Cultura

Pesquisa mostra que exclusão social se repete no acesso ao livro e à leitura no Brasil

Ao contrário do que alguns pensaram inicialmente, a revolução tecnológica ou digital não está levando ao fim do livro e da leitura, aliás nem sequer ao seu enfraquecimento. Hoje, talvez como nunca antes, o livro e a leitura são instrumentos fundamentais para a produção e a difusão de cultura e conhecimento.

A internet, por exemplo, ao difundir o hábito da comunicação via correio eletrônico e bate-papos, acaba por reforçar a leitura e a escrita, ainda que muitas vezes de modo canhestro.

Mais uma vez parece se confirmar a perenidade do livro, que, como lembra um bem humorado texto divulgado pela internet, "representa um avanço fantástico na tecnologia. Não tem fios, circuitos elétricos, pilhas. Não necessita ser conectado a nada nem ligado. É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo. Basta abri-lo! Ele nunca ‘dá pau’ nem precisa ser reiniciado".

Todo esse universo do livro e da leitura foi diagnosticado de forma inédita recentemente em nosso país pela pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, cujo objetivo era identificar a penetração da leitura de livros e as formas de acesso a eles1.

Entre as várias revelações da pesquisa - algumas novas e surpreendentes, outras nem tanto -, uma deve ser vista com especial preocupação: a exclusão da leitura a que está forçada grande parte da população brasileira. Pode-se dizer que o quadro de exclusão social que caracteriza o país é reproduzido de modo tristemente fiel nesse campo.

Só para lembrar, segundo dados da ONU, o Brasil é o quarto país no mundo com pior distribuição de renda, à frente apenas de Suazilândia, Nicarágua e África do Sul. No Brasil os 10% mais pobres têm acesso a apenas 1% da renda gerada no país enquanto os 10% mais ricos detêm 46,7% da renda total.

Como salienta o próprio estudo, em relação à posse de livros e aos exemplares existentes nas residências se reproduz "dinâmica idêntica à distribuição de renda no país, onde poucos têm muito e muitos têm pouco". Segundo a pesquisa, três são os fatores principais, apontados pelos próprios leitores como limitadores da compra de livros. Dois são econômicos - o custo dos livros (34%) e a falta de dinheiro (23%) - e um é cultural - a falta de estimulação (31%), ou seja, falta de informação e de indicação sobre o que ler ou de solicitação formal por parte da empresa em que trabalha ou da escola.

Quanto às barreiras à leitura propriamente dita, vários são os fatores citados: falta de tempo (39%), falta de interesse (18%), preguiça ou falta de paciência (17%), preferência por outro tipo de entretenimento (17%), falta de dinheiro (11%), dificuldade para entender palavras e frases (10%), entre outras.

No entanto, não resta dúvida de que tão importante quanto o problema econômico-social e de acesso ao livro (poucas e precárias bibliotecas, principalmente) é o fator cultural, isto é, a baixa escolaridade e a má qualidade da educação, que faz com que para muitos brasileiros a leitura seja um estorvo, um desafio quase insuperável para a maioria. Além disso, como lembra Sérgio Machado, editor e proprietário da Record - a maior editora de livros do país entre as que não atuam no setor didático -, a questão da melhor distribuição de renda não diz respeito apenas à capacidade de ter dinheiro para comprar livros mas também a "ter o tempo de lazer necessário para a leitura".

Mas para entender melhor os números sobre a exclusão da leitura é preciso conhecer o que a pesquisa entende por hábitos de leitura e quais são os tipos de leitores que ela identifica.

São quatro os tipos de leitores classificados:

comprador de livros: 20% daqueles 86 milhões que formam a população adulta alfabetizada, ou seja, 17,2 milhões de pessoas que declararam ter comprado pelo menos um livro em 2000;

leitor corrente: os 14% - cerca de 12 milhões - que declararam que estavam lendo um livro no dia da pesquisa;

leitor efetivo: os 30% - cerca de 26 milhões - que leram pelos menos um livro nos últimos três meses;

leitor habitual: os 62% - cerca de 53 milhões - que declararam que "costumam ler".

Ao mesmo tempo, 14% da população adulta alfabetizada - cerca de 12 milhões de pessoas - declarou não ter o hábito de ler nada, nem mesmo jornais ou revistas.

E o que lêem esses vários tipos de leitores? Nesse ponto, a força dos livros religiosos aparece de forma inequívoca. Entre os leitores habituais esse tipo de livro é o preferido: é o mais lido por 50% das mulheres e por 35% dos homens. Em seguida vêm os livros de culinária (33% de preferência entre as mulheres) e os quadrinhos (34% entre os homens). No cômputo geral, 43% declararam que lêem livros religiosos.

Entre os leitores correntes 18% declararam que estavam lendo apenas a Bíblia. Nas classes D/E esse número chega a 36%. Aliás, para 54% dos leitores das classes D/E ler significa ler livros religiosos, enquanto para a classe A esse índice cai para 21%. Para as classes A/B, os tipos de livros mais lidos são os de literatura adulta e os de filosofia e psicologia (inclui auto-ajuda).

Esse quadro se repete quase sem alterações quando se analisa o tipo de livro lido por escolaridade e faixa etária. Assim, os menos alfabetizados (cursaram até o primário) e os mais velhos (40 anos ou mais) têm como principal leitura os livros religiosos, enquanto os que estudaram mais (têm curso supe­rior) e os mais jovens (de 14 a 19 anos) lêem principalmente literatura adulta, filosofia e psicologia.

Outra informação importante da pesquisa é sobre como os leitores têm acesso ao livro lido. Somente a metade desses livros (49%) foi comprada. Dezenove por cento dizem que ganharam de presente e 15% que conseguiram emprestado de amigos ou parentes. Oito por cento dos livros são lidos em bibliotecas - índice muito baixo - e 4% são dados pela escola.

Um ponto aparece como quase consensual entre os pesquisados: a imagem do livro é muito valorizada por todas as faixas de renda, de escolaridade e etárias. Para 89% o livro representa "transmissão de conhecimento"; para 82% é uma "importante forma de se atualizar"; 81% consideram "importante ler para os filhos"; 69% disseram que gostariam de ter mais tempo para ler e 61% que ler é algo que lhes dá prazer. No entanto, essa imagem positiva do livro não cria automaticamente o hábito da leitura, uma vez que apenas 14% dos entrevistados estavam lendo algum livro no dia da pesquisa.

Ao mesmo tempo, 69% declararam ter formas mais modernas para se atua­lizar. Entre os mais pobres essas formas são o rádio, a TV, os jornais e as revistas; entre os mais ricos a internet, os CD-ROMs e a TV paga.

Além disso, cerca de um terço dos entrevistados declararam que só lêem para o trabalho, ou só para estudar ou que nunca leram um livro espontaneamente.

Para se ter uma compreensão mais abrangente desses números e de tudo o que está por trás deles é preciso levar em conta algumas questões. Elas estão resumidas no texto em que a Associação de Leitura do Brasil (ALB) apresenta o seu projeto de Censo de Leitura - anterior à pesquisa das entidades do setor editorial. A ALB ressalta que parece haver um descompasso entre "os discursos catastrofistas sobre condições de leitura no país e os dados numéricos" sobre tiragens de livros, jornais e revistas, crescentes nos anos 90.

Segundo a entidade, isso ocorre porque se trabalha com uma concepção mítica de leitor e de leitura, que não "considera leitura o ato de intelecção de best-sellers, de livros religiosos, de jornais ‘populares’, revistas femininas, novelas sentimentais, livros de auto-ajuda. Nega-se a existência de leitores, pois espera-se que todos leiam clássicos da literatura, revistas e jornais cultos, livros técnicos eruditos. Construiu-se historicamente uma idéia mítica de livro e de leitura, evidentemente inatingível como qualquer mito".

Como mostra a pesquisa Retrato da Leitura, esse leitor real, de carne e osso, começa a ser visto, descoberto e estudado, ou seja, ele começa de fato a ser levado em conta quando se fala em leitura no Brasil. E isso é não só lógico do ponto de vista mercadológico como justo. Muitas vezes esse é um leitor quase heróico, que consegue, de alguma forma - em igrejas, por empréstimos de amigos, por meio da escola ou das poucas e precárias bibliotecas existentes -, superar os obstáculos que lhe são impostos e chegar até o livro, contra quase todas as probabilidades.

Muitas vezes ele tem apenas a Bíblia como leitura, ou um livro de culinária ou de aventuras. Mas é um leitor e tem, portanto, a possibilidade de trilhar um caminho próprio no infinito universo do livro e da leitura.

Por tudo isso, cabe dar mais relevo ao debate sobre como superar a situação de exclusão da leitura que atinge um universo enorme de potenciais leitores (segundo a pesquisa, seriam 60 milhões de pessoas, sem contar as crianças). Essa é uma discussão que deve envolver governos (Executivo e Legislativo, federal, estaduais e municipais), o setor privado (indústrias editorial, gráfica e de papel, livrarias e distribuidoras), autores e profissionais do livro, professores, escolas e universidades (públicas e privadas), imprensa e, a bem da verdade, toda a sociedade.

Algumas iniciativas já foram tomadas. Existem e funcionam atualmente inúmeros projetos de incentivo à leitura, de variados formatos e concepções, e muitos deles têm tido ótimos resultados. Além disso, em outro âmbito, já foram aprovadas "leis do livro" no Rio Grande do Sul e na cidade de Ribeirão Preto (SP), por exemplo, e está no Senado um projeto de lei do senador José Sarney (PMDB-AP) que propõe uma política nacional do livro. Pode estar aí um bom começo para o debate, que certamente tem de avançar para muito além disso. Mas é preciso dar os primeiros passos.

Dados de pesquisa dão a exata dimensão da exclusão da leitura

- 7% da população adulta alfabetizada detém 58% dos livros;

- 14% não têm nenhum livro em casa (inclusive escolares); 33% têm até 10 livros e 20% têm entre 11 e 25 livros;

- 60% dos membros da classe A (renda média mensal de R$ 4.818) são leitores efetivos (leram pelo menos um livro nos últimos três meses); nas classes D/E (renda média mensal de R$ 435 e 229, respectivamente) esse percentual cai para apenas 21%;

- 63% dos que têm nível superior são leitores efetivos contra apenas 16% de leitores efetivos entre os que cursaram somente o primário;

- 48% dos membros da classe A compram livros enquanto apenas 10% dos membros das classes D/E o fazem;

- 55% dos que têm nível superior compram livros e apenas 10% dos que têm só o primário o fazem;

- 49% dos leitores e 53% dos compradores de livros estão na região Sudeste.


Livro: Um desafio à TV brasileira

A TV brasileira deveria divulgar muito mais o livro e a leitura. Afinal, ela não é um instrumento de cultura? Por que a leitura e o livro são tão importantes?

Ler permite ir muito além de si mesmo, viajar, aprender, informar-se, divertir-se, aprimorar o raciocínio, a imaginação, a linguagem etc. Muito já se falou e escreveu sobre isso. É um instrumento para o crescimento de toda pessoa como cidadão e ser pensante e sensível.

No entanto, deixando de lado todos os demais aspectos, um só deles devia ser suficiente para que, num país como o Brasil, a leitura fosse prioridade: com ela se aprende. Aprende-se a pensar, a escrever, a falar, a ensinar, a consertar o carro, a cuidar melhor do seu cachorro, a usar o computador, a operar um torno mecânico etc.

Ou seja, a leitura é o meio mais barato e eficaz de difundir (e elaborar) conhecimento e tecnologia. É um instrumento de desenvolvimento do homem.

A TV deve ser um serviço público – Tudo isso foi dito apenas como um breve preâmbulo, necessário para o que vem a seguir.

E o que vem a seguir é um desafio. Desafio às emissoras de TV brasileira, em particular às de maior audiência, mas não só a elas, às publicas, às universitárias e às pagas também: criar programas populares sobre livros e leitura na TV.

Vou me limitar a argumentar a partir do caso da Rede Globo, por sua importância para o país, gostemos ou não. A TV Globo é uma concessão de serviço público. Tem (ou deveria ter), portanto, responsabilidades sociais e culturais. Desenvolveu uma técnica aprimoradíssima, uma programação popular e tem uma influência sem igual entre nós, para o bem e para o mal.

Por que não pode a TV Globo criar um programa popular sobre livros, investindo nele todo o seu know-how, tornando-o agradável, inteligente, popular, campeão de audiência? Quando a Globo quer ela sabe fazer isso muito bem. Isso é perfeitamente possível. É só querer e mobilizar seus anunciantes para tal, usando, por exemplo, seus astros para apresentar um programa desse tipo. Por que não os galãs da novela das oito como âncoras? Ou jornalistas respeitados?

Dou até uma sugestão: que tal um programa de cinco minutos, diário, apresentado antes do Jornal Nacional, sobre livros e leitura? Num dia se aborda o novo livro de Paulo Coelho, no outro Os Maias, de Eça de Queirós (que já foi tema de minissérie na emissora...), no outro se fala de Harry Potter, depois do Menino Maluquinho, de Ziraldo, em seguida de Dom Casmurro, de Machado de Assis etc. Pauta não faltará.

Trata-se de uma obrigação e de um dever das TVs – e da TV Globo em especial – como concessionárias de um serviço público.

Isso estimularia a leitura, desmitificaria o livro, o levaria para perto daqueles a quem ele parece ser uma terrível e inacessível “coisa de intelectual”, faria com que a população reivindicasse mais e melhores bibliotecas, talvez até contribuísse para que as tiragens aumentassem e o preço do livro diminuísse.

Popularizar o livro e a leitura – Enfim, se prestaria um serviço ao país e ao seu povo. E, é claro, por tabela, à indústria do livro (escritores, editores, universidades, pesquisadores, tradutores, ilustradores, revisores, paginadores, livreiros, distribuidores, gráficas, produtores de papel, vendedores de livro etc.) e à produção e difusão do conhecimento.

Certamente, isso não resolve os problemas de fundo responsáveis pelos baixos índices de leitura entre nós. A miséria de grande parte da população e os gravíssimos problemas educacionais são questões que precisam ser enfrentadas para termos uma nação de leitores – e um país justo e democrático.

Mas, acredito, a ação positiva das TVs brasileiras na divulgação do livro e da leitura seria um importante fator para popularizar e aproximar esse hábito de grande parte de nossa população.

Fica o desafio.

Flamarion Maués é coordenador editorial da Editora Fundação Perseu Abramo e mestrando em história na USP