Internacional

Beatriz Sarlo aborda as raízes da crise social e cultural argentina

Editora da revista Punto de Vista e do site Bazaramericano.com, Beatriz Sarlo, professora da Universidade de Buenos Aires, dedica-se ao estudo da literatura, análises e história cultural, culturas urbanas e novas configurações da dimensão simbólica do social. Publicou em português Cenas da vida pós-moderna e Paisagens imaginárias: Intelectuais, arte e meios de comunicação. Para Sarlo as transformações ocorridas nos últimos anos em seu país rompem com o tripé em que se baseava a identidade argentina: ser alfabetizado, ter trabalho garantido e ser cidadão.

Mudou a sociedade argentina nos últimos 30 anos?
Há uma mudança de dimensão internacional que na Argentina ocorre da mesma forma que no resto do Ocidente, que pode ser chamada de "pós-modernidade". Trata-se de uma reorganização completa no campo da cultura, em seu sentido mais amplo, a partir da hegemonia dos meios de comunicação e do discurso audiovisual. É uma mudança forte, que se reflete, por exemplo, na leitura de jornais. A Argentina foi, durante o século XX, o país onde mais se lia jornais na América Latina e esteve entre os dez primeiros do mundo. Nos últimos dois anos, houve uma inflexão que não ocorreu no resto do mundo. Seria fácil dizer que é simplesmente efeito da crise, é provável que isso seja parte da explicação, mas essa mudança marca uma tendência cultural mais profunda, que a Argentina recebe da paisagem cultural ocidental internacional. Que conseqüências esta hegemonia do discurso audiovisual tem no estilo político? Que tipo de liderança política impulsiona? De que maneira destaca os elementos carismáticos? Estes últimos são elementos tradicionais reciclados com uma nova estética pelos meios de comunicação; qualquer político hoje tem que produzir um carisma mediático como condição para ser ouvido. Isto tem repercussões na reconfiguração da esfera política, na forma de processamento dos grandes debates, à medida que os meios audiovisuais precisam de caracterizações sumárias dos grandes problemas.

Você sustenta que o espaço público era democrático na Argentina no qual se compartilhavam expressões culturais comuns. Há um processo de elitização cultural em curso?

Há uma fratura socioeconômica fortíssima, que o país nunca tinha conhecido. A Argentina está vivendo um processo que ela mesma designava como "latino-americano" e do qual se sentia excluída. Mas hoje muitos de nós começamos a compreender que essa exclusão, que se fazia com um quê de soberba, já não existe. Nossos indicadores começam a marcar um aprofundamento muito forte das diferenças na pirâmide social. Tem-se acentuado os traços dependentes e periféricos. Junto com isso, ocorreu, no campo cultural, um processo de "brutalização" ou "bestialização" das elites. Nos últimos trinta anos surgiram novos setores da burguesia que são, do ponto de vista cultural, brutalizados. Isso provocou uma proximidade cultural muito maior entre essas elites e os setores dos quais estão separados por diferenças enormes do ponto de vista de renda. Tanto as elites políticas como as econômicas estão bestializadas e têm pouca disposição intelectual para se encarregarem de assumir a complexidade do panorama presente.

Houve, por um lado, fratura social, fratura do espaço público, do espaço urbano, o que contradiz todas as tradições mais ou menos integradoras do país. E, por outro, houve um "achatamento" das diferenças culturais, no sentido de que há traços culturais compartilhados transversalmente pela sociedade e que têm relação com essa hegemonia dos meios audiovisuais. E, em terceiro lugar, houve a crise da instituição a partir da qual se construiu a distinção cultural da Argentina: a escola pública e obrigatória, que foi a primeira instituição universal de cidadania, que era um direito e uma obrigação para homens e mulheres. A escola pública foi o primeiro aparato de Estado completamente universal e teve uma eficácia muito forte na incorporação de centenas de milhares de imigrantes a uma cultura comum, ainda que com a perda de elementos culturais diferenciados de origem. Hoje somos muito sensíveis a essas perdas culturais. Mas, de todo modo, houve um sistema escolar público e gratuito que, em meados do século XX, havia incorporado a totalidade da população, e o país parecia ter solucionado para sempre os problemas de escolarização. Não é o que vemos hoje. E não porque a maioria das crianças não esteja na escola pública. Na verdade, hoje as crianças são incorporadas à escola pública, mas por razões que não têm a ver com os objetivos da educação e sim porque nela comem, ou porque nela passam horas nas quais são subtraídas de um mundo de violência, de droga ou de indeterminação completa. E isso agrava a situação em termos de transformações culturais.

Estas seriam as transformações que podemos observar se pensamos no longo período do século XX. Há, porém, transformações das últimas duas décadas, sobre as quais eu não tenho a mesma visão pessimista. A saída da ditadura militar e o tipo peculiar de transição democrática da Argentina – que foi a única na América Latina que incluiu um julgamento dos responsáveis pelo terrorismo de Estado – deixaram uma marca muito difícil de apagar. Nem as leis aprovadas pelo governo de Alfonsín para atenuar as conseqüências do processo, nem o indulto outorgado por Menem puderam apagar o efeito simbólico do que significou a imagem de televisão na qual os nove comandantes-em-chefe foram despojados de sua gradação militar, condenados a prisão perpétua e onde se disse em viva voz que haviam sido assassinos, torturadores, seqüestradores. Não há, em todo o passado argentino, uma cena de justiça equivalente. Essa cena foi possível porque houve movimentos de direitos humanos que, durante a ditadura militar, em extrema solidão, mantiveram vivo o tema da responsabilidade dos militares sobre as mortes e desapararecimentos e também foi possível porque o presidente Alfonsín cumpriu o compromisso assumido. Esta cena foi um divisor de águas, um ponto de não retorno, no sentido de que anula o que havia sido o obstáculo político fundamental para a instalação de uma república na Argentina: a questão militar. Não existe hoje um ator militar aceitável, nem cultural nem politicamente.

Instala-se a democracia?

Instala-se pelo menos uma perspectiva republicana e institucional. Uso a palavra "perspectiva republicana", porque considero que a democracia implica uma série de intervenções não realizadas. Esta não tem somente uma cara republicana, tem também uma cara social, igualitária, solidária, e essas faces da democracia estão ausentes. Mas, como não existe um ator militar no cenário, é possível confiar num caminho em direção a uma democracia num sentido mais pleno. Esta parece ser uma frase ingênua e otimista num momento em que a Argentina está em uma crise terrível.

Você falou da escola pública como fator de homogeneização, mas também a universidade pública cumpriu papel importante como propiciadora de igualdade de oportunidades e de resistência aos diversos modelos de dominação. Como se coloca a comunidade universitária perante uma crise que já leva algumas décadas?
O problema universitário pertence a outra dimensão. Na questão da escola pública, caso exista uma vontade política para encontrar recursos econômicos, no médio prazo seria possível encontrar uma solução. Os sindicatos de professores estão dispostos a trabalhar ativamente na busca dessas soluções, na medida que se reparem algumas das injustiças que estão padecendo na questão salarial. Aí há atores sociais que poderiam impulsionar certas transformações importantes. Já a questão da universidade é diferente. Na transição democrática, isto é, de 1984 em diante, quando entramos na universidade, nenhum de nós tinha experiências anteriores, exceto como alunos. Eu saí da universidade como aluna em 66 e voltei como professora titular em 84 – um curriculum que não se entende em nenhum país do mundo. E, em 84, não aproveitamos a oportunidade de refletir sobre a universidade. A universidade democrática, que tinha sido também um campo de preparação para a política – todos os presidentes civis da Argentina vêm do movimento universitário, assim como quase todos os dirigentes médios do radicalismo e da esquerda – e que tinha sido um campo muito importante para a democratização socioeconômica, era uma universidade arcaica. E nós entramos nela levantando as mesmas bandeiras de 1918. Como tínhamos tido 18 anos de ditadura, durante os quais não houve governo tripartite na universidade nem liberdade de ensino e durante os quais os professores foram perseguidos, restauramos um clima que respondia imaginariamente aos lemas da Reforma Universitária de 1918. Não colocamos os problemas da nova universidade; substituímos apenas professores e modos de agir próprios das ditaduras militares por professores e modos de governo próprios da democracia.

Mas os cortes orçamentários constituem obstáculos sérios...
Os cortes orçamentários têm impedido a universidade de trabalhar com eficiência, levar a cabo a pesquisa e a docência com a dedicação e intensidade necessárias. A Universidade de Buenos Aires continua sendo importante na América Latina, mas isso não vai durar muito. Eu penso que já hoje a USP é mais importante. A UBA perdeu, por operação das ditaduras, e por não ter orçamentos à altura das necessidades, o caráter de ponta que teve durante um longuíssimo período, no qual foi a grande universidade da América Latina, e isso tem a ver com o fato da Argentina não ter feito uma alocação forte de recursos na pesquisa. Mesmo assim, o setor que está mais fortemente em crise orçamentária na educação não é a universidade, mas as escolas primária e secundária. Então, o que nós universitários temos que discutir não é simplesmente de quanto dinheiro a universidade precisa, mas de como esse dinheiro vem de um pacote maior, que é o da educação pública. Não é somente a questão dos cortes orçamentários; o que se deve discutir em profundidade é a questão do ingresso irrestrito a qualquer carreira. Estamos destinando recursos seguindo as modas culturais e respeitando as vocações de adolescentes das camadas médias como se fossem o fator chave para organizar a educação pública. Ou seja, se há 2000 adolescentes por ano que querem estudar desenho da indumentária ou em cursos da imagem e do som, a universidade tem que se perguntar se isso é possível em relação às verbas que vão para a escola primária, para a escola média e para suas tarefas de pesquisa. A universidade no deve ser o lugar onde se seguem as fantasias culturais das classes médias. Uma coisa é discutir o ingresso irrestrito, isto é, o direito de todo habitante de receber uma educação universitária, que eu continuo apoiando, e outra é se essa educação tem que incluir o financiamento público das vocações das camadas médias. Nós universitários não discutimos como seria um sistema de bolsas que garantisse a igualdade de oportunidades. Temos resistido a explorar todo princípio de financiamento que não seja o direto do orçamento nacional; temos resistido a explorar a questão de que os beneficiados com a universidade devem ter em relação a ela certas obrigações; não temos discutido a universidade num país injusto e no qual ela não faz senão reforçar essa injustiça, dado que não são os operários os que chegam a ela; os que têm educação universitária gratuita são filhos das camadas médias, provenientes muitos deles de escolas particulares muito caras.

Na Argentina, a literatura e as artes visuais, o teatro e o cinema tiveram um papel na criação e recriação do imaginário nacional. O que acontece hoje, neste contexto de desagregação?
Eu sou bastante pessimista nos termos culturais e educativos de que estávamos falando. A Argentina tem que aprender a ser segundo, terceiro, quarto e quinto, coisa com que nunca tinha sonhado. A princípio, tem que aprender a ser segundo do Brasil, o que é algo que não está incorporado na cabeça dos argentinos.

É o mito da geração de 1880, que viveu as glórias da Argentina do início do século XX, quando se pensava que ela estava entre os primeiros países do mundo?

Isto perdura como mito cultural. Mas o que também perdura é o reflexo convencido de que na América Latina a Argentina tinha uma liderança incontestável. É isso que acabou para sempre por razões de mudanças globais. Já não se pode ser um país importante a não ser que seja imensamente rico ou imensamente grande. A Argentina não é nem um nem outro, e portanto tem que aprender a ser o segundo do Mercosul. Isso é algo que, como choque cultural, é muito forte, e é uma das transformações que têm que ocorrer, em terríveis condições econômicas e sociais, e com um sistema político muito desarticulado, de partidos que não estão à altura das circunstâncias. Uma transformação cultural no sentido de situar-se de novo no mundo.

De outro lado, estão a cultura e as artes no sentido mais restrito do termo, e nesse campo eu não tenho a mesma perspectiva pessimista. A Argentina ainda tem um interessante contingente de escritores que vão surgindo a cada dez ou quinze anos, como é o caso de Juan José Saer, que é um romancista extraordinário, de Ricardo Piglia, e de mais jovens como Sergio Cheifec, Alan Pauls, Matilde Sánchez. O campo cultural nesse sentido ainda mostra uma mobilidade e uma dinâmica muito fortes.

Quais os efeitos da transnacionalização cultural na literatura e nas artes?
Na literatura acontecem duas coisas: uma que poderia ser efeito da chamada pós-modernidade, e outra que é efeito do sistema literário argentino em particular. O efeito da pós-modernidade é que hoje estão escrevendo escritores que têm em torno de 40 anos ou menos, cuja formação cultural são os meios de comunicação audiovisuais. Isso não quer dizer que não leiam, são hiper-cultos, hiper-literários, mas entra uma nova cultura que não estava presente na literatura anterior. Há uma nova cultura dos que fazem artes plásticas também. Este é um traço que tem a ver com uma paisagem cultural global. Mas também há um traço interno ao sistema literário argentino, que é um problema que está sendo colocado para gente que tem por volta de 40 anos: como escrever literatura argentina sem Borges? Este é um problema fundamental. Em uma literatura que não é fenomenal, mas que teve um escritor decisivo no século XX, como Jorge Luis Borges, os novos, que começam uma produção escrita e estética, enfrentam esse problema. Poderíamos dizer que é o mesmo problema que Borges encarou nos anos 20, quando a questão era como se colocar em uma literatura sem o modernismo, sem Lugones. Há zonas de exploração que marcam essa busca de como escrever sem Borges. Não "contra" Borges, mas "sem" Borges, porque escrevê-la contra Borges seria continuar reconhecendo sua centralidade. São escritores que geralmente o admiram mas que dizem: "como são as estratégias de representação? o que é um estilo sem Borges? É necessário um estilo?" É essa literatura que está se colocando problemas estéticos fundamentais. Não está perseguindo ao mesmo tempo a representação de uma referência imediata.

E os impactos das transformações na cultura política? Por que essa dificuldade de gerar uma forma diferente de fazer política? Há alguma relação com as perdas na geração vítima dos horrores das ditaduras?
A ditadura foi o pior que aconteceu à sociedade argentina em toda sua história, mas seria cômodo dizer que tudo é responsabilidade dela e do assassinato de 30 mil pessoas, porque teríamos assim a explicação e pronto... Seria cômodo, mas não ofereceria nenhuma solução. O problema de criar um novo espaço político é anterior à ditadura. Desde que tenho consciência política, ou seja, desde fins da década de 50, a questão era como criar um espaço progressista fora dos dois grandes partidos – o peronista e o radical –, ou mesmo dentro do peronista. O problema da política argentina sempre foi como ganhar bases populares para o campo progressista. Por isso é que setores da esquerda acreditaram que era possível trabalhar dentro do peronismo; dado que aí estava o povo. Foi o projeto dos Montoneros, do Peronismo Revolucionário etc. Dizer que nos falta uma geração é inexato; a ditadura militar matou 30 mil pessoas, não foram 7 milhões de judeus, ou seja, aqui não falta uma geração. E não se trata de diminuir os seus crimes; com o que fez já mereceu toda a condenação.

O problema é que a minha própria geração fez opções políticas muito equivocadas, que não iam em direção à construção de um espaço político, de um instrumento, de uma hegemonia cultural e política progressista. Fez opções milenaristas, fundamentalistas, em muitos casos impulsionando movimentos terroristas incompreensíveis para os setores sociais que queria incorporar. E esse problema acentua-se no momento atual, quando, efetivamente, a cultura chamada "pós-moderna" é menos politizada que a tipicamente modernista dos anos 60 e 70. Essa cultura tem um traço ideológico extremamente interessante que é seu antiautoritarismo, mas este tem formas menos interessantes para a construção política, que é sua prescindência no compromisso político cotidiano. Então o problema continua em aberto. A última aventura que fez pensar que estávamos avançando em direção à construção desse instrumento político foi a Frente Grande e a Frepaso, dirigidas por Chacho Álvarez e Fernandez Meijide. Mas se cometeu um erro, que foi pensar que o importante era derrotar o peronismo, em vez de pensar que o importante era acumular força social e política. Teria sido possível governar muito bem cidades da importância de Buenos Aires e Rosário sem se complicar com o situacionismo político.

Mas a Frepaso está governando essas duas cidades...
Está governando numa situação em que já desapareceu como instrumento político, precisamente porque tomou o caminho de uma aliança tendo como único objetivo derrotar o justicialismo.

É somente a questão da aliança com a União Cívica Radical a responsável pelo fracasso ou haveria também uma resistência em fundar um partido com bases diferentes, com democracia interna? Que traços de cultura política há necessidade de remover para que isso aconteça?
Aí pesa a tradição política argentina, com identidades que estão tendendo à dissolução mas que foram sólidas pelo menos nos primeiros dez anos da transição democrática. Em segundo lugar, pelo menos a primeira parte da década menemista foi completamente hostil, no plano da ideologia geral, à configuração de um espaço progressista, saiu-se da hiperinflação e as pessoas disseram: "Não há nada pior, seja o que for, venha o que vier", e até 97, 98, todos estávamos grogues. O fenômeno da hiperinflação é, tanto do ponto de vista econômico como do cultural, diferente de uma inflação. É difícil se entender de fora. Antes da primeira hiperinflação, eu perguntava aos economistas qual era a diferença e eles me diziam: "você vai perceber quando ela chegar"; a destruição completa da relação entre dinheiro, valor e preço é um desvario absoluto; a desaparição do Estado, que não pode garantir qualquer possibilidade de se construir um projeto, nem de uma semana. Isso deixou uma ferida muito grave que não se cura facilmente. E ademais, houve grandes erros dos políticos que poderiam ter tido uma oportunidade de construir o espaço progressista. Um desses erros foi pensar que dava para construir política só mediante a televisão. Acreditar que com dois ou três comunicadores fortes e inteligentes, como Chacho Álvarez, podia-se prescindir da longa tarefa de uma organização territorial. Está demonstrado que podemos viver no mundo da pós-política, porém, há um momento, inclusive o eleitoral, no qual as organizações territoriais são fortes. Além disso, há um momento da confiança, da lealdade construída cara a cara, não somente com o grande dirigente da televisão, e sim com uma rede de dirigentes.

Não houve exercício de cidadania?
Efetivamente, isso foi pulado. Eu estive na Frepaso durante quatro anos, até que se fez a Alianza, aí me retirei. O que pensávamos era uma loucura: com um bom grupo de intelectuais e um bom grupo de líderes mediáticos poderíamos solucionar a questão do partido progressista!

Como você vê as novas articulações como ARI e Pólo Social?
Eu aí não vejo nada. Deixo de lado o Pólo Social, que é mais uma tentativa de populismo cristão que no fundo despreza a política, que diz: "quando eu chegar ao parlamento não vou ter assessores, não vou receber salário..." Cada vez que surgiu um dirigente assim e chegou ao parlamento, passados três dias, já estava completamente inutilizado, porque para estar num parlamento precisa-se de muito saber político, de um partido e de especialistas. O Pólo Social, na verdade, é um sintoma. As expectativas que pode despertar o seu discurso socialista-cristão primitivo nos indicam que há dezenas de milhares de pessoas que não têm nada e que sentem que há alguém que lhes promete uma consideração, um olhar para elas mesmas como pessoas. É um sintoma de algo horrível que está acontecendo nos setores subalternos, mas o Pólo Social não pode solucionar isso com sua política. No caso do ARI, acho que Elisa Carrió poderia ter continuado com uma atuação política e parlamentar muito interessante; é uma intelectual muito bem formada teoricamente. Mas de novo vem a idéia de buscar o curto-circuito, de procurar o atalho; e em meio à busca do atalho emergem os traços egolátricos que ela tem e sua conversão religiosa. Eu não tenho nada contra a religião, sempre e quando seja, sobretudo para um político – não digo para massas miseráveis que só têm esse meio de expressão –, algo de índole privada. E, além disso, ela se uniu com um Partido Socialista que tem uma figura respeitável do movimento dos direitos humanos, mas como partido não significa nada. Eu não vejo nenhuma perspectiva aí, a despeito dos votos que possa obter nas eleições; também a Frepaso obteve muitíssimos.

Que peso tem o fluxo cultural internacional, ancorado na cultura de massas com foco nos EUA, no processo de transformação da identidade nacional?
Eu tenho uma visão das identidades que não é nem essencialista nem substancialista. Penso que a identidade argentina se baseava em três coisas: ser completamente alfabetizado, ter o trabalho garantido – era um país de pleno emprego – e ser cidadão. Esta era inclusive a base sobre a qual os argentinos se sentiam diferentes e, injustamente ou não, superiores ao resto da América Latina. A Argentina teve ditaduras horríveis que de alguma maneira puseram em questão a identidade; e, além disso, os argentinos ainda têm que fazer um balanço por terem se transformado numa espécie de monstros nacionalistas quando a ditadura militar invadiu as Ilhas Malvinas, e terem pensado que derrotaríamos a Inglaterra dirigidos por um general bêbado. Isto é uma ferida que ainda não foi processada. Mas o fundamental da identidade do argentino típico, que aparecia nas piadas na América Latina, era o convencido, seguro de si mesmo porque era cidadão, porque ninguém ia poder dizer para ele "você não sabe com quem está falando"; essa era uma frase que os argentinos pensavam que era possível no Brasil ou no Chile. Na Argentina, esta frase dirigida a um pobre ou a um inferior era impossível porque havia direito de cidadania incorporado. Tinha-se uma escola que fazia que as crianças sempre tivessem dois ou três anos a mais de escolaridade que seus pais. E o emprego estava garantido.

Havia uma cultura de Estado de bem-estar.
Estado de bem-estar "a la criolla", muito deformado, mas que era alguma coisa; isto é o que quebrou, e essas coisas não se rearticulam rapidamente.

Então temos uma sociedade cujo único traço que conserva com muita força na cultura das camadas médias é o antiautoritarismo, que se aprendeu depois das ditaduras militares, o que não é pouco, mas também não suficiente para a constituição de uma identidade. E volto à questão que coloquei no início, de como aprender a ser cidadão de um país secundário.

Na interlocução com o Brasil, em torno da construção do Mercosul, é possível pensar num processo de formação de uma identidade regional?
Do ponto de vista cultural, a comunicação é muito insuficiente e ainda está baseada em milhões de argentinos que desembarcam durante as férias nas praias de Florianópolis falando uma língua que eles acham que é comum. Os contatos culturais são poucos, embora se possa dizer que há pequenas modificações. Por exemplo, há muitos cursos de português em Buenos Aires e isso nunca tinha acontecido. Os quadros médios de algumas empresas dizem que é necessário aprender português. Isto nos diz que alguma coisa está mudando. Porque a comunicação com o Brasil estava baseada numa relação completamente assimétrica, na qual os brasileiros nos falavam em espanhol e nós respondíamos em espanhol. Os brasileiros sempre se viraram para falar em espanhol. Esta é uma pequena modificação que pode apontar um caminho.

Voltando ao Mercosul: no marco das relações bilaterais com o Brasil, que propostas poderiam ser impulsionadas?
A existência de projetos de cooperação que já estão em andamento é um ponto. O reconhecimento que o Brasil faz muito melhor que a Argentina em algumas questões de política cultural também seria um ponto. Porque para criar novos laços entre países, o que se deve ter é uma visão mais ou menos realista daquilo que esses países realizam. Então, o reconhecimento de que há políticas culturais e universitárias no Brasil muito mais eficientes e interessantes seria outro ponto. Os atores que estão envolvidos nas relações são um fator importante. Não é casual a relação muito intensa, e de anos, que Buenos Aires tem com Porto Alegre. Com São Paulo ainda não se vê. Por outro lado, penso que é crucial o cenário mudar; se o PT ganhar as eleições, aí teremos um cenário decisivo.

Qual seria o impacto do triunfo do PT nas eleições de 2002?
Seria muito importante. O PT no governo do Brasil teria certamente que traçar linhas de relação em direção ao Mercosul, que não fossem estritamente a oscilação entre a subordinação e o abandono na qual ele vive hoje.

Tradução Celina Lagrutta

Ana Maria Stuart é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) – USP e assessora da Secretaria de Relações Internacionais do PT.