno da hegemonia de uma economia que representa cerca de 20% do PIB mundial). O segundo trata da crescente integração entre economias nacionais, que faz com que os mecanismos de transmissão internacional de pressões, fatores desestabilizadores e choques tornem-se mais complexos e operem com maior velocidade (fenômeno da globalização). E, por fim, a crescente relação entre o lado real e o lado financeiro nas principais economias do mundo (fenômeno que pode ser denominado de financeirização).

No contexto da hegemonia norte-americana, da globalização e da financeirização, defrontamo-nos com a questão central para a economia mundial: A economia norte-americana terá entrado em um ciclo recessivo curto, que reverterá em dois ou três trimestres? Ou, a economia norte-americana está entrando em um longo período (três ou quatro anos) de crise profunda?

Se a resposta positiva for para a primeira pergunta, estaríamos frente a uma situação otimista para a economia mundial. Este cenário otimista poderia ser denominado de “freio de arrumação”. Se, ao contrário, a expectativa predominante é de uma crise longa na economia dos EUA, estaríamos com um cenário pessimista para a economia mundial, que poderia ser denominado de “descarrilhamento”.

Problemas na locomotiva norte-americana

A alteração na política monetária norte-americana, com a redução da taxa básica de juro, pode ser determinante da reversão na conjuntura para uma situação mais favorável. Houve sete reduções sucessivas nos oito primeiros meses de 2001. A taxa básica de juro (taxa anualizada de empréstimo interbancário de um dia) reduziu-se significativamente: de 6,5% em janeiro para 4,5%, em abril, e 3,5% em agosto. Na semana seguinte aos bombardeios de Nova York e Washington o Banco Central norte-americano reduziu-a para 3%.

O quadro favorável acima poderia ser reforçado com a estabilização dos preços das ações nas bolsas norte-americanas, a queda do preço do petróleo no mercado internacional e a recuperação da confiança dos consumidores. Neste sentido, cabe destacar a influência das expectativas mais favoráveis quanto ao nível de emprego futuro e à estabilidade do mercado de capitais (mais precisamente, da valorização dos ativos financeiros). Ademais, é preciso uma expectativa favorável quanto ao nível de endividamento privado nos EUA de tal forma que seja evitado o processo de restruturação de dívida.

Os consumidores foram os principais responsáveis diretos pela expansão econômica norte-americana a partir de 1992. Neste ano, a taxa de poupança privada foi de 19% e, a partir de então, ela tem mostrado uma evidente e forte tendência de queda. Em 2000 a taxa de poupança privada bruta nos Estados Unidos foi de aproximadamente 13%. Considerando somente a taxa de poupança pessoal, verifica-se o mesmo fenômeno. Esta taxa reduziu-se de mais de 6% em 1992 para cerca de –0,5% em 2000, isto é, houve despoupança pessoal em 2000,1. Esta queda da poupança causou altos níveis de endividamento nos Estados Unidos.

A retomada dos investimentos, principalmente em setores intensivos em tecnologia, pode recolocar a economia numa trajetória de expansão da demanda agregada e de manutenção de níveis baixos de desemprego. Não se deve, ainda, deixar de lado o efeito de estabilização (crescimento) da política fiscal do governo norte-americano. O equilíbrio fiscal deixa uma enorme margem de manobra para políticas expansionistas orientadas para programas sociais ou para o complexo industrial e militar.

No que se refere aos investidores, cabe ressaltar que há estimativas que apontam que a desvalorização do preço das ações nas bolsas de valores dos Estados Unidos, de 25% entre março de 2000 e março de 2001, provocou uma perda de riqueza financeira da ordem de US$ 4 trilhões2. Esta redução da riqueza tem como resultado uma contração do consumo na medida que os investidores sentem-se mais pobres (ou menos ricos) e, portanto, procuram aumentar sua poupança para recompor o estoque de riqueza. Deve-se mencionar, ainda, que esta queda do preço das ações implicou a primeira redução do patrimônio líquido dos domicílios nos Estados desde o pós-Segunda Guerra Mundial3.

Dólar: o combustível da locomotiva

O elevado déficit em conta corrente dos EUA (derivado do saldo negativo da balança comercial de bens) é, sem dúvida alguma, o combustível da locomotiva norte-americana. Em 2000 o déficit da balança comercial de bens dos Estados Unidos foi superior a US$ 450 bilhões, sendo que o déficit em conta corrente foi de aproximadamente US$ 430 bilhões, tendo em vista que os Estados Unidos são superavitários na conta de serviços. O déficit de transações correntes como percentagem do PIB foi de 4,3% em 2000. As estimativas para 2001-02 não mostram mudanças significativas.

A situação norte-americana é fortemente contrastante com a européia e, principalmente, com a japonesa. O Japão apresenta um significativo superávit de balanço de pagamentos da ordem de 2,7% do seu PIB. A situação das contas externas das principais economias européias é relativamente saudável. Na Europa, a maioria dos países apresenta déficits relativamente baixos ou um certo equilíbrio, enquanto a França tem apresentado um superávit de aproximadamente 2,3% do seu PIB. As previsões para o curto e o médio prazos não encerram mudanças significativas nas contas externas das principais economias do mundo.

O déficit em conta corrente dos EUA é uma variável de grande relevância para a economia mundial na medida que se constitui numa poderosa força de expansão da demanda agregada em escala global. Se tomarmos unicamente como referência do saldo da balança comercial norte-americana, temos que um déficit superior a US$ 450 bilhões anualmente tem um importante impacto multiplicador de renda na economia mundial.

Nos últimos anos, o enorme déficit de balanço de pagamentos dos Estados Unidos tem sido financiado pelo investimento externo direto, principalmente de empresas européias e japonesas que procuram oportunidades de lucros e crescimento na economia norte-americana.

O ingresso de investimento externo direto nos EUA também responde à necessidade de empresas do resto do mundo de se localizarem naquele país para se beneficiarem da sua capacitação nos setores de tecnologia da informação e da comunicação.

O financiamento do déficit norte-americano resulta também da posição privilegiada dos EUA nos sistemas financeiro e monetário internacional. O diferencial positivo de taxas de juro (com relação, principalmente, ao Japão e aos países-membros da área do euro) tem sido um determinante importante dos investimentos financeiros nos Estados Unidos.

Ademais, a existência do elevado prêmio de liquidez dos ativos denominados em dólar faz com que a economia norte-americana seja de grande atração para os fluxos internacionais de capitais. Esta força de atração do mercado de capitais deriva do alto peso específico da economia norte-americana na economia mundial, da trajetória de crescimento econômico de longo prazo dos EUA, e das funções desempenhadas pelo dólar como moeda internacional.

O financiamento da contas externas norte-americanas pode se tornar mais difícil no futuro. Os atrativos de crescimento e de lucro na economia norte-americana desaparecem em um contexto de recessão. Se a situação recessiva se estender por alguns anos (cenário “descarrilhamento”), o próprio potencial de crescimento do mercado interno norte-americano fica comprometido e, portanto, reduz-se sua força de atração do investimento externo direto. Se agregarmos a um ciclo recessivo um ciclo de acomodação do processo de inovação tecnológica, reduz-se ainda mais o estímulo de novos ingressos de investimento externo direto no país.

A situação futura das contas externas dos EUA tenderá a ter uma influência no sistema de taxas de câmbio das principais moedas da economia internacional. O problema mais relevante refere-se a uma depreciação abrupta e significativa da moeda norte-americana em relação às outras moedas. A redução do valor em moeda nacional do patrimônio dos investidores internacionais nos Estados Unidos poderá implicar uma contração da liquidez internacional. Na medida que se reduz o peso de ativos “seguros” denominados em dólares no portfólio dos investidores internacionais, há um movimento de recomposição de portfólio no sentido de se reduzir o peso de ativos de maior risco (como, por exemplo, títulos de empresas e governos). Países em desenvolvimento altamente endividados (como o Brasil) tenderão a se defrontar com dificuldades ainda maiores de acesso ao mercado internacional de capitais. A situação destes países somente seria menos frágil se houvesse uma queda expressiva e sustentável das taxas de juros internacionais, pois haveria um certo alívio no serviço da dívida externa.

E a locomotiva européia?

Como incerteza crítica de natureza macroeconômica, de grande relevância para o futuro da economia mundial, cabe destacar a situação das contas públicas das principais economias do mundo. O ponto central é que, na medida que a economia norte-americana desacelera ou descarrilha, há necessidade de uma força compensatória. Aqui, trata-se do tradicional problema de se encontrar uma locomotiva alternativa para a economia mundial. A economia do Japão continua com sérios problemas estruturais (inclusive um extraordinário desequilíbrio das contas públicas, após uma década de tentativas de políticas fiscais expansionistas). Mesmo após um forte processo de reestruturação, os bancos japoneses passam por dificuldades4. Portanto, neste início do século XXI, o papel de locomotiva da economia mundial ficou para a Europa Ocidental.

A situação das contas públicas dos países-membros da União Européia é relativamente saudável. Os critérios de convergência do Tratado de Maastricht levaram a um rigor fiscal. O déficit total dos países da União Européia equivale a 0,1% do PIB e significa uma situação confortável. Como conseqüência, a Europa tem um maior grau de liberdade no que diz respeito a políticas fiscais expansionistas, inclusive, na direção do chamado projeto Europa Social. Maiores gastos públicos poderiam ser orientados, por exemplo, para a redução do nível relativamente alto de desemprego, bem como para a ampliação da rede de seguridade social e a redução das desigualdades. Neste sentido, haveria escopo para que a força compensatória da economia européia (turbinada por políticas fiscais expansionistas) desse estímulo ao conjunto da economia mundial. Portanto, aumentariam as chances de ocorrência de um cenário mais favorável do tipo “freio de arrumação”.

A dificuldade maior reside no viés antiinflacionário do esquema de união monetária européia. No passado recente o Banco Central Europeu tem demonstrado, de forma clara, o seu compromisso com o combate às pressões inflacionárias, e mostrado baixa sensibilidade ao nível de atividade e à taxa de desemprego. Naturalmente, não se deve descartar a hipótese de mudanças políticas significativas no âmbito da União Européia que provoquem, pelo menos, a flexibilização do rigor monetarista do Banco Central Europeu. Estas mudanças são mais prováveis no caso de uma crise econômica séria em escala global (cenário “descarrilhamento”).

Brasil: o vagão descarrilhado

Na ótica macroeconômica é provável que a conseqüência mais significativa dos bombardeios nos EUA tenha sido a eliminação da ambivalência de Bush quanto aos gastos públicos. Aparentemente, Bush estava ambivalente e hesitante quanto à alocação de gastos sociais e gastos militares. Os bombardeios deixaram Bush na confortável situação de concentrar a política fiscal expansionista nos gastos militares em detrimento dos gastos sociais. Bilhões de dólares, que poderiam ser usados para combater a exclusão social e salvar vidas nos EUA – país mais rico do mundo –, serão usados, de agora em diante, para matar seres humanos em países pobres. A exuberância irracional da economia dos EUA deu lugar à irracionalidade chocante do governo norte-americano!

Além das variáveis econômicas específicas dos principais países desenvolvidos, o desempenho da economia mundial é determinado por desequilíbrios sociais (pobreza, desigualdade), tensões em nível regional e global (e.g., negociações na OMC e no âmbito de acordos regionais como o Mercosul e a Alca), e legitimidade institucional (e.g., nova arquitetura financeira internacional). Ademais, a volatilidade das bolsas de valores internacionais, bem como o extraordinário valor de capitalização dos mercados, fazem com que aumente o componente de incerteza na economia mundial.

Os cenários para a economia mundial (“descarrilhamento” e “freio de arrumação”) têm probabilidades de ocorrência não significativamente diferentes no futuro próximo. Neste início de século fica descartada, ademais, a trajetória de alto crescimento observada nos anos 90 do século passado. Portanto, países como o Brasil – verdadeiros “vagões descarrilhados”, marcados por forte vulnerabilidade externa – devem se preparar para crescentes restrições no cenário mundial. A implicação é evidente: na implementação de políticas econômicas externas restritivas (reduzir a liberalização) é mais aconselhável pecar por excesso de rigor do que por escassez. Caso contrário, haja Planos B, C,...

Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia Internacional da UFRJ.