A tradição jurídica latina privilegia a definição abrangente e detalhada dos direitos na legislação. Não somos herdeiros da tradição saxônica, afeita aos usos e costumes. Ademais, uma das características dos subdesenvolvidos é o enorme peso do Estado frente à debilidade da sociedade civil. Daí a consideração dos trabalhadores como hipossuficientes e o excesso de regulamentação que sufoca as relações de trabalho. Com cerca de mil artigos, a CLT entra em detalhes até na forma de organizar os sindicatos, compor diretorias e utilizar recursos. É o caso do capítulo V, que muitos acreditavam superado pela Constituição de 1988, mas volta e meia o Judiciário trabalhista recupera um de seus artigos e o aplica contra as organizações dos trabalhadores.
Não vemos a CLT como intocável. Atualizações se fazem necessárias. Ainda não temos liberdade de organização sindical. É preciso aumentar tanto a abrangência como a eficácia das negociações coletivas. Queremos os sindicatos atuando no local de trabalho. Somos parte interessada. Precisamos discutir. Mas por que a pressa e a insistência em medidas unilaterais? Há quem sugira que a medida é uma compensação aos empresários pelo sacrifício imposto com o recente "acordo" do FGTS. Mas existem outras utilidades. Além de atender a recomendações do FMI, pode servir para mascarar indicadores sociais, como o índice de desemprego aberto. O pior é que nem isso estão conseguindo.
O ministro do Trabalho afirma que o projeto aumenta o poder de negociação dos sindicatos. Faltou dizer como. Nem de longe, o novo artigo 618 proposto garante isso. Fica faltando muito para uma "nova CLT", sequer significa um primeiro passo. O descumprimento de um acordo que altera as condições de trabalho para reduzir ou trocar direitos, seria resolvido aonde? Na Justiça do Trabalho, claro. E em que prazo? No de sempre: longo. É de boa fé uma negociação com a faca amolada das demissões apontada para o pescoço dos sindicatos? Invertendo o ordenamento legal, o projeto ressalva as garantias da Constituição, mas deixa de fora os direitos consagrados nas convenções da OIT, que são compromissos internacionais.
Nos anos 80 e 90, com o avanço global do neoliberalismo, enquanto os índices de desemprego aumentavam na Europa, os salários caíam nos EUA. Maior flexibilidade, em tempos de crise, possibilita reduzir a massa salarial em vez de aumentar o desemprego. Para garantir o emprego, qualquer salário, qualquer condição de trabalho. E se as condições sociais pioram? Aumenta-se a oferta de prisões. A "tolerância zero" ajuda a diminuir a PEA (População Economicamente Ativa) e, conseqüentemente, o índice de desemprego aberto.
No modelo europeu, as garantias são maiores e o desemprego onera bastante os cofres públicos, já que o salário desemprego é mais abrangente do que nosso "abono", que é irrisório e pago durante poucos meses. Na França, que padeceu de elevados índices de desemprego, o governo Jospin apostou na redução de jornada sem redução de salário. Está dando certo. Não houve opção pela desregulamentação ampla, geral e irrestrita.
No Brasil, o modelo é altamente regulamentado em alguns aspectos e totalmente flexível em outros. Apesar da CLT e dos tributos que incidem sobre a folha de pagamento, o custo da mão-de-obra é baixo e o empregador pode demitir quem quiser, a qualquer hora, sem prestar satisfação a ninguém. Discute-se apenas o valor da indenização. Embora a Constituição afirme a estabilidade no emprego, a legislação e a tradição impõem o contrário. Como conseqüência, a rotatividade da mão-de-obra é muito grande.
Os vários dispositivos legais de flexibilização da CLT, aprovados pelo Congresso Nacional quase sempre a toque de caixa, não melhoraram os índices de emprego. O desemprego e a jornada aumentam, enquanto os salários diminuem. A competitividade perseguida é aquela baseada no pagamento de baixos salários e na redução de impostos. Se contribuições sociais incidem sobre a folha de pagamento, propõe-se a supressão, simplesmente. A Previdência Social não é preocupação maior da elite empresarial brasileira, que defende eliminar encargos para reduzir o "custo Brasil" e aumentar a participação do país no mercado internacional. Falta responsabilidade social nessa equação.
Os trabalhadores também querem que alguns impostos deixem de incidir sobre a folha de pagamento, desde que passem para outro lugar. O faturamento pode ser uma alternativa. Hoje, quem dispensa trabalhadores, além de deixar de pagar os salários, economiza impostos. Mas uma discussão sobre reforma tributária e fiscal é o que o governo menos quer nesse momento.
Além disso, há um certo desprezo pelo mercado interno, que seria beneficiado com melhor distribuição da renda, acompanhada da produção local dos produtos de consumo de massa. Não é coisa só nossa. O fenômeno acontece na América Latina e nos demais países em desenvolvimento que aplicam o chamado Consenso de Washington. A preocupação única é com a inserção no mercado internacional. A globalização serve como justificativa para todas as iniqüidades.
A Argentina avançou bem mais que o Brasil na flexibilização dos direitos. Recentemente, as aposentadorias e pensões foram reduzidas em nome da manutenção da paridade por meio da eliminação total do déficit público. Nenhum país seguiu com tanto ardor os fundamentos do Consenso de Washington. O resultado está nos jornais: anarquia financeira, saques, caos social e estado de sítio. Enquanto isso, os EUA adotam receita diferente para escapar da recessão: "Faça o que eu digo, não o que eu faço!" O velho Keynes continua vivo nas terras do tio Sam.
Globalização e Trabalho Decente
Mais de uma década de reestruturação econômica concertada através do FMI, obedecendo ao fundamentalismo liberal do Consenso de Washington, conduziu a um sucesso planetário em termos de estabilidade monetária e a um enorme fracasso em políticas sociais e distribuição de renda. Até o Banco Mundial reconhece que é preciso enfrentar os desafios sociais da globalização. O Plano Real é parte dessa política que começa a ser revista nos países centrais. Como na América Latina e no resto do mundo, a inflação praticamente acabou aqui. Paralelamente, os indicadores do PNUD mostram uma deterioração generalizada das condições sociais. Entramos para valer na disputa pela lanterna do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
As sucessivas crises financeiras (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina) mostraram os pontos fracos do modelo. Técnicos ligados ao sistema de Bretton Woods e instituições respeitadas da sociedade americana contestam as receitas do FMI, principalmente a partir da crise asiática. Os trabalhadores, que sempre sentiram os efeitos nocivos da política, não ficaram parados e investiram na mobilização internacional em defesa de cláusulas sociais e ambientais para os acordos comerciais, planos de reestruturação econômica e processos de integração regional.
A discussão da "cláusula social" esteve presente na Conferência Social de Copenhague e chegou à reunião ministerial da OMC em Cingapura, 1996. O processo levou ao reconhecimento da OIT como principal fórum internacional para tratar dos temas referentes às relações de trabalho, definindo um conjunto de convenções da OIT como fundamentais.
A Cúpula Social de Copenhague e as discussões sobre cláusulas sociais na OMC remeteram o debate para a OIT. Formou-se um grupo de discussão no Conselho de Administração, denominado Grupo de Trabalho sobre a Dimensão Social da Liberalização do Comércio Internacional, e em junho de 1998 a Conferência da OIT aprovava a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. A resolução obriga os países membros, independente de ratificação das convenções pertinentes, a obedecerem e tornarem efetivos esses princípios e direitos. O Brasil estava presente na conferência que aprovou a declaração, votou a favor, mas o tema não entusiasma nossas autoridades.
Dando conseqüência prática ao estabelecido, o embaixador Juan Somavia, ao assumir o cargo de diretor geral da OIT em 1999, apresentou quatro objetivos estratégicos prioritários para a organização, introduzindo o conceito de Trabalho Decente. Para cada objetivo estratégico, medidas operacionais por meio de programas focais internacionais. A partir de então, a própria estrutura da repartição internacional do trabalho vem mudando para se ajustar ao Trabalho Decente.
A promoção da Declaração de 1998 é o primeiro eixo estratégico do Trabalho Decente e define programas relativos aos princípios e direitos nela definidos. O segundo eixo diz respeito ao emprego, abordando geração de emprego e renda, treinamento e qualificação profissional. O terceiro eixo defende a ampliação da cobertura e da eficácia das redes de proteção social. O quarto eixo define o diálogo social como condição indispensável para a construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento.
A promoção do Trabalho Decente já ganhou espaço em todo o sistema das Nações Unidas. Hoje é comum a presença do diretor geral da OIT nos fóruns internacionais, especialmente nas instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI), chamando a atenção dos países para as contradições entre o que é decidido nos diferentes fóruns. Muitas vezes, os mesmos países que aprovam a Declaração de Princípios da OIT definem programas de ajustes que obrigam os governos ao descumprimento desses mesmos princípios e direitos fundamentais.
O indispensável diálogo social
O que está acontecendo no Brasil e na vizinha Argentina, se não contraria frontalmente as preocupações definidas nas atuais prioridades da OIT, pelo menos as ignora solenemente. O fundamentalismo monetarista transforma os setores vinculados ao planejamento em órgãos decorativos, recusa o diálogo social e praticamente dispensa os ministérios do trabalho. Mas não dispensaremos alguns comentários.
É visível a contradição entre as atribuições e a prática do MTE. O governo FHC entregou as relações do trabalho para a ala direita da coligação, que recuperou a antiga política de clientela e procura completar o trabalho sujo da precarização receitada pelo FMI. Uma política que está em baixa no mundo inteiro e recebe críticas de personalidades insuspeitas como Robert Reich (ex-secretário de Trabalho do governo Clinton) e Joseph Stiglitz (prêmio Nobel de Economia de 2001), como pode ser lido nas intervenções de ambos no Fórum Global do Emprego.
Até sindicalistas ligados ao governo afirmam que reformas como a proposta no projeto de lei 5483/01, para reforçar o poder das organizações sindicais, precisariam atender a antigas exigências de liberdade sindical, reconhecendo as centrais sindicais, implantando um contrato coletivo de trabalho nacionalmente articulado e garantindo a ação sindical no local de trabalho.
Os sindicatos querem atualizar a CLT, tornando-a eficaz para defender os interesses da classe trabalhadora e contribuir para a distribuição ampla dos benefícios do progresso científico e do desenvolvimento econômico. Até aqui, as políticas econômicas conseguiram relativo sucesso no controle da inflação, que permanece baixa. Mas a dependência externa e a volatilidade do câmbio preocupam. Reverter a atual exclusão social e a crescente concentração de renda exige uma discussão ampla, envolvendo empregadores, trabalhadores e os diversos níveis de governo, estabelecendo um diálogo social que considere os legítimos interesses da grande maioria da população. Os graves problemas sociais do país não serão resolvidos apenas com a lei.
Além de uma legislação adequada, é indispensável um mecanismo consistente de diálogo que envolva os atores sociais e o conjunto da sociedade. Não é por acaso que "diálogo social" aparece como quarto eixo estratégico do Trabalho Decente. Mas medidas provisórias e pedidos de regime de urgência constitucional, atropelando as discussões nas comissões do Congresso, apontam exatamente no sentido oposto ao diálogo. É no mínimo curioso propor aumentar o poder de negociação dos sindicatos e recusar discutir a proposta com os principais interessados.
José Olívio M. Oliveira é diretor do Sindicato dos Engenheiros da Bahia e membro trabalhador do Conselho de Administração da OIT, [email protected]