O Brasil que queremos é socialista, isto é, uma sociedade democrática nos planos político, social e econômico. No plano político, isso significa não só consolidar o regime democrático recém-conquistado, mas aprofundá-lo abrindo o aparelho de Estado à participação direta e indireta das classes e frações de classes que compõem a sociedade brasileira. No socialismo é de se esperar que as classes sociais desapareçam, mas durante a construção do novo modelo elas não só continuarão a existir, mas também continuarão a lutar, disputando parcelas da renda nacional e espaços na economia. O Estado arbitrará estas lutas, e para fazê-lo de modo democrático (e não arbitrário, isto é, autoritário), terá que criar espaços de negociação entre os interesses de classes. O modelo que o "modo petista de governar" inventou e que se mostra eficaz é o orçamento participativo. No plano político, o principal objetivo do modelo proposto é generalizar o orçamento participativo em todos os níveis de governo. Complementado possivelmente por câmaras setoriais, outra instituição em que governos petistas vêm investindo.
No plano social, democratizar a sociedade brasileira significa estender as oportunidades de trabalho e consumo à metade da população de baixa renda (que em 1998 ganhava até dois salários mínimos). Esta população não é uma massa homogênea, sendo bastante diversificada. Parte dela está nas cidades, inclusive nas metrópoles, representando um vasto exército pós-industrial de reserva, tentando ganhar a vida mediante formas precárias de trabalho: venda de mercadorias nas ruas, prestação de serviços domésticos, de reparação e semelhantes. Outra parte ainda se encontra no campo, composta por famílias rurais sem terra ou com pouca terra. Os pobres do campo também não são homogêneos, pois muitos vivem em bolsões de pobreza, áreas muito atrasadas em que a produção ainda se faz com métodos primitivos e a produtividade é muito baixa. Outros vivem em áreas de agricultura predominantemente capitalista, constituindo um proletariado agrícola nômade ou seminômade, que vende sua força de trabalho como diarista ou tarefeiro.
Esta metade da população, em função de suas condições de vida, está em geral alienada da vida política porque não está organizada. Grande parte dela acaba sendo clientela de políticos de direita que compram seu voto com pequenos presentes e favores. Redimi-la vai exigir reforma agrária no campo, com crédito abundante e barato e extensão dos serviços de educação e saúde aos bolsões de pobreza. Nas cidades, a forma comprovada de inserir estas camadas à produção é o cooperativismo, o que exige amplo trabalho de mobilização e educação, combinado com crédito, assessoria técnica e comercial etc. O combate à pobreza não pode ser feito pelo Estado exclusivamente, requer a criação de entidades civis - ONGs, organizações eclesiais, incubadoras universitárias e sindicais, escolas experimentais para crianças, jovens e adultos, cooperativas de crédito e bancos do povo e muito mais - que trabalhem com os pobres e os ajudem a resgatar sua cidadania e dignidade humana. O Estado deve dar apoio material a tais entidades, avaliando o efeito do uso de recursos públicos sem interferir nas atividades.
No plano econômico, democratizar a sociedade significa estimular o desenvolvimento de modos de produção em que os meios de produção são possuídos pelos produtores diretos, de forma individual (agricultura familiar, comércio familiar, artesanato e indústria em pequena escala, serviços de conservação e reparação de habitações etc.) e coletiva (cooperativas ou associações de produtores, no campo e na cidade). A expansão destes modos de produção (que formam a chamada economia popular ou do trabalho) tem por efeito reduzir a divisão de classes entre os possuidores do capital, que controlam a atividade econômica, e os que apenas exercem funções subalternas em troca de salário quase sempre insuficiente para um padrão digno de vida.
Mas isso não significa que o modelo social proposto possa prescindir da empresa capitalista, a não ser a longo prazo. A grande empresa capitalista no Brasil está hoje em grande parte em mãos de transnacionais, que detêm o quase monopólio do desenvolvimento das forças produtivas. As grandes empresas capitalistas brasileiras conseguem participar deste monopólio por meio de acordos e parcerias com transnacionais e apenas subsidiariamente por pesquisa e desenvolvimento autônomos. É preciso criar condições para que a transferência da melhor tecnologia e o desenvolvimento de nova tecnologia dentro de nossa economia se intensifiquem, o que requer não só preservar mas estimular a acumulação de capital pelas grandes empresas, nacionais e transnacionais.
O modelo social proposto visa, no entanto, a limitar - e na medida do possível reduzir - a ditadura do capital nas empresas capitalistas. A classe operária já avançou algo nesta direção, ao assegurar em lei vários direitos dos trabalhadores: de organização sindical e de greve, de representação no local de trabalho, de limitação da jornada de trabalho etc. Deve-se avançar muito mais, o que requer que a relação de força entre o capital e a classe operária no mercado de trabalho seja muito mais favorável a esta. É preciso eliminar o desemprego em massa no menor prazo, para permitir que o movimento sindical possa retomar as lutas por novos direitos do trabalhador, sobretudo no local de trabalho. Entre estes direitos se destaca a participação dos empregados no lucro da empresa, que deve ser regulamentado garantindo aos representantes destes junto à direção da empresa a faculdade de averiguar a real situação econômica da firma e o montante efetivo de seu lucro.
A democratização da sociedade e do aparelho de Estado exige a reconquista da soberania do Brasil face ao capital estrangeiro, uma redefinição dos limites e das relações entre mercado e Estado, um aumento substancial dos gastos redistributivos do erário público e a aceleração do crescimento da economia nacional.
A reconquista da soberania
A política econômica seguida desde 1994 mergulhou o país em imensa dívida externa acrescida de entradas de dezenas de bilhões de dólares de investimentos diretos estrangeiros. O serviço deste passivo externo descomunal desequilibra nossa conta corrente com o resto do mundo, obrigando o Brasil a continuamente tomar novos empréstimos no exterior e a atrair novos investimentos diretos estrangeiros, que geram a seguir novos pagamentos de juros e novas remessas de lucros ao exterior. O desequilíbrio estrutural das contas externas, que se aprofunda ininterruptamente há seis anos, dá aos aplicadores externos um virtual poder de veto sobre toda política do governo brasileiro.
É necessário romper este círculo vicioso, sem causar fuga de capitais nem isolar o país da economia mundial. Para alcançar este objetivo é preciso lançar mão de diversas políticas combinadas: desvalorizar adequadamente o real para aumentar a competitividade das empresas localizadas aqui, permitindo-lhes exportar mais e substituir importações; desenvolver políticas tecnológicas, industriais, agrícolas e comerciais para os mesmos fins - maximizar exportações e substituir importações. O objetivo deve ser alcançar um saldo comercial positivo no mínimo do mesmo valor que o déficit na conta de serviços, de modo a zerar inicialmente o déficit em conta corrente.
Uma vez alcançado este objetivo, as políticas econômicas devem visar à paulatina redução do passivo externo mediante a amortização de parte da dívida externa e eventualmente (se necessária) mediante a reaquisição do controle acionário de empresas de serviços públicos privatizadas e desnacionalizadas. Convém notar que esta etapa levará anos até ser atingida, pois a construção dum saldo comercial de US$ 25 a 30 bilhões deverá ser feita sem uma redução acentuada do consumo interno. Algo semelhante foi logrado no início dos anos 80, mas à custa de enorme recessão que causou desemprego em massa e arrocho salarial violento.
Como medida imediata para a reconquista da soberania, o Estado brasileiro deve retomar o controle sobre a movimentação de capitais para dentro e para fora do país. O sistema de controle deve ser desenhado de modo a garantir a participação de todos interesses legítimos, inclusive dos nossos credores externos. É preciso deixar claro para eles que o controle sobre a movimentação de capitais não visa a declarar uma moratória nem impedir entradas e saídas não-especulativas de recursos.
A elevação irresponsável do passivo externo foi devida a decisões políticas do governo brasileiro, não nos sendo imposta pelos aplicadores externos. Estes se deixaram atrair por grandes taxas de juros e várias vezes, nos últimos anos, retiraram em pânico seus capitais do Brasil quando perderam a confiança na capacidade de pagar dívidas do tesouro nacional. Não há qualquer necessidade de romper com eles para reconquistar a soberania. Antes pelo contrário, evitar esta ruptura ajudará a preservar as reservas cambiais e a acelerar o crescimento da economia.
A reinserção soberana do Brasil na economia mundial tem que contemplar uma série de outras mudanças políticas, objetivando reduzir a dependência tecnológica, industrial, comercial e financeira do país em relação aos capitais transnacionais, que já exercem ou exercerão em breve forte hegemonia sobre setores vitais da economia nacional. Para reverter este quadro, faz-se necessária uma aliança entre governo, o capital privado nacional, as cooperativas de produção e de crédito, as empresas médias e pequenas de todos os ramos e a comunidade científica e universitária.
Mercado e Estado
O Estado retomará funções essenciais que lhe foram tiradas nos últimos anos: o controle de preços, aluguéis, salários e juros; a construção e operação de serviços públicos essenciais, tais como água e esgoto, energia elétrica, sistema viário e eventualmente das telecomunicações. A mercantilização da saúde e da educação deverá ser revertida, o que não quer dizer que estas duas áreas essenciais ao bem-estar da população devam operar inteiramente sob o controle do Estado. É preciso assegurar que postos de saúde, hospitais, escolas e universidades possam funcionar de forma descentralizada e relativamente autônoma, sob controle de usuários, profissionais e funcionários. O mesmo vale para as instituições científicas.
Os mercados devem ser preservados, mas submetidos a regras que impeçam que sejam dominados por interesses privados. Eles são eficientes como canais de distribuição de produtos entre empresas e entre estas e consumidores. E podem sê-lo também na alocação de capitais entre setores e empresas, desde que a intermediação financeira seja pública e o crédito seja repartido por critérios macroeconômicos e sociais antes de ser alocado a devedores individuais mediante critérios públicos e consensuais de avaliação de riscos.
A reformulação do sistema financeiro visa cortar pela raiz a tendência imanente à centralização de capitais que ele vem promovendo1. O sistema financeiro deve ser democratizado, o que significa que deve ser posto sob o controle de todos os interesses de classe. Isto poderá ser alcançado em parte mediante a construção de ampla rede de cooperativas de crédito que possa operar bancos cooperativos, capazes de captar parte significativa da poupança nacional para financiar cooperativas e pequenas e médias empresas.
Aceleração do crescimento
O Brasil é um país semidesenvolvido: metade da população vive no mundo contemporâneo e participa da terceira revolução industrial; a outra metade vegeta em pobreza, sobrevivendo em atividades marginais em que o trabalho é de baixa produtividade e de baixíssima remuneração. Um país nestas condições tem grande facilidade para crescer, pois basta transferir à população excluída os recursos técnicos, organizacionais e financeiros que lhe permitam se inserir na economia moderna do próprio país.
É claro que a economia pode crescer também simplesmente pela sua metade desenvolvida, deixando que o fosso entre ela e a metade excluída se aprofunde. O que se almeja é o contrário. Na situação específica brasileira, é indispensável que as duas metades cresçam, embora em ritmos desiguais. É preciso que a economia avançada cresça para que a reconquista da soberania se viabilize. A expansão das exportações e a substituição de importações só se tornam possíveis mediante o crescimento das atividades tecnologicamente avançadas, o que acarreta aumento do emprego e, portanto, absorção de parte da população excluída.
Ao lado do crescimento das grandes empresas capitalistas, que atualmente dominam a parte avançada da economia nacional, é preciso promover o crescimento das cooperativas e das pequenas e médias empresas, que podemos denominar "economia popular". Já examinamos sinteticamente medidas a serem adotadas para sustentar este crescimento. O que falta discutir é o tempo imprescindível para dinamizar esta economia. Este tempo é inicialmente longo, porque o processo de inserção dos mais pobres requer verdadeira revolução cultural, pela qual eles conquistam nova sociabilidade mediante a qual se apropriam de novos valores e novos códigos. A experiência mostra que, depois de vencida esta etapa, os ganhos de eficiência e produtividade são rápidos.
Isso implica que durante todo um período, difícil de medir em anos, a economia brasileira será impulsionada pela grande empresa capitalista, nacional e transnacional. Só depois de vencida esta etapa, a economia popular poderá ter ganhado tamanho e dinamismo suficiente para se tornar um pólo alternativo ao capitalista.
Paul Singer é economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate