Seria uma perda grave se Vinicius de Moraes não voltasse um dia a ser reconhecido como um dos grandes do século literário em que viveu
Seria uma perda grave se Vinicius de Moraes não voltasse um dia a ser reconhecido como um dos grandes do século literário em que viveu
A flutuação do gosto em relação aos poetas é normal, como é normal a sucessão dos modos de fazer poesia. Pelo visto, Vinicius de Moraes anda em baixa acentuada, e seria uma perda grave se não voltasse qualquer dia a ser reconhecido como um dos grandes do século literário em que viveu. Talvez o seu prestígio tenha diminuído porque se tornou cantor e compositor, levando a opinião a considerá-lo mais letrista do que poeta. Mas deve ter sido também porque encarnou um tipo de poesia oposto a certas modalidades consideradas mais representativas da modernidade. Refiro-me àquelas para as quais cada palavra tende a ser objeto autônomo, portador de maneira isolada (ou quase) do significado poético; ou, mesmo, apenas de valores sonoros que o substituem. Vinicius, ao contrário, fez poesia com palavras concatenadas de maneira a obter uma seqüência semântica que dissolve a autonomia delas num discurso poético articulado. Na história da literatura brasileira ele é um poeta de continuidades, não de rupturas; e o nosso é um tempo que tende à ruptura, ao triunfo do ritmo e mesmo do ruído sobre a melodia, assim como tende a suprimir as manifestações da afetividade. Ora, Vinicius é melodioso e não tem medo de manifestar sentimentos, com uma naturalidade que deve desgostar as poéticas de choque, geralmente interessadas em suprimir qualquer marca de espontaneidade e em realçar o cunho de artifício. Por vezes, ele chega mesmo a cometer o pecado maior para o nosso tempo: o sentimentalismo. Quanto à tonalidade afetiva da sua obra poética, talvez fosse possível resumi-la com os conhecidos versos de Manuel Bandeira:
(...)
direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás.
Isso lhe permitiu dar estatuto de poesia a coisas, sentimentos, palavras extraídos do mais singelo quotidiano, do coloquial mais familiar e até piegas, de maneira a parecer muitas vezes um seresteiro milagrosamente transformado em poeta maior. João Cabral disse mais de uma vez, com visível desvanecimento, que a sua poesia remava contra a maré da tradição lírica de língua portuguesa. Vinicius seria, ao contrário, alguém integrado no fluxo da sua corrente, porque se dispôs a atualizar a tradição. Isso foi possível devido à maestria com que dominou o verso, jogando com praticamente todas as suas possibilidades. Nada mais significativo do que observar na sua obra a oscilação que o leva e traz da prosa inspirada ao metro rigoroso, passando por versos livres de todos os feitios, inclusive o versículo de corte bíblico, que estava em moda quando começou a fazer poesia e lhe serviu de treinamento artesanal e espiritual, no tempo em que era um jovem católico aberto para sugestões metafísicas. Depois, deslizou para a esquerda e para outras maneiras, com muita versatilidade, mantendo sempre um toque de fervor, que nele é o halo que envolve todos os temas e todos os assuntos. Daí a capacidade de abordar por meio da métrica e das harmonias tradicionais situações e matérias que os modernistas e sucessores teriam preferido tratar com verso livre ou verso regular endurecido, despido de musicalidade. Mas ele consegue ser moderno usando metrificação e cultivando a melodia, com uma imaginação renovadora e uma liberdade que quebram as convenções e conseguem preservar os valores coloquiais. Rigoroso como Olavo Bilac, fluido como o Manuel Bandeira dos versos regulares, terra-a-terra como os poemas conversados de Mário de Andrade, esse mestre do soneto e da crônica é um raro malabarista.
Nada melhor para sentir a variedade e o alcance, mas também o vigor da sua mensagem do que a "Balada do Mangue", um dos poemas mais belos da literatura brasileira, feito num tipo de discurso que vale como reinterpretação atual de velhos poemas expositivos. Em sua obra há diversos exemplos dessa modernização, que lhe permite tratar com um toque de intemporalidade os temas aparentemente menos poéticos.
Os jovens de hoje, posteriores à revolução dos costumes sexuais, talvez não saibam que, no tempo em que o poema foi composto (decênio de 1940), a zona do Rio de Janeiro cortada pelo canal do Mangue era a concentração mais vistosa do que se denominava "baixo meretrício". A partir da sua realidade pitoresca e pungente Oswald de Andrade escreveu "O santeiro do Mangue" e Lasar Segall produziu uma série de desenhos que poderiam servir para ilustrar este poema. Talvez não saibam, também, que as "mulheres da vida" eram freqüentemente francesas e polonesas ("polacas") trazidas pelas poderosas organizações internacionais do lenocínio, isto é, o aliciamento e exploração organizada da prostituição com fins lucrativos. E que as pobres profissionais nesse nível inferior, privadas de outra opção na vida, obrigadas a praticar o sexo sem afeto ("enclausuradas sem fé"), ficavam se expondo nas portas e janelas (as "jaulas acesas"), seminuas ou com roupas berrantes, quase sempre chamando ruidosamente os clientes ("falando coisas de amor"). O mundo mudou tanto, que esses esclarecimentos devem ser necessários para a compreensão desse texto corajoso e contundente, feito há mais de cinqüenta anos. Ele corresponde a um traço peculiar da obra de Vinicius: construir a expressão violenta a partir de uma serenidade debaixo da qual podem crepitar a dor e a indignação. Aqui, a tragédia da prostituição é exposta com tonalidades que começam aparentemente brandas, nutridas de imagens florais e vão crescendo de intensidade até terminarem numa rajada de revolta que sugere a destruição, pelo fogo justiceiro da revolta, da sociedade que reduz a mulher a mercadoria cedida a preço vil. As flores contaminadas do começo são agora tochas incendiárias.
Este texto faz parte do livro Poemas, sonetos e baladas, publicado em São Paulo pela Editora Gaveta, do pintor Clovis Graciano, em tiragem limitada, no ano de 1946, mas estava pronto fazia tempo. Em 1943 Vinicius de Moraes veio a São Paulo entregá-lo ao editor e nessa ocasião fez dele uma leitura completa na casa de Lauro Escorel, na rua Manuel da Nóbrega, presentes apenas os donos da casa e eu. Lembro o impacto causado em nós três por este e outros poemas do livro, que marcou o amadurecimento do poeta.
Se ele tivesse querido publicar "Balada do Mangue" nalgum periódico daquele tempo talvez não tivesse podido; o tema era ousado e a censura era estrita, agravada pela ditadura do Estado Novo, moralista como costumam ser as ditaduras. Digo isso porque outro poema do livro, "Rosário", publicado na Revista do Brasil (3ª fase), motivou a apreensão do número pela polícia. Nele Vinicius contava a sua iniciação sexual, com a naturalidade lírica e tranqüila que, na sua obra, purifica qualquer tema ou qualquer palavra, por mais crus que sejam.
Antonio Candido é crítico literário, presidente do Conselho Editorial da Editora da Fundação Perseu Abramo