Internacional

Entrevista com Nicola Bullard

Nicola Bullard é figura destacada do movimento contra a globalização neoliberal. Australiana, vive há muito tempo em Bangcoc, na Tailândia, onde atualmente integra o Focus on the Global South, um dos mais importantes centros de pesquisa vinculados ao movimento. Participante do I e do II Fórum Social Mundial e integrando seu Conselho Internacional, ela nos oferece uma visão do movimento e do fórum de uma ótica muito diversa da que estamos normalmente confrontados no Brasil, o que nos permite vislumbrar seu efetivo alcance internacional

Você participa ativamente do movimento contra a globalização neoliberal que emergiu em Seattle. Como se envolveu com isso?
A resposta mais simples é: porque sou católica e todos os católicos são movidos pela culpa e, portanto, temos de expiar nossos pecados. Simples, mas com um fundo de verdade em função da educação que recebi de minha família. Da parte de minha avó, sobretudo, havia um forte sentimento de que o mundo não era como deveria ser, que os trabalhadores não eram bem tratados, havia muitos problemas em relação à justiça e assim por diante. Desde minha adolescência estive envolvida com organizações que lidavam com ambientalismo e esse tipo de coisas. Na universidade – onde estudei geografia física, algo pouco relacionado com o que fiz depois –, me envolvi bastante na política estudantil, e desde então trabalho com diferentes ONGs, organizações de mulheres, de direitos humanos...

Você fez a universidade nos anos 70?
Em 1976 e por três anos. Sou australiana e o início dos anos 80 foi o começo de um tipo de neoliberalismo na Austrália. Havia uma enorme recessão, a situação econômica estava péssima, muito desemprego e vários outros problemas. Eu trabalhava para o sindicato dos professores, no escritório nacional, e muito ligado às instituições internacionais de professores.

Na metade da década tiveram início os programas de ajuste estrutural e, por isso, tínhamos muito contato com sindicatos de professores na África e na América Latina. Já sentíamos bastante o impacto dos programas de ajuste e na América Latina era a época das ditaduras. Por isso havia muito trabalho de solidariedade, particularmente com o Chile e a Argentina. Com o sindicato foi que se deu, de fato, minha formação, ainda muito jovem, eu lidava com questões dos ajustes estruturais, das dívidas e de como isso se relacionava com os projetos políticos. Foi a época em que as pessoas começaram a prestar mais atenção ao papel das corporações transnacionais; ainda havia um centro transnacional nas Nações Unidas. Nesse sentido, atuar nesse período foi mais interessante se comparado à década de 90, quando pouco houve de avanços na agenda política.

Trabalhei todos esses anos em diferentes organizações, lidando com questões da mulher, direitos da criança etc., mas não poderia dizer que fui ativista de linha de frente. Mais tarde me mudei para a Tailândia. Acho que o momento decisivo em termos de clareza de orientação política foi a crise financeira do Sudeste Asiático, já que as contradições, os perigos, a destruição do sistema atual – dominado pelo mercado financeiro – tornaram-se bastante óbvios.

O que a fez ir para a Tailândia?
A Austrália é um lugar muito bonito, mas também muito distante, parado. A gente pode passar a vida toda naquele país e não ver nada mudar. Então, me candidatei a um emprego em Bangcoc: meu primeiro trabalho lá foi numa campanha contra a exploração sexual de crianças, prostituição infantil. Morei no Camboja alguns anos, trabalhando com várias ONGs, fazendo estudos sobre o impacto do desenvolvimento, o papel do Banco Mundial, da Comissão Européia e outros organismos. Foi quando o Focus foi montado.

Nessa época você trabalhava com economia?
Não exatamente, não sei muito sobre economia, mas eu estava tentando entender um conjunto bastante óbvio de políticas econômicas que estava sendo imposto a países como o Camboja, bem como o impacto delas na eqüidade, no acesso aos serviços públicos, na saúde e educação, na agricultura familiar. Foi muito importante entender que as chamadas “políticas de desenvolvimento” estavam muito ligadas a uma visão global de como os países devem se encaixar em uma economia global. Os países são vistos como pedaços econômicos de um quebra-cabeças, cada qual com sua vantagem comparativa em uma economia global. Assim, em um país como o Camboja, extremamente pobre, devastado por guerras e sublevações políticas, não há espaço para que se discuta desenvolvimento social ou desenvolvimento da democracia, já que a prioridade é o desenvolvimento econômico e fazer do país parte integrante da economia globalizada. O que, a meu ver, é um absurdo porque força os países a correrem antes mesmo de aprenderem a andar. Depois do Camboja fui trabalhar para o Focus em Bangcoc no começo da crise financeira.

O que é o Focus?
Focus on the Global South, prefiro chamá-lo pelo nome completo porque essa idéia de Sul Global é muito importante para explicar nossa visão do mundo. Obviamente a globalização é um processo totalizante, mas há muitas pessoas em muitos países que são sistematicamente excluídas do processo porque ele é competitivo. Portanto, há perdedores e em sua maioria estão no Sul, mas também há perdedores no Norte. A idéia é de que há perdedores em ambos hemisférios que, de certa maneira, tornam-se um Sul Global. Esse é um aspecto muito importante de nossa visão de mundo, porque nesse sentido é diversa da visão pós-colonial, terceiro-mundista de antiimperialismo. Claro que é uma visão baseada no antiimperialismo, mas traz em si um aspecto novo quando destaca a existência de um potencial de solidariedade entre as populações marginalizadas do Norte e do Sul. Essa perspectiva é uma das tendências fortes do movimento contra a globalização neoliberal.

Trabalhamos com pesquisa de políticas públicas, produzimos boletins e relatórios, estamos ligados a diversas redes de direitos humanos, de questões ambientais, de paz e desarmamento, de desenvolvimento, particularmente na região. Organizamos conferências, seminários e atividades visando juntar grupos de pessoas com orientações bastante diversas. Também trabalhamos com as organizações locais na Tailândia, possibilitando-lhes melhor compreensão e recursos para que participem do debate sobre políticas nacionais e internacionais.

Esse aspecto do trabalho é muito importante, sobretudo quando começamos a examinar o impacto da globalização neoliberal da perspectiva das pessoas, porque precisamos compreender como suas vidas são afetadas. Além disso, quando falamos em alternativas, precisamos saber das pessoas o que elas querem, que tipo de vida estão buscando, de quais instituições necessitam, que relações sociais buscam desenvolver e qual o papel do mercado em sua visão. E isso implica poder trazer alternativas concretas para a realidade.

Vocês acompanham a situação em outros países do Sudeste Asiático?
O grosso de nosso trabalho é na Tailândia, mas o Focus tem um pequeno programa na Índia, está envolvido em diferentes projetos no Vietnã, no Laos e no Camboja. Nesses países trabalhamos muito com os governos – no Laos e no Vietnã, a sociedade civil não é tão forte, embora ainda tenha muita força em organizações de massa.

Mas, retomando, você falava da crise asiática...
Até a crise financeira os chamados Tigres Asiáticos – as Filipinas, a Tailândia, a Indonésia – perseguiam um modelo de desenvolvimento particular, com crescimento orientado para a exportação baseado em pesados investimentos externos, para ganhar mais mercados exportadores para suas manufaturas e, em menor grau, para seus produtos agrícolas. E estavam sendo bem-sucedidos, tendo atingido um nível considerável de crescimento, de prosperidade, onde há uma grande classe média como resultado dessas políticas. Mas, na verdade, esses países não estavam praticando neoliberalismo, já que seguiam um modelo que havia sido desenvolvido na Coréia e em Taiwan, em Cingapura e Hong Kong, no qual havia uma alta dose de intervenção do Estado direcionando investimentos, protegendo certos setores, utilizando muita tecnologia do Japão e dos Estados Unidos. Assim, o modelo de desenvolvimento não era neoliberal uma vez que havia muita regulação e intervenção estatal.

O sucesso da Coréia, por exemplo, foi baseado numa política redistributiva forte e agressiva por parte do governo. No começo da década de 50, houve uma grande reforma agrária na Coréia, enormes investimentos em educação e na indústria, que era fortemente protegida pelo Estado porque os coreanos estavam se capacitando antes de se arriscarem a entrar no mercado global.

Países como Indonésia, Tailândia e Filipinas tentavam emular esse modelo, mas cada vez mais viam-se sob forte pressão do Banco Mundial e do FMI para liberalizarem o setor financeiro e o comércio. Então, à medida que perseguiam seu modelo particular de desenvolvimento, de crescimento baseado em exportação, expunham diversos setores de suas economias a produtos importados, tornando-se cada vez mais dependentes dos mercados financeiros. Isso ocorria porque os níveis de comércio passaram a declinar não apenas no setor agrícola mas também nas manufaturas, porque o mundo só pode consumir um certo número de microchips, torradeiras etc. Houve diminuição nos retornos e as economias não conseguiam progredir para o nível seguinte, o nível do retorno obtido por meio do valor agregado de seus produtos. Esses países passaram a receber receitas cada vez menores por seus produtos, ao mesmo tempo que, por terem suas moedas atreladas a um dólar que se supervalorizava, tornavam-se menos competitivos no mercado global. Essa diferença na arrecadação cambial passou a ser financiada por dinheiro de curto prazo obtido nos mercados financeiros, o que tornou esses países extremamente vulneráveis a ataques especulativos.

Sendo simplista, o que aconteceu foi que os mercados financeiros detectaram uma certa vulnerabilidade dessas economias por conta do enorme desequilíbrio entre o tipo de financiamento e as atividades financiadas. Os financiamentos de curto prazo eram usados para financiar investimentos de longo prazo. Isso colocou os governos em uma situação bastante difícil porque, por um lado, a atratividade dos investimentos baseava-se sobretudo em ter garantia de retornos, implicando que a moeda fixa atrelada ao dólar passasse a ser muito importante para a manutenção da confiança dos investidores. Por outro lado, quanto mais freqüentes eram os ataques especulativos, mais oneroso se tornava para os governos manterem a moeda atrelada, redundando na perda de bilhões em reservas nacionais na defesa da moeda. Enfim, na Tailândia, quando as reservas já tinham baixado para US$ 2 bilhões, com um dispêndio de US$ 35 bilhões defendendo a moeda, o governo foi forçado a desvalorizar a moeda, o que precipitou uma tremenda recessão. Quando todo o sistema financeiro entrou em colapso em decorrência da somatória de empréstimos não saldados com a fuga de capitais, a dívida externa subiu e o custo das importações cresceu, ao que se aliou o tremendo custo de refinanciar dívidas aumentadas.

Isso tornou evidente para todos que aquele modelo específico de desenvolvimento, em que o Estado passava a ter participação cada vez menor com uma crescente liberalização tanto do comércio quanto da circulação de capitais, criara uma enorme vulnerabilidade aos mercados globais e que as economias menores, como a da Tailândia, eram eclipsadas diante da força dos mercados financeiros. No caso da Ásia, o que ficou bastante visível foi a tremenda importância do financiamento internacional, do capital financeiro, em termos do destino das pequenas e médias economias e de sua impotência diante disso. Ao mesmo tempo o FMI entra em cena com velhas respostas, políticas completamente inapropriadas. Necessitava-se uma abordagem do tipo keynesiana que impulsionasse a demanda e a atividade econômica, mas todas as políticas impostas pelo FMI tiveram efeito contrário. As altas taxas de juro, na realidade, constrangeram a atividade econômica doméstica, retirando o dinheiro que havia sido injetado no sistema, e a atividade econômica local foi estrangulada. A partir disso, a bolha econômica movida pela especulação – edifícios residenciais e comerciais, esse tipo de especulação imobiliária – entrou em colapso e desapareceram os empregos de dezenas de milhares de camponeses que complementavam a receita obtida no campo com o trabalho na construção civil em Bangcoc.

Isso aconteceu também em outras partes, além da Tailândia.
Esse foi o caso de muitos países da Ásia. Para os agricultores é quase impossível que ganhem o suficiente para subsistir unicamente com o trabalho do campo, porque o preço das commodities está muito baixo, estão competindo com o agribusiness, dispõem de pouca terra... Isso os torna dependentes das economias urbanas para complementarem a renda rural. Essa possibilidade ruiu, forçando muitas pessoas a retornarem ao campo, onde muito mais gente passou a dividir cada vez menos dinheiro. Observa-se então um aumento da pobreza, em termos absolutos, nas áreas rurais. Enquanto em um plano há uma crise pessoal e um problema social dramático para dezenas de milhares de famílias da Tailândia, no terreno político ofereceu-se uma oportunidade ímpar de examinar as políticas do Banco Mundial e do FMI e do papel do mercado financeiro e questionar o modelo de desenvolvimento como tal.

Creio que toda a evolução a que temos assistido nesses últimos três ou quatro anos, em termos de construção de uma crítica mais incisiva sobre o modo como o capitalismo globalizado opera, deveu-se à crise na Ásia. No Focus buscávamos utilizar toda e qualquer oportunidade que se oferecia para examinarmos as especificidades dos acontecimentos na Tailândia e vinculá-las ao desenvolvimento do mercado financeiro internacional e também às políticas das instituições financeiras internacionais. Creio também que, sem a crise financeira da Ásia, Seattle não teria sido possível, não teria havido aquele clima de questionamento, crítica e protesto.

Como se dá esse vínculo?
Da maneira como vemos, o Banco Mundial, o FMI e a OMC são instituições absolutamente essenciais para o neoliberalismo porque, seja por meio do poder financeiro, seja pelo poder do sistema comercial baseado em regras impostas por essas instituições, elas são capazes de determinar as políticas econômicas e comerciais dos países em desenvolvimento. Têm enorme poder de coerção, grande influência sobre esses países e, no caso da OMC, dispõem de fato de um sistema de regras e mecanismos de resolução de disputas e sanções que compelem os países a segui-las. Assim, ao estabelecermos esses vínculos entre as três instituições e vê-las como instrumentos do neoliberalismo, e os elos entre as políticas de liberalização comercial promovidas pela OMC e as políticas de liberalização financeira do FMI, nos capacitamos para mostrar que o sistema tem uma lógica. Rejeitamos a lógica do sistema porque ele diminui a autonomia das pessoas e dos governos para estabelecerem políticas econômicas que, de fato, beneficiem as populações. Isso criou um clima em que as pessoas passaram a olhar para os impactos dessas políticas. Podíamos ver centenas de milhares de pessoas perdendo seus empregos, tornando-se mais pobres...

Como os movimentos sociais da Ásia vêm, desde a crise, enfrentando as políticas neoliberais?
Cada país representa uma situação muita específica e, por isso, tentarei apresentar as diferenças sobre as quais tem recaído meu interesse. Na Coréia, a KCTU (central sindical) em sido eficiente ao verbalizar sua oposição ao neoliberalismo e ao sistema antigo e na busca pelo novo: “Rejeitamos o FMI e também rejeitamos o sistema antigo, a união corrupta entre um governo forte e o chaebol”. Os grupos na Coréia prepararam-se bem para enfrentar o novo cenário, porque lutaram durante anos contra um sistema político bastante opressivo.

Na Tailândia, que também padeceu uma longa história de ditaduras militares, a democracia vem crescendo desde o final dos anos 80, a despeito de um sério revés em 1992. Há também uma distinção bastante aguda entre a classe média urbana, pessoas progressistas, orientadas para os direitos humanos e civis, e a população rural, que está muito mais preocupada com questões de subsistência, terra, água, sustentabilidade e manutenção de um certo modo de vida. Nem sempre há harmonia entre as duas orientações. O movimento mais importante surgido nos últimos anos, a Assembléia dos Pobres, tem se mostrado capaz de assegurar um lugar no debate político. Essa organização de massa composta por grupos de agricultores, trabalhadores informais e alguns pequenos sindicatos, recentemente obteve importante vitória contra um projeto de construção de uma enorme represa, uma luta de dez anos.

Os moradores dos vilarejos próximos à área vinham resistindo à construção da represa, que acabou sendo construída, mas ainda assim continuaram lutando contra a destruição de suas fontes de sustento, a pesca e a agricultura, recusando compensações. E recentemente o novo governo da Tailândia abriu as comportas da represa, que voltou a ser um rio. Uma tremenda vitória dos membros dessa comunidade pois, apesar de reabertas provisoriamente, por seis meses, será muito difícil fechá-las novamente.

Isso é uma evolução política observável nas Filipinas e na Tailândia, uma espécie de populismo político. Joseph Estrada (ex-presidente filipino que sofreu impeachment) é um típico exemplo desse  populismo político, sem o apoio da esquerda tradicional, mas com enorme apoio da população pobre. Esse é um grande desafio para a esquerda, que precisa descobrir maneiras de engajar pessoas que são arregimentadas por gente como o Estrada.

Em grau menor, o mesmo vem ocorrendo na Tailândia, onde Thaksin (Shinawatra, primeiro-ministro), o homem mais rico do país que fez fortuna nas telecomunicações, propôs em sua plataforma a moratória da dívida dos agricultores, grandes investimentos em dinheiro junto às comunidades e a criação de um sistema de saúde universal. O país tem um sistema de saúde bastante bom, mas o preço é excludente. A universalização do acesso seria um enorme progresso. Claro que essas políticas têm enorme apoio popular. Os partidos políticos do passado nunca se engajaram em discussões sobre políticas públicas e não têm políticas, somente interesses. Com Thaksin, passamos a ver o início de um debate político cuja agenda é pautada pela discussão de políticas públicas. Ele é um capitalista interessado em proteger os capitalistas tailandeses contra os estrangeiros e os “mercados” estão temerosos de que ele dê preferência aos capitalistas locais em detrimento dos estrangeiros. A situação é complexa, porque não se pode apoiar Thaksin como se ele fosse progressista, quando ele é populista. No entanto, ele vai fazer algo que trará benefícios materiais para as pessoas. Com Estrada, que era inegavelmente corrupto, ocorreu a mesma coisa.

A situação na Indonésia é bem diferente, não?
A repressão na Indonésia durou mais de trinta anos, e se contarmos o período do domínio colonial dos holandeses, é como um século de feroz repressão. Há enormes diferenças no tocante à distribuição da riqueza, ao equilíbrio de poder e à cultura. A Indonésia é bastante variada do ponto de vista cultural. É um arquipélago com milhares de ilhas e as mais variadas culturas: hindus, budistas, cristãos, muçulmanos, animistas. E, por conta dos longos anos de repressão, sem uma sociedade civil e instituições capazes de absorver o impacto sobre o sistema. Nesse vácuo, as instituições mais poderosas reforçam seu poder e, no caso da Indonésia, o poder vem a ser de cunho fundamentalista islâmico, porque as fundações islâmicas estão presentes no plano das estruturas institucionais. Mas talvez os militares venham a assumir o poder.

A pretexto de combaterem os movimentos de libertação nacional?
Do Aceh e os outros... O fato é que o conflito deve ser uma constante, porque ninguém está interessado em um sistema federativo que distribua os recursos eqüitativamente. O que está acontecendo na Indonésia é uma espécie de transmissão de poder sem poder e sem recursos. Os conflitos de que temos ouvido falar muito nas Moluccas e em Aceh baseiam-se até certo ponto em questões culturais e religiosas, mas precipitados pela crise econômica que atingiu o país e empurrou as pessoas para uma situação desesperadora e uma acirrada luta pelos recursos.

Você falava sobre a relação com Seattle.
O que, na verdade, foi uma crise do capitalismo – a que se manifestou no Sudeste Asiático – precipitou a possibilidade de que não apenas as pessoas na Indonésia, na Tailândia e na Coréia pudessem observar o problema e questionar. Houve um interesse real nos Estados Unidos e na Europa por parte da mídia, dos ativistas, dos acadêmicos e dos analistas, que puderam usar esse exemplo para formular questões maiores acerca da sustentabilidade desse tipo de sistema de capitalismo, do papel do mercado financeiro, da falta de democracia e da marginalização e precarização causadas por esse modelo de desenvolvimento.

Como está o movimento social contra a globalização na Ásia hoje?
O movimento é diferente em cada lugar. Posso falar, com alguma autoridade, sobre a Tailândia e aí se destaca o caso da Assembléia dos Pobres. São pessoas que rejeitam por completo o sistema da forma como está hoje, que não querem fazer parte do mercado, que querem economia local, práticas agrícolas sustentáveis, subsistência assegurada, e que não acreditam que o mercado lhes dará essas coisas. Por isso elas rejeitam os valores e instituições neoliberais. Abrindo um rápido parêntese, a Ásia é muito diferente da América Latina e da África. A crise da dívida, os programas de ajuste estrutural e o tipo de penetração do neoliberalismo na Ásia são muito superficiais. O que realmente ocorreu com a crise financeira é que ela abriu as portas para o neoliberalismo puro e há uma forte rejeição ao FMI, que é claramente identificado com os Estados Unidos e esse tipo de abordagem. O FMI é, até para a classe média de Bangcoc, o inimigo, o povo o detesta.

E o modo de vida americano também?
As pessoas gostam do modo de vida americano, mas não gostam que lhes digam o que fazer. Elas gostam de ter seu próprio país, sua autonomia, isso é muito forte na Tailândia, onde há forte identidade com o país, e por isso essa resistência é tão profunda. Na Indonésia a questão talvez seja um pouco mais problemática porque a identidade indonésia não é tão forte quanto a javanesa, a de Aceh e outras dessas identidades regionais. Já na Tailândia observa-se um movimento social que, nos primórdios, não era explicitamente antiglobalização mas está bastante articulado. Inicialmente rejeitava-se um modelo particular de desenvolvimento, mas hoje há a ligação entre a globalização e a mercantilização de todos os aspectos da vida humana.

Este é também o caso de alguns dos movimentos mais conhecidos internacionalmente, principalmente na Índia, como o dos atingidos pela represa de Narmada, que irradia sua influência para todo um conjunto de movimentos no continente. Sua principal liderança, Medha Patkar, ajudou a construir um novo paradigma de rejeição ao imperialismo, à dominação ocidental, à maneira anglo-saxônica de pensar, ao projeto de globalização – eu diria que ela sistematiza uma profunda rejeição à idéia de modernidade embutida no atual modelo de desenvolvimento. Na Índia, por ser um país profundamente intelectual, há uma crítica muito arraigada, que não é apenas aos impactos materiais gerados por um tipo de modelo de desenvolvimento, mas uma crítica a partir de uma ótica que examina os impactos culturais, sociais e espirituais da dominação exercida pela lógica econômica, destrutiva e que vem de fora. Aí, percebe-se que os movimentos se opõem tanto aos governos locais como à globalização porque, para eles, os inimigos são os mesmos. Mas ainda que haja um forte movimento social na Índia, ainda não assumem presença internacional, essa ligação é algo que ainda precisa ser construído.

Isso é muito importante, porque a Índia é um país tão grande, com uma população enorme e tamanha diversidade interna que para seus movimentos a realidade é a realidade da Índia. Somente hoje, com a liberalização da economia nacional, é que a importância e o impacto da globalização começaram a se fazer sentir. Há uma enorme resistência à OMC, alguns dos melhores trabalhos sobre o Tratado sobre Patentes e Propriedade Intelectual (Trips) foram feitos por pessoas como Vandana Shiva, que representam a vanguarda da crítica aos impactos destes acordos na cultura e no mercado locais. Creio que há uma importante tarefa a realizar no sentido de encontrar um caminho para que os movimentos nacionais, na Índia, na Indonésia, na Tailândia, e em outras partes, possam participar mais ativamente de eventos como o Fórum Social Mundial.

A luta contra a globalização neoliberal é geral, mas as alternativas não são universais...
Claro que não. Há múltiplas alternativas e, eu acho que a dimensão hoje mais importante em nosso trabalho como movimento é desconstruir, como costumamos dizer, desglobalizar, de forma  que as pessoas possam exercitar o livre arbítrio e criar novas estruturas, novas soluções, para problemas que não têm solução há séculos e que foram agravados pelo universalismo mercantil.

Formulamos a idéia da desglobalização, nas discussões no Focus, a partir de nossa experiência no contexto do Sudeste Asiático, em sociedades em que a presença das formas de organização e da cultura anterior à sua inserção no processo de mercantilização generalizada é ainda forte.

Com desglobalização não estou, naturalmente, falando de retirar os países do Sul da economia internacional, mas de reorientar suas economias, ao invés da produção visando a exportação, a produção visando o mercado local. É o redirecionamento da maioria do recursos financeiros para o desenvolvimento interno, ao invés de tornarmo-nos dependentes de investimentos estrangeiros e dos mercados financeiros internacionais. Trata-se de implantar as medidas, há muito adiadas, de redistribuição da renda e da terra para criar um mercado interno dinâmico, que funcione como âncora da economia, retirando a ênfase do crescimento quantitativo, medido em termos mercantis, para maximizar a eqüidade, permitindo reduzir radicalmente os desequilíbrios ambientais. Isso exige não deixarmos as decisões econômicas estratégicas para o mercado, mas submetê-las à escolhas democráticas, sujeitando o setor privado e o Estado ao constante monitoramento da sociedade civil organizada. Significa criarmos um novo complexo de produção e trocas que inclua cooperativas comunitárias, empresas privadas e estatais e exclua as corporações transnacionais, integrando o princípio da subsidiaridade na vida econômica, encorajando que a produção de bens no planos da comunidade e nacional, caso ela possa se dar aí a um custo razoável, possibilitando preservar a comunidade.

Estamos, portanto, falando de uma estratégia de reempoderamento do local e do nacional em detrimento do global, uma estratégia que subordina conscientemente a lógica do mercado, a busca da eficiência na redução dos custos, aos valores da seguridade, eqüidade e solidariedade social. Trata-se de reinserir a economia na sociedade ao invés de ter a sociedade dirigida pela economia.

Isso só pode ocorrer dentro de um sistema global de governança econômica alternativo. Não devemos ter como meta substituir a tríade FMI-Banco Mundial-OMC, que impõe um sistema monolítico de regras universais, por outro global igualmente centralizado de regras e instituições, operando sobre princípios diferentes, mas também incapaz de trabalhar com a diversidade, nos moldes dos sistemas de planificação burocratizados. Necessitamos de desconcentração e descentralização do poder institucional e a criação de um sistema pluralista de instituições e organismos internacionais, guiados por acordos e compromissos amplos e flexíveis.

Quais as características fundamentais do movimento que possibilitam seu desenvolvimento e fortalecimento?
Penso que a melhor maneira de caracterizarmos o que está se desenvolvendo é tratarmos o movimento como um processo e uma cultura em vez de algo marcado por um projeto político claro e definido. O que ocorre no Fórum Social Mundial e, de forma mais geral, no movimento global, é uma real vontade de estarmos abertos e mantermos o processo aberto, não buscando predeterminar os resultados. De fato, dependendo de onde você vive, a história, a cultura, a realidade econômica e política, isso irá moldar as melhores alternativas, o tipo de soluções políticas, econômicas e sociais que as pessoas estão procurando.

Mesmo que alguns critiquem o movimento global – dizendo, “sabemos que vocês são contra, mas o que vocês querem?” –, penso que temos constantemente de reforçar a idéia de que nos ancoramos na realidade, somos pela diversidade, somos a favor das pessoas fazerem suas próprias escolhas. Isso permite que o movimento absorva as energias das lutas. Quanto mais o movimento é aberto, mais radical ele se torna. Porque se queremos, de fato, encontrar um espaço para articular realidades muito diversas, as pessoas têm que encontrar espaço para sentir suas próprias identidades e seus vínculos com o movimento e apoiarem as lutas umas das outras. Não se trata de apoiar a ideologia ou o projeto político dos outros, mas apoiar as lutas. Só podemos crescer se houver um real respeito e reconhecimento da legitimidade das inúmeras lutas individuais. As pessoas dizem que nossa diversidade é nossa força sem perceberem bem por quê. Para mim, isso tem a ver com a construção prática do respeito pelas diferentes lutas, o conhecimento de que estamos todos engajados em um projeto que nunca acaba.

Desde que se impôs como tal, com os protestos de Seattle, o movimento global tem passado por vários momentos decisivos. Como você analisa esta trajetória?
É importante perceber que todo mundo identificou imediatamente o que estava acontecendo em Seattle. Foi um evento internacional, dominado pelos norte-americanos e europeus, mas mesmo os asiáticos, africanos e latino-americanos, identificaram-no como o momento em que suas lutas foram  impulsionadas. A mídia, as instituições políticas e as forças no poder certamente identificaram o que estava acontecendo. Não foi um protesto de jovens de classe média norte-americana e européia, como um setor da mídia buscou passar, mas algo muito mais enraizado, como procurei mostrar no caso da Ásia.

A experiência do I Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, no ano passado foi incrível, revelando este potencial, tremenda visão de esperança, mostrando como pessoas comuns do mundo todo sentiam-se da mesma maneira. Isso ajudou a pavimentar o caminho que trilhamos depois.

Gênova foi outro momento extraordinário de construção do movimento, marcado por grande violência, com o G-8 realmente preparado para defender seu território. Eles coordenaram uma repressão violenta porque queriam destruir o movimento e tentar restabelecer a legitimidade de suas instituições. Falharam, no contexto de uma disputa global. Quando voltamos para a Tailândia, por exemplo, depois do final dos protestos, partilhamos muita informação com os ativistas do país sobre o que se passou e a Assembléia dos Pobres enviou uma carta para o embaixador italiano em Bangcoc, com cópia para Berlusconi, enfatizando que as pessoas em Gênova os representavam e que eles eram solidários com elas e suas lutas, que conheciam a experiência de ter seu movimento reprimido.

Em Gênova, neste momento de confrontação, a vontade das pessoas de resistir, se mobilizar e falar, foi extraordinária e ecoou profundamente no movimento. As pessoas mostraram uma sofisticação na compreensão do que estava se passando, como o poder operava e o processo político que estava se dando.

Onze de setembro foi uma data muito importante nessa trajetória. Houve tentativas de desacreditar o movimento e reprimi-lo fisicamente, porque em todo o mundo as leis internas mais repressivas foram reativadas e usadas contra certos grupos que falam contra o poder. Isso foi sentido de forma muito forte na Ásia, onde leis foram mudadas e governos repressores as utilizaram contra toda oposição.

O que é extraordinário neste II Fórum Social Mundial é a total rejeição disso, dizendo nós não seremos subjugados, não retrocederemos. Este sentimento é muito forte. As lutas, as campanhas, as análises, a realidade, os fatos estão lá e não serão varridos pela ignorância da mídia ou a manipulação dos políticos. Algo extraordinariamente importante está se desenvolvendo e não é mais uma aspiração, é realidade.

Fizemos com as pessoas da Ásia uma breve discussão sobre o que representou este II Fórum Social Mundial – só o Focus trouxe uma delegação de 46 pessoas de vários países do Sudeste Asiático. Elas realmente sentem que o Fórum Social Mundial lhes dá um espaço político que não existe em nenhum outro lugar. É um espaço político no qual elas podem articular e amplificar as lutas que travam em suas realidades, uma vez que são continuamente reprimidas e silenciadas em seus países. Elas sabem que suas lutas devem ser locais, que estão lidando com questões como democracia, controle, processos de decisão em seus países, mas no Fórum sentem esta extraordinária comunhão de experiências, esta atmosfera tão envolvente.

Outro aspecto marcante deste evento, neste ano, é o grande número de jovens, talvez vinte mil.  Eles representam uma espécie de radicalização e esperança no futuro que não era evidente cinco anos atrás. O fato de que há toda uma nova geração entre quinze e vinte anos que estão tendo a incrível experiência de estarem todos juntos impulsiona a luta. É difícil quando se é uma minoria em um ambiente conservador ou em uma situação política difícil. Mas saber que somos muitos é importante, especialmente que há tantos jovens dá um grande encorajamento.

Como você vê o processo de internacionalização do Fórum Social Mundial, articulando os fóruns regionais e continentais e o III FSM?
Há um tremendo potencial em internacionalizar esta experiência, enraizando-a em coalizões locais e nacional. Tomando como exemplo a discussão do pessoal da Ásia, os indonésios já estão organizando uma atividade, os tailandeses estão discutindo o que eles podem fazer etc. Assim, há uma energia real, e ver esta espécie de evento, ser parte deste tipo de processo, que os liga a um movimento maior pode realmente ajudar a mobilizá-los em suas próprias lutas. Não é ser internacional simplesmente porque as pessoas necessitam ser representadas, é ser internacional porque as pessoas podem ver que isso realmente as ajuda. É uma abordagem pragmática: ser parte deste processo mais amplo é uma fonte de força e poder no próprio trabalho de cada um.

José Côrrea Leite é editor do Em Tempo, integra o Conselho de Redação de TD e o Comitê Organizador Brasileiro do FSM pelo Attac.