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Nas últimas semanas acelerou-se o ritmo do jogo político-eleitoral, com a ocorrência de uma série de fatos que reembaralham as cartas, mudando a posição dos parceiros

Em questão de poucas semanas, a conjuntura foi estremecida por três fatos novos relativos à sucessão presidencial. A partir deles, desenha-se uma cena modificada, cuja compreensão torna-se indispensável para os atores políticos e os cidadãos em geral. Cada um dos acontecimentos obedece a uma lógica própria, porém da imbricação entre eles vai resultar uma correlação de forças inédita.

Na realidade, o que ocorreu foram três rodadas de um jogo que parecia fadado a começar em junho e, para todos os efeitos, iniciou antes. Cada uma dessas rodadas anulou a anterior e no reembaralhar das cartas, os parceiros saíram com posições deslocadas. A velocidade dos fatos dificultou a percepção dos efeitos produzidos por cada volta, de modo que o melhor é observar uma a uma as mãos da partida ainda em andamento.

1  O caminho liberal

Há meses falava-se numa aproximação entre Lula e um empresário-político de Minas Gerais, mas nada de concreto acontecera. Na quarta-feira, 13 de fevereiro, porém, o pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva visita fábricas da Coteminas em Montes Claros (MG). As indústrias são propriedade do senador José Alencar (PL-MG). Em solo mineiro, Lula declara que vai trabalhar para que o senador venha a ser vice na chapa que ele encabeçaria. Diz mais, segundo a Folha de S. Paulo: “Queremos fazer uma aliança com o PL não apenas para ganhar as eleições, mas para governar”. No que foi referendado pelo presidente nacional do PT, deputado José Dirceu.

No dia seguinte, em Natal (RN), onde prosseguiu a visita a outras unidades do grupo Coteminas, Lula pôs mais lenha na fogueira. Disse que iria buscar também o PMDB. “Vamos procurar todos os que se opõem ao governo FHC”.

As reações demoraram a aparecer. No princípio foi o silêncio. Uma ou outra manifestação e até um editorial de O Estado de S. Paulo em que se elogiava a integração do PT à vida política normal do Brasil. Na semana seguinte, contudo, o caldo começou a engrossar. Às vésperas de um encontro em que Lula e José Dirceu jantariam na casa do deputado Bispo Rodrigues (PL-RJ), em Brasília, o parlamentar, que é também coordenador político da Igreja Universal do Reino de Deus, resolveu mandar um recado aos dirigentes do PT. “Somos da opinião de que o país não pode testar novas experiências na área econômica. Não podemos fazer do Brasil um balão de ensaio”, declarou Rodrigues.

Na terça-feira, 19 de fevereiro, houve a gota d’água. Lula e José Dirceu de fato compareceram ao jantar na residência de Rodrigues, tido como homem de confiança de Edir Macedo, o poderoso chefe da Universal do Reino de Deus e proprietário da Rede Record. Para além do que possa ter sido discutido na ocasião, maior impacto teve a foto do encontro, publicada pela Folha de S. Paulo com um dia de atraso. O retrato mostrava Lula ladeado por Luiz Antônio Medeiros (PL-SP), Rodrigues e Valdemar Costa Neto (PL-SP).

O movimento que começara no Rio de Janeiro alguns dias antes, quando a esquerda do PT declarou-se contra a aliança com o Partido Liberal (o slogan proposto era “Edir Macedo não é meu companheiro”), recebeu então uma adesão de peso. O governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, saiu a campo na quinta-feira, 21, mais de uma semana depois dos primeiros movimentos de Lula, para criticar a possível aliança. “O PL não está no campo democrático e popular definido como nosso leque de alianças”, argumentou Olívio. Mesmo envolvido numa dura briga pela candidatura ao governo do Estado, o prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, postou-se ao lado do rival, Olívio, para condenar a aproximação com os liberais.

Para completar a reação condenatória, nada menos do que a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) sentiu-se compelida a vir a público para dar um toque inusitado ao imbróglio. Afinal, não é comum a Igreja Católica pronunciar-se sobre questões partidárias. Mas na mesma quinta-feira em que no extremo-sul, os gaúchos unificavam-se contra a ligação PT-PL, o vice-presidente da CNBB, D. Marcelo Carvalheira botava a boca no mundo. “Nós sabemos o risco que acontece se elementos de uma igreja que tem uma potência na comunicação tão grande buscar certos objetivos, por exemplo, exigir um ministério. Claro, isso pode preocupar alguns setores da Igreja Católica.”

O PT que, até então, estava em situação confortável na corrida presidencial, via-se, subitamente, na defensiva. O senador Alencar, que se mantivera em relativa discrição (chegara a afirmar a O Estado que estava “à esquerda de Lula”), deu então uma entrevista polêmica à Folha. Nela, afirmava que seria favorável a manter Armínio Fraga na Presidência do Banco Central, que o MST era um mal para o país e que considerava o homossexualismo uma forma de violência à natureza humana.

As opiniões emitidas por Alencar, obrigaram José Dirceu a uma gentil resposta. De acordo com ele, não existiria nenhuma possibilidade de manter Fraga no BC. “O senador pode ter a opinião dele, mas não é a do PT.” Em meio a uma  tensa reunião da Comissão Executiva na segunda-feira, 25 de fevereiro, o partido decide adiar uma decisão a respeito do polêmico assunto PL e PMDB para a próxima reunião do Diretório Nacional, a ser realizada em 23 e 24 do mês de março.

Água fora jogada na fervura, mas desenhava-se um impasse de proporções inéditas no interior do PT. Sem possibilidade de realizar alianças com a centro-esquerda, pois PSB e PPS tinham candidatura individuais, nem com o PSDB, que embora de centro estava alinhado com a direita, só restava ao PT tentar juntar forças com partidos de centro porém mais próximos da centro-direita, como são o PL e o PMDB. Tal “salto”, contudo, era largo demais para a tradição petista e ameaçava dividir a agremiação.

2. O TSE zera o jogo

Quando a esquerda parecia engolfada na pior crise interna desde que surgiu o PT, o Tribunal Superior Eleitoral decide zerar o jogo. Na noite da terça-feira, 26 de fevereiro, um estranho item é acrescentado à pauta do TSE. Uma consulta encaminhada àquela corte pelo deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ) seis meses antes perguntava se, nos estados, os partidos deveriam seguir as alianças firmadas para a disputa presidencial. Sem que se saiba como nem por que a questão entra na agenda do encontro noturno de sete juízes do TSE. Para surpresa geral, cinco deles respondem que sim à consulta, e dois dizem que não.

Com isso, de uma hora para outra, um conjunto de acordos que eram articulados ruíram. PSDB e PFL, por exemplo, teriam que estar juntos no plano federal para poderem caminhar juntos também nos estados. Será que isso faria com que Roseana Sarney, pressionada pelas bases regionais, desistisse da candidatura para apoiar José Serra, do PSDB? Ou seria o contrário, uma vez que Roseana estava bem adiante nas pesquisas? O que ocorreria com o PMDB? Se não apoiasse qualquer candidato a presidente, ficaria livre para fazer os mais variados tipos de aproximação nos estados? Isto é, em São Paulo apoiaria o PT, no Rio o PSB, e em Minas seria apoiado pelo PL? O que aconteceria com Garotinho, que esperava contar com o apoio do PMDB no Rio, e sem poder se aliar ao PT no Rio Grande do Sul e na Bahia?

Foram dias de especulação, cálculos e dúvidas. Quem ganha e quem perde com a medida? O primeiro consenso é que perde a democracia, porque a medida foi tomada em desacordo com o espírito da lei eleitoral, que garante a autonomia dos partidos em cada circunscrição, por um órgão que não tem competência para tanto – a definição das regras da eleição cabem ao Legislativo – e quando a sucessão já havia começado a andar, ou seja, mudam-se as normas no meio do campeonato.

Porém no jogo dos partidos, a interpretação inicial da medida – vista como a favor de Serra – não se confirma. Cria-se uma barafunda de alternativas, até que uma semana depois o tribunal divulga por escrito as resoluções tomadas naquela estranha terça à noite. Pois bem, quando aparecem em letra de forma, as medidas parecem deixar o PMDB livre para fazer alianças regionais, desde que não concerte uma coligação nacional.

Mas apenas parece. Na realidade, ninguém sabe o que viria a ocorrer caso fosse feita uma nova consulta em agosto. Se o TSE decidisse que tais alianças não são permitidas, chapas inteiras seriam impugnadas. Quem correria o risco?

Portanto, o resultado é o seguinte: o jogo está zerado para todos e isso significa que as antes impossíveis alianças do PT com a centro-esquerda (PSB, PPS) voltam a ser cabíveis, com o que é anulada a rodada anterior. Quanto ao eventual benefício da candidatura Serra, que seria ajudada por um apoio forçado de Roseana, já havia sido anulada pelo terceiro ato de nossa história.

3. Uma vistoria vistosa

Por volta de 14h30 da sexta-feira, 2 de março, quando não haviam se passado sequer 72 horas da polêmica decisão encabeçada pelo presidente do TSE, Nelson Jobim, uma equipe da Polícia Federal começou a realizar em São Luís do Maranhão uma apreensão judicial de documentos no escritório da Lunus, empresa de Jorge Murad e Roseana Sarney. Avisados, por diferentes vias, a imprensa e o presidente da República, o caso já começava a ter repercussão na mesma noite. Enquanto as televisões noticiavam que a governadora e o marido estavam sendo investigados por eventuais ligações perigosas com a Sudam, o presidente, ao que consta, perguntava à Polícia Federal se a operação era legal. Antes de encerrar a longa vistoria – dois carros da polícia deixariam a garagem do prédio em que funciona a Lunus apenas depois das 22h30 –, agentes ainda tiveram tempo de mandar o mandado judicial para o Palácio do Alvorada, de modo a acalmar o presidente.

Mais tarde viriam as imagens que ficariam petrificadas na cabeça do público: R$ 1,3 milhão em notas de R$ 50,00 foi encontrado na Lunus. Fotografado e filmado, o dinheiro entraria até no Jornal Nacional. Nada, além disso, precisa ser dito para expressar a profundidade do rombo que a Polícia Federal havia causado à candidatura Roseana. A pré-candidata não foi capaz de fornecer qualquer explicação convincente para a presença daquela quantia no cofre de um escritório.

No plano político, porém, a reação de Roseana foi firme, rápida e dura. Exigiu a saída do PFL do governo. Ameaçou retirar a candidatura e, na quarta-feira, 6 de março, aconteceu o inesperado. Depois de sete anos em aliança com Fernando Henrique, e sabe-se lá quantos no poder, o PFL saiu do governo. Nos dias subseqüentes se veria que decisão não era apenas cosmética. Até mesmo cargos de segundo escalão começaram a ser devolvidos.

O resultado dessa rodada é, então, duplo. De um lado, a candidatura de Roseana foi afetada por um estrago de difícil conserto.  Pesquisa realizada pelo Datafolha em 12 de março (11 dias depois da invasão da Lunus) indicava que Roseana perdera 8 pontos percentuais na intenção de voto estimulada. A postulante do PFL passara do empate técnico com Lula em primeiro lugar para uma terceira colocação, abaixo de Serra, o qual não por acaso, ganhara 7 pontos: o eleitorado governista desloca-se ao longo do eixo que vai do PFL ao PSDB.

Se Roseana fosse como Collor, um líder carismático, por mais que isso possa ser difícil de admitir, o prejuízo poderia ser revertido por uma ação de massas. A candidata teria que ir à TV e falar direto com o eleitorado. Gritar “não me deixem sozinha”. Não adianta o PFL segui-la (e mesmo isso já se torna duvidoso) se o homem comum agora acha que ela tem culpa no cartório.

A segunda conseqüência é o afastamento entre PSDB e PFL. Isso não é bom para a candidatura Serra, no médio prazo. Faz com que a sua base potencial de apoio diminua, o que favorece as oposições, apesar do fortalecimento momentâneo do candidato. Por outro lado, o crescimento de Serra nas pesquisas tende a coesionar o PMDB em torno dele. A aliança governista de 2002 tende a ser representada pela chapa José Serra-Jarbas Vasconcellos.

Conclusões provisórias

Escrever em cima dos acontecimentos implica risco maior de erro, porém feitas as contas verifica-se que a nova situação dos parceiros é a seguinte. Lula fica fortalecido se conseguir utilizar a decisão do TSE para fechar um acordo entre esquerda e centro-esquerda. Isso unifica o PT e prepara uma chapa capaz de empolgar fatias importantes do eleitorado. A possível perda do PL e do PMDB seria superada com vantagens. Roseana vive um momento de baixa, talvez definitiva. Entre o momento em que escrevo (14/3) e a ocasião em que a revista estiver diante de seus olhos, leitor, a candidatura dela pode ter evaporado. Embora a governadora maranhense tenha dado uma demonstração imediata de força ao arrancar o PFL do governo, o saldo final é amplamente negativo, tanto para ela quando para o seu partido. Serra precisará se escudar do revide pefelista (leia-se ACM) que deve vir na forma de dossiês e quejandos. Deu um passo adiante, porque viu enfraquecer-se a rival imediata, no entanto terá muito trabalho se quiser se recompor com o PFL. Se desistir disso, contará com uma importante oposição à direita, o que FHC soube evitar.

Os dados estão lançados.

André Singer é professor de ciência política na Universidade de São Paulo. Autor de Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (Edusp, 2000) e O PT (Publifolha, 2001)