Nacional

Desenvolvimento local em texto inédito de Celso Daniel

No dia 9 de abril de 2001, foi realizada, no auditório Paulo Freire, em São Paulo, mais um debate do ciclo "Socialismo e Democracia", iniciativa conjunta da Secretaria Nacional de Formação Política do PT, do Instituto Cidadania e da Fundação Perseu Abramo. O tema "Perspectivas que o desenvolvimento local e a distribuição de renda abrem à construção do socialismo" teve como expositor o prefeito de Santo André, Celso Daniel, e como comentadores a senadora Marina da Silva, o vice-governador do Rio Grande do Sul, Miguel Rossetto, e o sociólogo Ladislau Dowbor. Como os demais seminários desta série, esse será publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. Porém, tragicamente assassinado em 20 de janeiro último, Celso Daniel não teve tempo de rever a transcrição de sua exposição. Como parte de nossa homenagem a esse brilhante intelectual, publicamos aqui o trecho final de sua exposição, no qual Celso trata da relação entre o desenvolvimento local e o socialismo. Coube a mim, como editor, a triste tarefa de editá-lo. Triste, porém fácil. Como bom professor que era, Celso se expressava com grande facilidade e, como os amigos diziam, "quando ele fala, sai texto". No entanto, eventuais falhas de interpretação são de minha inteira responsabilidade. Sei que o Celso compreenderia.

Busco fortalecer a relação entre desenvolvimento local e socialismo no Brasil, considerando que ela deve se traduzir para nós em dois níveis diferen­ciados. O primeiro diz respeito às próprias referências para a gestão local, que podem ser entendidas como tradução concreta de princípios socialistas. Não se trata, evidentemente, de fazer socialismo em nível local, independentemente de todo o resto do país. Estou falando de experiências práticas que expressam, concretizam princípios socia­listas, e portanto prefiguram referências de socialismo que prezamos e queremos ver implementadas.

Mas, por outro lado, acredito que a outra forma pela qual essa relação entre desenvolvimento local e socialismo deve ser pensada é na construção prática das bases para um novo federalismo, como parte de outro projeto nacional.

Parto da idéia de que está colocado, do ponto de vista da gestão municipal, diferentes alternativas de desenvolvimento local, de distribuição de renda, de participação da comunidade e assim por diante. Devemos nos contrapor, em nível local, às idéias neoliberais e a toda herança de autoritarismo e dependência que temos no Brasil. Devemos nos contrapor a um poder administrativo que se combina com clientelismo, que é uma tradição muito sólida no Estado brasileiro.

A nova agenda local, que para mim se traduz em várias dimensões - conforme busquei desenvolver no texto "A gestão local no limiar do novo milênio", que escrevi para o livro Governo e cidadania publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo -, precisa ter uma tradução própria a partir de uma alternativa que pense a questão da gestão local com base no princípio da radicalização da democracia, com base nos princípios socialistas.

Existe uma idéia central: um Estado local forte e democrático, condição para se pensar um bloco social territorial e, portanto, uma regulação social dos mercados em nível local, o que envolve pelo menos três pontos. Em primeiro lugar, vontade política, ou seja, um compromisso de superação dessa tendência sempre recorrente de "fuga para frente" que também se expressa em nível local, seja em relação ao poder econômico, seja nas práticas clientelistas.

Em segundo, um fundo público compatível com as condições para o alargamento da esfera pública no plano local. Aqui, vou contra a tendência majoritária no país, e reafirmo a necessidade de uma carga tributária alta, porque sem uma carga que possa servir de suporte para um fundo público voltado ao social não há como efetivamente alargar os direitos no país. Isso é necessário no quadro de uma nova federação com ênfase no espaço local. Algo que tem sido deixado completamente de lado, por exemplo, no debate sobre a reforma tributária, teria de ser reposto: o fortalecimento das esferas local e regional.

Em terceiro lugar, precisamos de um outro Estado. Não podemos continuar reafirmando o Estado herdado, porque não é o que queremos. Temos necessidade de reconstruí-lo por dentro, quebrando as caixas-pretas hoje existentes a partir da esfera local, com processos que garantam a prestação de serviços públicos de qualidade e a baixo custo. Isso não é outra coisa senão o "governo barato" de que fala Marx na Comuna, e isso não é apenas fazer o combate à corrupção, é muito mais. Exige conhecimentos que muitas vezes não temos e não trabalhamos de maneira adequada, inclusive nas nossas experiências de gestão local.

O desenvolvimento local inclusivo não é um desenvolvimento local qualquer. Desenvolvimento local a qualquer custo não nos interessa, Queremos desenvolvimento com inclusão social, em que haja criação e alargamento de esferas públicas, em que diferentes atores políticos, econômicos e sociais dialoguem de maneira transparente a partir dos seus próprios interesses e conflitos, mas buscando construir em conjunto um novo parâmetro de desenvolvimento local. Nesse ponto, não posso deixar de mencionar nossa experiência de desenvolvimento regional no Grande ABC por meio da Câmara Regional, da Agência de Desenvolvimento Econômico, do Consórcio Intermunicipal etc.

Outra questão que nos interessa tremendamente como elemento fundamental do desenvolvimento econômico local são as idéias básicas da economia solidária, sem perder de vista que este desenvolvimento também tem de estar vinculado com segmentos mais dinâmicos da nossa economia. Essa vinculação me parece absolutamente essencial, e aqui entra com peso o movimento sindical, não apenas como a CUT vem fazendo, estimulando a economia solidária, mas na construção de novos referenciais de sindicalismo e da própria relação capital-trabalho. Temos que trabalhar muito mais com referências voltadas à idéia de construir localmente benefícios locais e regionais do que com a idéia de fazer cair custos. A idéia do chamado "Custo Brasil" é neoliberal!

Então, quando consideramos o desenvolvimento local, evidentemente não podemos pensá-lo a partir desse referencial. Temos que adotar outro, criando benefícios de tal maneira que uma região não precise ficar competindo com outras, porque competição entre regiões significa guerra fiscal. O combate à guerra fiscal e à competição interre­gional tem de partir da idéia de que é possível, por meio de um movimento endógeno, construir o desenvolvimento com a agregação de benefícios, de vantagens locacionais baseadas na qualidade de vida, na garantia dos direitos sociais e trabalhistas.

Creio que é perfeitamente possível pensar o desenvolvimento local em outras bases. Para terminar, abordarei rapidamente a questão da inclusão social. Não apenas pelo fato de termos, no Brasil, uma herança de exclusão social profunda, mas também porque a forma como o processo de globalização se combinou e se efetivou, a partir de referenciais neoliberais, levou a um aprofundamento dos processos de exclusão. Aqui, pensar o desenvolvimento local significa, necessariamente, pensá-lo também a partir de iniciativas, de ações voltadas à inclusão social. Não fazer apenas políticas compensatórias, mas superá-las. Pensar políticas de inclusão social significa fazer vinculações com o próprio desenvolvimento econômico, com a economia solidária, com os programas sociais que têm sido experimentados por governos de esquerda, e até ir um pouco mais além. Significa pensar na idéia de garantir os chamados mínimos sociais de maneira universal no espaço local, com base na implementação de políticas multidimensionais, que rompam, portanto, a setorização característica das políticas públicas, ou seja, política de saúde de um lado; política de educação de outro; política de ação social de outro e assim por diante. A idéia de pensar um indivíduo como totalidade e na condição de incluído socialmente, portanto com direito à cidade de maneira integral, envolve a implementação de propostas que sejam muito mais integradas, abrangentes, intersetoriais, para com isso criarmos condições para que as pessoas excluídas possam efetuar o trânsito dessa situação para a inclusão plena. Isso envolve aspectos, por exemplo, ligados a violência urbana, educação, saúde, cultura e também à criação de condições para que elas possam se inserir ou se reinserir na economia por meio de pequenos negócios, de cooperativas de trabalhadores, de sua reinserção no mercado de trabalho e assim por diante.

Creio que há aqui também uma reconceituação, na questão das políticas sociais, do que chamávamos de inversão de prioridades. Ela é fundamental e está hoje colocada na ordem do dia pelo fato de que políticas compensatórias também são preconizadas pelos neoliberais, e quem pensa que a ação a partir da esfera local pode ser transformadora tem que pensar não apenas em programas diferenciados, mas em programas que em última instância tenham realmente como referência idéias transformadoras que, no meu entender, ainda continuam a ser, de verdade, idéias socialistas.

Celso Daniel, prefeito de Santo André

(editado por Ricardo de Azevedo)