Cultura

Apoiados nas liberdades abertas pelos modernistas, os autores de 30 ajudaram a operar uma rotação de 180 graus no país. Este passava de predominantemente atrasado e marcado por enormes tragédias sociais.

O romance procedeu a uma espécie de preparo do terreno à integração das massas na vida do país.
(Antonio Candido, em Brigada ligeira - 1945)

 A morte de Jorge Amado em 2001 começou a traçar o epitáfio definitivo da geração de grandes escritores brasileiros que surgiram ou se firmaram no decênio de 30 do século passado. Que me lembre agora, deles apenas Rachel de Queiroz está (e felizmente) na ativa.

Em Brigada Ligeira, livro publicado em 1945 com artigos de jornal de um pouco antes, Antonio Candido faz o balanço das publicações de 1943. No ensaio "Poesia, Documento e História"1, assinala que os chamados romancistas sociais do Nordeste (então se dizia "do Norte"), firmados a partir de 1930, deram contribuição significativa para fixar "o povo" como fator de criação e cultura no Brasil, superando tendên­cias anteriores a contemplá-lo dentro de uma visão lírica (ou trágica, eu ousaria completar) que tendia quase invariavelmente ao pitoresco. Diz Candido:

"Surgiu [o romance do Norte] e se colocou, pela primeira vez na literatura nacional, como um movimento de integração, ao patrimônio da nossa cultura, da sensibilidade e da existência do povo, não mais tomado como objeto de contemplação estética, mas de realidade rica e viva, criadora de poesia e de ação, a reclamar o seu lugar na nacionalidade e na arte, que, neste momento, tocava o ponto vivo da sua missão no Brasil. Há sempre para ela um papel a desempenhar, e feliz quando consegue fazê-lo. Estava procedendo à descoberta e conseqüente valorização do povo, ligando-o, portanto, ao nosso patrimônio estético e ético, num magnífico trabalho de preparo ao aspecto político da questão, por que ainda esperamos. E estava, ao mesmo tempo, garantindo à literatura brasileira a sua sobrevivência como fenômeno cultural, porque lhe mostrava o caminho e o trabalho a serem realizados."2

No restante do ensaio, o crítico dedica-se a mostrar como Jorge Amado deu contribuição decisiva neste sentido, ou seja, o de espelhar o povo e seus valores de modo ao mesmo tempo realista, crítico (em relação ao país) e poético, ou seja, lírico, não no senso vulgar de sentimental, mas no de fonte criadora de emoção estética.

"Na fase regionalista, sertaneja, [prossegue Candido] o caboclo era considerado sobretudo como um motivo, um objeto pitoresco. Mesmo em escritores tão compreensivos quanto Affonso Arinos. Entre ele, caboclo, e os escritores, ia a distância que vai do empregado ao patrão bondoso e interessado pela sua vida. A força do romance moderno foi ter entrevisto na massa, não assunto, mas realidade criadora"3.

Estabelece então o professor Antonio Candido que Jorge Amado, com temas constantes ao ponto da obsessão, cria obras em que se tecem, dialeticamente, documento e poesia. Em alguns, assinala, como Mar morto, de 1936, haveria momentos em que o documento cede completamente o terreno à poesia, de modo que a tessitura romanesca chega a se desfazer. Candido vê, como melhores pontos de equilíbrio nestes momentos iniciais da produção de Jorge Amado, os romances Jubiabá (1935) e Terras do Sem Fim (1943). Para Candido o elemento poético, ao lado das informações sociais sobre lutas, ofícios e misérias, se concentram em elementos da natureza, como o mar, a floresta, o vento, a noite, ou então na explosão, entre as condições adversas, da inesgotável força do amor.

Ao falar de Jubiabá e de um certo descosido de seu enredo, Candido assinala um julgamento que pode se estender a todo o cabedal do escritor: diz que é "uma obra-prima cheia de imperfeições"4.  E o tempo desde então sublinhou, também a respeito de toda a obra de Jorge Amado, mas, penso, em particular à sua produção dos anos 30 e 40, uma observação que Candido faz sobre Terras do Sem Fim: a de que a obra de Amado adquiriu a consistência de um romance histórico, e assim transcendeu a condição de documento, ganhando em humanidade e em universalidade. Esta observação poderia se estender também ao conjunto (com toda a cautela que merecem as generalizações) dos escritores nascidos literariamente a partir de 30: eles hoje nos parecem ter legado um romance histórico sobre aquela fase do Brasil. Mesmo ao recuarem no tempo, como Érico Veríssimo em O Continente, ou ao falarem de outras classes, como Cyro dos Anjos em O Amanuense Belmiro, eles falam de angústias e dramas agônicos cuja consciência ganhou relevo a partir do Brasil de 30, ou do Brasil redescoberto em 30.

É difícil para nós hoje, ou para as gerações que agora se afirmam literária ou criticamente, pensar num Brasil onde povo e poesia andassem tão divorciados, a ponto de seu encontro parecer um esperado casamento. Houve até um momento em parte de nossa produção cultural, ali pelos contornos de 1960, em que só o povo parecia ter poesia, embora dela não desfrutasse. Mas tal divórcio havia. O professor Candido comenta no ensaio o caso dos regionalistas que casavam sertania e lirismo, mas dentro da moldura do pitoresco (com valiosas exceções, como em contos de Simões Lopes Neto e Valdomiro Silveira). Podíamos também assinalar o caso da geração naturalista, para quem a presença das classes populares remetia quase sempre a um clima de diagnóstico - médico ou social - mas com as crueldades (por vezes benéficas) da objetivação que os diagnósticos exigem. Raramente povo significava transporte de alma.

Podemos assinalar casos de lirismo; algum subjacente sempre há em O mulato, de Aluísio Azevedo, ou até mesmo em O cortiço, do mesmo autor, no qual a personagem Rita Baiana lembra algumas almas gêmeas de Jorge Amado. Também há lirismo subjacente nos transportes homossexuais de Bom Crioulo, de Adolfo Caminha: mas é um lirismo de asa cortada, logo trazido ao rés-do-chão pelo clima de diagnóstico que o compromisso naturalista com a afirmação positiva da ordem social, mesmo se denunciada como iníqua, exige.

Caso interessante é o da personagem Eugênia, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, a jovem coxa, mas bela, ou bela, mas coxa, desprezada por Brás Cubas e que depois lhe bate a porta na cara no cortiço em que vive, recusando-lhe a caridade cínica. O leitor avisado poderá pensar: ali sim, haveria motivo para uma paixão acendrada, não na fátua Virgília. Mas o Brasil de Machado pertence às fátuas e aos pulhas, os únicos que prosperam.

A geração modernista mudou o genoma literário do povo brasileiro. Dentro ou ao lado da urbanidade emergente (que Lima Barreto já debuxara) deu-lhe tonalidades multirraciais, multiculturais e multilíngües também. Para nós hoje pode parecer até nostálgico que tudo isso acontecesse num movimento irradiado a partir de uma São Paulo, cuja população ultrapassava de pouco os 600 mil habitantes (o Brasil tinha 30 milhões), entre fábricas de tijolo à vista que hoje são centros culturais, sobreviventes à ferocidade especulativa da nossa urbanização desenfreada que ameaça, novamente, separar "povo" e "poesia". Ou ameaça condená-lo, de novo, ao pitoresco ou ao policial, na mídia potencializada.

Esses poucos dados colhidos quase ao acaso servem para dar uma dimensão do desempenho heróico daqueles autores de trinta ou de seu legado. Apoiados nas liberdades abertas pelos modernistas, levados pela crescente polarização mundial entre fascismo e comunismo, e pela também crescente politização das artes, os autores de 30 ajudaram a operar uma rotação de 180 graus no eixo brasileiro: de país predominantemente afortunado e pitoresco, este passava a país predominantemente atrasado (depois subdesenvolvido) e marcado por enormes tragédias sociais. Muito do que antes era visto apenas ou sobretudo como marca da natureza ganhou contornos sociais: o drama da seca era também, e sobretudo, a tragédia do latifúndio5.

Outra rotação notável foi a de que as classes populares brasileiras, fosse o campesinato ou o nascente proletariado urbano, perderam de vez a marca de herança oitocentista de serem, com a mestiçagem, a desgraça que impedia a constituição de uma vida nacional mais equilibrada ou homogênea. E tornaram-se elas a base de um supra-personagem, que coabitava na pele dos personagens concretos, homens e mulheres, dos autores de 30, em suas variegadas formulações: Lívias, Gumas, Fabianos, Sinhás Vitórias, Meninos, Balduínos e tantos outros. Este supra-personagem era "o povo", cuja presença Candido e outros críticos assinalaram. Mas neste contexto o povo deixa de ser motivo, para ser agente da transformação. É por ser "do povo", que os personagens tiram energias insuspeitas, que os fazem enfrentar contrariedades antes intransponíveis.

Explico-me: a geração de 30 entronizou, no Brasil, o "romance proletário", que a consciência de esquerda fazia aflorar em toda a parte. Mas o "proletário" (e neste sentido de 30 o camponês também se "proletarizou") é por natureza um disciplinado, seja na fábrica, seja no partido. "O povo" não. "O povo" é algo desmedido, indisciplinado, avesso a limites bem precisos. "O povo" é sobretudo uma presença que exige metáforas solenes e grandiosas. "O povo" é matéria para a praça e o condor, parafraseando o conterrâneo de Jorge Amado do século XIX. "O povo" é uma presença redentora, transformadora, do campo social e do campo artístico. É um fio e uma torrente de esperança, é um sinal. E ele se manifesta onde menos se suspeita.6

Haverá final mais dramático do que o de Vidas secas? Pois lá mesmo, nos passos apressados de Fabiano, de Sinhá Vitória e dos meninos em fuga, apanha-se o fio de "o povo", pois há algo de titânico naqueles pobres retirantes, algo de magnífico, há um fiapo de dignidade humana que soldado amarelo nenhum consegue romper. Eles falam do futuro, e isso é humano: só "o povo" tem futuro, ou abre o futuro. Os dois adultos falam de um mundo novo, embora temerosos, falam de escolas a que os meninos irão, de palavras novas que eles aprenderão. São imagens urbanas, e quem tenha lido a Bíblia sabe que ao final do "Apocalipse" a imagem por excelência do novo tempo é a da cidade de Deus, a cidade em que todas as injustiças serão abolidas. Miragem? Sim, miragem: para "o povo", a natureza (das coisas) tal como está é uma aparência. Só miragens aplacam e acolhem esse mistério que ninguém sabe definir muito bem: "o povo". Pois "o povo" é sobretudo um forte...

Jorge Amado deu contribuição decisiva para desentranhar este personagem de nossa realidade cultural. Em sua tese sobre as obras de Jorge Amado, que já citei aqui em nota, Eduardo de Assis Duarte estabelece com bastante precisão como o autor sempre trasbordou os limites dos arcabouços ideológicos em que se inspirava. Criando em terras brasileiras o "romance proletário", Jorge Amado sempre misturava as premissas marxistas ou naturalistas que embalavam seus romances com todo o mundo de valores e crenças das classes que punha em foco, vendo-as não apenas como coisas pitorescas ou pequenos "ópios do povo", mas como elementos constituintes da cultura e também das lutas de libertação. Para tanto, mostra Duarte, apoiava-se na tradição dos romances velhos portugueses, popularizados no Nordeste, nas crenças transculturadas da África, no folhetim e no melodrama, ainda tão populares no Brasil. Com isso criou um estilo de romance bastante original, que encantou não só o Brasil, mas o mundo. Amado foi talvez o primeiro autor brasileiro que fez escola fora do Brasil, ajudando a renovar o romance português e influenciando gerações de escritores africanos. Hoje Machado, Guimarães, Clarice, entre outros, são lidos e apreciados em várias universidades pelo mundo. Nos anos 30 e 40, haver um brasileiro lido e elogiado por Camus, Ehrenburg, Bastide e outros não era pouco não.

Em sua tese, Duarte assinala que deixou de fora de suas análises o romance Mar Morto (1936), porque ele abandonaria de vez o paradigma do romance proletário. Não sei dizer se é por isto, mas confesso que é dos que mais me agradam. E ali se presentifica de modo notável e poético (como assinalava Candido, ressalvando a demasia) o acasalamento de imagens criadoras da força mítica de "o povo". As imagens finais mostram as mulheres - Lívia (na proa) e Rosa Palmeirão (no leme) - assumindo o lugar de Guma no saveiro, saindo meio para substituí-lo no contrabando que fazia, meio que para encontrar o seu corpo. E os moradores do cais vêem, na mulher à frente, a imagem/presença de Janaína/Iemanjá.7

Com isto quero assinalar que os autores de 30 - tão realistas em seus propósitos, tão naturalistas por vezes em seus aprendizados - foram também, como os românticos, como os modernistas, criadores ou recriadores de mitos. Castro Alves, com seu condor, sua praça, seus escravos, criou a imagem de um povo aberto ao tônus messiânico. Sua presença - na praça - se espelha no isolamento do condor - no céu. Não por acaso, no próprio poema (O povo ao poder), declamado no dia 30 de setembro de 1866, em meio às manifestações estudantis no Recife, o poeta enumerava a seguir o nome dos que via como grandes líderes do povo, como Garibaldi na Itália ou Kossuth, na Hungria. Em boa parte da literatura de 30 e depois, no entanto, o povo é o próprio herói, com suas precariedades e dificuldades; sua presença é menos messiânica e mais profética, na medida em que a presença profética adverte, e aponta (mais do que prediz) o futuro, bom ou ruim.

Em sua tese Duarte sublinha o impasse a que Jorge Amado chegou com seu romance Os subterrâneos da liberdade, publicado em 1954. Chega a dizer que, menos do que fazer um inventário do Estado Novo, ele faz uma amostragem da mentalidade stalinista, depois de passar alguns anos residindo em países do então Leste político. Pode-se considerar que esse impasse nasça da tentativa de galvanizar novamente uma inspiração messiânica para seu "povo": o "novo messias", impessoal, seria o partido, e seu heróico condutor, Stálin. Tudo logo desabaria em 1956, com as denúncias feitas por Kruschev.

Restaria então a Jorge Amado o vigor narrativo aprendido antes, agora desnudo de seu arcabouço revolucionário. É verdade que a partir de Gabriela, cravo e canela o povo de Amado se folclorizou um tanto novamente, retomando tonalidades pitorescas. Mas se ele produziu um romance "cansado", como Tereza Batista, cansada de guerra, produziu a pequena jóia A morte e a morte de Quincas Berro d’Água (para mim na verdade um conto).

A obra de Jorge Amado provoca, sobretudo nas academias, alguns reparos críticos constantes. Um é que Jorge Amado acabou por diluir a si mesmo; outro é que é um autor populista e de poucos recursos; terceiro, que criou uma Bahia de cartão-postal; quarto, que sua obra é eivada de estereótipos preconceituosos, sobretudo quanto às mulheres. Que se diluiu ao longo do tempo, penso que é verdade; fez uma obra cheia de altos e baixos. Penso que são os ossos, as virtudes e os defeitos do ofício. No fundamental, mesmo repetindo-se, repito, Jorge Amado é dos escritores (no Brasil, como Veríssimo) que criou um mundo. E isso não é pouco. Não penso que tenha sido sempre populista, embora sempre tenha sido popular, e isso, para parte de nossa crítica é virtualmente defeito e não qualidade. Penso o contrário, e de poucos recursos ele não é. A bibliografia crítica existente demonstra, e alguma dela foi aqui lembrada. Cartão-postal? Não leio isto nos romances, os mais ou os menos ideológicos dele. Leio isto sim que há uma tendência, por parte da promoção de vendas de sua obra, de apresentá-la como cartão-postal. O nome Jorge Amado virou uma griffe. Mas o de Guimarães Rosa também virou. E ninguém de boa razão vai dizer que a Minas dele é de cartão-postal. Quanto aos preconceitos e estereótipos, considero que ele no máximo deu vida (vida mesmo) a alguns disseminados em nossa sociedade e a que estamos todos sujeitos. Na avaliação de sua obra e de sua vida de cidadão penso que é preferível pensar com generosidade que ao longo dos anos ele guardou fidelidade à sua gente, a seu "povo", que ajudou a partejar literariamente a partir de 30, com sua geração. Não o esqueçamos, agora que querem nos fazer esquecer o povo.

Flavio Aguiar é professor de Literatura Brasileira da USP e organizador da antologia Com palmos medida - Terra, trabalho e conflito na literatura brasileira.