Nacional

Por que o impediram de continuar a nos apontar o futuro?

Celso, me pediram para escrever sobre você e sua importância no campo das políticas públicas. A dor de perdê-lo, misturada à revolta diante da crueldade de seu assassinato, provavelmente me impede de deixar registrado no papel de forma clara e objetiva seu legado, sua contribuição. Você, assim como meu querido colega Toninho, foram assassinados muito antes de terem realizado tudo aquilo que sabiam fazer, que podiam fazer, que certamente iriam fazer. Fica difícil então dizer simplesmente o que fizeram. Então, mais do que falar sobre o caminho que andou, falo sobre o caminho que abriu.

Contrafluxo. Quando todos pareciam estar tomados por um municipalismo fundamentalista, Celso investiu fortemente na reconstrução da idéia de região, de solidariedade e cooperação entre cidades, contrariando radicalmente a onda neoliberal avassaladora da livre competição entre as cidades. Mais do que um consórcio entre governos, Celso idealizou um espaço político em que governo e sociedade regionais construíssem uma alternativa de sustentabilidade econômico-social-ambiental para o Grande ABC: a Câmara Regional do Grande ABC.

O projeto da Câmara Regional e o da Agência de Desenvolvimento que lhe sucedeu foram inovadores em vários aspectos, ao afirmar a possibilidade de construção local de um projeto de desenvolvimento, contestando veementemente o municipalismo e a idéia de que o tema do desenvolvimento econômico é exclusivo da pauta nacional, mas também ao apostar fortemente na construção de um espaço público não estatal. Este espaço se contrapõe tanto à idéia do Estado mínimo da agenda neoliberal quanto à visão estatista que concebe o Estado como ente que detém o monopólio do saber e do poder.

A experiência da construção da Câmara Regional aposta na idéia de um Estado forte que se contrapõe ao mercado regulador e garante a autonomia da sociedade. Por outro lado, desafio do projeto regional é o desafio de não submeter o ABC a uma condição de “ex-área industrial proletária do século passado”, insuflando uma nova energia para os protagonistas de uma das grandes viradas políticas da nossa história: o sindicalismo do ABC. As cidades que deram origem à CUT, que ajudaram a derrubar a ditadura e construir o PT, não podiam simplesmente sucumbir à reestruturação produtiva e à globalização.

Paradoxalmente, a afirmação regional não significou um abandono da política municipal, andreense, de enfrentamento da crise. Pelo contrário: raras foram as cidades que passaram por um processo tão intenso de reconstrução da auto-estima, claramente conduzido pelo poder público municipal – Celso Daniel e sua equipe. Quem percorre a cidade talvez perceba os sinais exteriores – jardins cuidados, cidade limpa, prefeitura reformada. Mas quem vive em Santo André sabe bem a diferença que existe entre maquiagem e faxina de alma. Por trás do novo revestimento das fachadas do saguão municipal existe uma nova lógica de atendimento eficiente e respeitoso ao cidadão, por trás das calçadas limpinhas tem um programa de coleta seletiva com inclusão social que atende a 100% da cidade. As favelas que se urbanizam são fruto de um programa que integra as várias dimensões da luta contra a exclusão: moradia, saneamento ambiental, assistência social, saúde, educação, emprego, acesso ao crédito.

Do ponto de vista da relação Estado-sociedade, no espaço municipal também se afirmou um modelo de gestão pública em que se partilha o poder com a sociedade civil, por meio do orçamento participativo e da formulação de um processo mais permanente e coletivo de definição de estratégia de cidade: o “Santo André Cidade Futuro.”

Contrafluxo também, Celso, este seu jeito reservado e tímido, que não gostava de ficar dando tapinha nas costas de eleitor. Lembro-me bem da primeira vez que saí pelas ruas de Santo André acompanhando-o: você andava sério e discreto, cumprimentava as pessoas de longe, com um leve aceno de cabeça, parecia que nem queria ser muito reconhecido. Eu pensei: “não é possível, um prefeito assim!” Poucos meses depois, Celso foi reeleito com 70% dos votos no primeiro turno. Lição para a política brasileira: populismo é dispensável...

Vou lembrar para sempre, Celso, sua incrível capacidade de escuta. Em qualquer conversa, reunião, assembléia ou negociação, você passou a maior parte do tempo ouvindo atenta e pacientemente seu(s) interlocutor(es), tentando em seguida, na sua fala, absorver ao máximo os argumentos, contemplar os questionamentos. Acho que nunca o vi bradar um argumento em alta voz nem gritar com um interlocutor em uma discussão acalorada. Acho que por isso era tão fácil para você exercer os mandatos de forma democrática – este era seu jeito de ser!

Intelectual e formulador de políticas públicas, administrador pragmático e realizador, líder generoso raras vezes estas qualidades se combinam na mesma pessoa –, por isso certamente você teria uma longa e promissora vida política e profissional pela frente, quando interromperam de forma brutal e covarde sua trajetória.

Mas sei que você continua aqui conosco tuas dúvidas e inquietações iluminarão o caminho que continuaremos a construir!

Raquel Rolnik é urbanista, técnica do Instituto Pólis e professora da FAU-PUC/Campinas. Autora de vários livros, entre eles: A cidade e a lei, O que é a cidade e Folha explica São Paulo