Internacional

Algumas das conseqüências do Nafta dão uma idéia do que pode ocorrer com a Alca. Canadá e México passaram a depender do mercado dos EUA para mais de 80% de suas exportações, tornando-se vulneráveis ao comportamento da economia norte-americana. Houve queda de massa salarial, a produtividade subiu e os empregos diminuíram

São várias as razões pelas quais a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) interessa tanto aos Estados Unidos. Uma delas é o seu crônico déficit comercial que somou quase US$ 1,8 trilhão entre 1985 e 1998 e que em 1999 acrescentou outros US$ 311 bilhões. A proximidade geográfica e a dimensão do mercado da América Latina, embora insuficientes para resolver o problema, oferecem grandes oportunidades para amenizar este déficit, até porque o comércio dos EUA com a região ainda é pequeno. Por exemplo, em 1990 apenas 3,6% do total de suas exportações eram dirigidas à América Latina e ao Caribe (excluído o México), sendo quase metade para o Mercosul. O comércio norte-americano atual com o Brasil representa aproximadamente 1% do total de seu comércio exterior.

Os EUA convivem com este déficit comercial, compensando-o com os investimentos externos que atraem devido à dimensão e à estabilidade de sua economia e também com os seus próprios investimentos produtivos no exterior que proporcionam retorno de capitais na forma de repatriamento de lucros, dividendos e royalties. Suas empresas multinacionais são orientadas por diretrizes do governo norte-americano, pois este reconhece que as empresas operando no exterior “não apenas têm importância comercial mas também um papel político altamente significativo na política externa dos Estados Unidos”. (Batista, 1994). A liberalização de investimentos é portanto outra importante razão para impulsionarem a Alca. Hoje os EUA são o maior investidor na América Latina e no Brasil respondem por cerca de 25% do Investimento Externo Direto (IED) dos últimos anos.

Se, além da redução tarifária e liberalização do IED, os EUA conseguirem também que as empresas norte-americanas participem das compras governamentais no hemisfério e ainda ampliarem sua participação no mercado de serviços, terão obtido uma grande vitória comercial. Como afirmou Collin Powell, seu secretário de Estado, após a Cúpula de Québec: “Talvez a conquista mais conhecida da Cúpula das Américas seja o lançamento das negociações para a Alca. Nós poderemos vender mercadorias, tecnologia e serviços americanos sem obstáculos ou restrições dentro de um mercado único de mais de 800 milhões de pessoas, com uma renda total superior a US$ 11 trilhões, abrangendo uma área que vai do Ártico ao Cabo Horn”. (Folha de S. Paulo, 22/04/2001).

Os antecedentes da Alca estão relacionados com os diferentes processos de desenvolvimento no hemisfério. Para enfrentar a crise do modelo de desenvolvimento do pós-guerra, também conhecido como fordista, os EUA adotaram mecanismos no início da década de 70 para proteger sua economia, entre os quais a substituição do “padrão ouro” pelo “dólar”, políticas de atração de IED e a criação de uma série de barreiras comerciais não tarifárias, como as Seções 201 e 301 do seu Código Comer­cial, aplicadas até hoje. Com o ideário neoliberal transformado em programa de governo a partir de 1981, voltaram suas atenções para o continente americano como seu mercado privilegiado, inicialmente negociando um acordo de livre comércio com o Canadá (Cusfta), posteriormente transformado em Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) ao ampliar seu conteúdo e incluir o México.

O Nafta é muito detalhado, com mais de um milhar de itens e subitens, mas suas principais regras são: desgravação tarifária progressiva, até sua eliminação total num prazo de dez anos; regras de origem; acesso dos sócios do Nafta aos programas de compras governamentais; tratamento não discriminatório sobre investimentos; unificação das políticas de competitividade; abertura do comércio transfronteiriço nos setores de serviços, incluindo os financeiros; garantia de direitos de propriedade intelectual etc. (O acordo incluiu também disposições sobre decisões jurídicas diferenciadas em questões referentes a direitos antidumping, direitos compensatórios e procedimentos sobre solução de controvérsias).

Algumas das conseqüências do Cusfta e Nafta nos dão uma idéia do que pode ocorrer com a Alca. Primeiramente, o Canadá e o México rapidamente passaram a depender do mercado dos EUA para mais de 80% de suas exportações, tornando-se, portanto, vulneráveis ao comportamento da economia norte-americana. Uma das vantagens que o Brasil possui hoje é o fato de ter um comércio diversificado geograficamente, o que seria bom não perder.

Em segundo lugar, o impacto foi grande sobre o mercado de trabalho dos três países. De acordo com os sindicatos canadenses, entre 1992 e 1995 houve uma queda de 0,5% na massa sala­rial, enquanto a produtividade subiu 7,2%. Os empregos diminuíram 10% no mesmo período e a taxa de desemprego se manteve em média 9,6% ao ano na década de 90. Quando o Nafta entrou em vigor em 1994, os trabalhadores canadenses recebiam em média o mesmo salário que seus colegas dos EUA e hoje recebem 89% deste valor.

Segundo a central sindical norte-americana, AFL-CIO, os primeiros sete anos do Nafta acusaram o deslocamento de uma série de indústrias para o México e o fechamento de mais de 800 mil postos de trabalho nos EUA. Os novos empregos criados no setor de serviços, além de serem de menor qualificação, têm salários equivalentes a 77% dos da indústria. A permanente ameaça da mudança de atividades para o outro lado da fronteira é um fator de pressão pelo rebaixamento de condições de trabalho e salários.

No México, o salário médio por hora caiu de US$ 2,10 em 1994 para US$ 1,90 em 1999. O número de mexicanos que vivem com renda menor que um dólar por dia, aumentou de 15% para 18% no mesmo período e foi somente na “indústria maquiladora”, principalmente na fronteira com os EUA, que o emprego aumentou, envolvendo 1,3 milhão de trabalhadores, porém precário e sem respeito à legislação trabalhista e ambiental. Em 2000 as “maquiladoras” foram responsáveis por 47% do total de exportações do México e 54% das exportações de sua indústria manufatureira. Faturaram US$ 57,4 bilhões em 2000, mas dos US$ 40,5 bilhões gastos com matérias-primas, US$ 39,2 bilhões foram em componentes importados, principalmente dos EUA. Portanto o valor agregado à indústria local é apenas dois centavos por dólar exportado, contra dezoito centavos da indústria em geral.

Segundo o ex-secretário de Estado do governo Nixon, Henry Kissinger, “as relações México-Estados Unidos devem servir de modelo para as negociações com outros países latino-americanos” (Stuart, 1998). A Alca sem dúvida representa a mexicanização da América Latina e em particular dos países com algum grau de industrialização, como o Brasil e a Argentina.

Há algumas avaliações iniciais sobre os setores econômicos brasileiros que ganhariam com a Alca e quais perderiam, afetando negativamente o emprego. Os setores de máquinas e equipamentos, eletroeletrônico, químico e mobiliário, perderiam. O setor de papel e celulose não teria condições de competir com a escala norte-americana e canadense. O mesmo ocorreria com os setores financeiro e de seguros. As pequenas e médias empresas brasileiras tampouco, pois operam principalmente para o mercado interno e apenas 2% de sua produção se destina à exportação, enquanto nos EUA o setor pequeno e médio exporta 50% de sua produção.

Outros como a siderurgia, álcool, sucos, têxteis, calçados e agrobusiness, que já vendem para os EUA, embora sofrendo várias restrições, principalmente fixação de quotas de exportação e sobre-taxas, só levariam vantagens adicionais se as regras antidumping norte-americanas fossem eliminadas, pois isto permitiria elevar suas quotas de exportação. Senão permanecerão como estão. O Na­fta sequer tocou nestas regras e a Alca também não o fará, pois isto exigiria que os EUA reformassem toda a lógica que rege seu desenvolvimento econômico a quase três décadas, principalmente desistindo de sua legislação comercial protecionista, o que seus empresários jamais permitiriam, conforme bem ilustra o conteúdo do Trade Promotion Authority (TPA), recentemente aprovado pelo Congresso.

O questionamento ao neoliberalismo e a crise de legitimidade das instituições multilaterais vêm crescendo principalmente depois da crise asiática em 1997, pois, apenas poucas semanas antes do ataque especulativo ao “Bath” tailandês e o início do desastre econômico no continente, o FMI havia afirmado em seus relatórios, que a economia dos países asiáticos ia bem, justamente por terem implementado os programas de ajuste estrutural. Além disso, as condições de vida das pessoas pioraram depois de tanto tempo, apesar das promessas de crescimento econômico, emprego e maior respeito aos direitos, feitas pelos defensores do neoliberalismo.

Este desgaste do sistema perante a opinião pública devido às suas incoerências, a liberalização de investimentos, a falta de transparência nas negociações comerciais e nenhuma consideração aos setores mais vulneráveis da sociedade também provocaram a oposição de grupos sociais importantes ao neoliberalismo.

Nos acordos de investimentos, como no capítulo 11 do Nafta ou naqueles que ainda são apenas intenções, tenta-se introduzir o princípio da não discriminação contra investidores estrangeiros; a obrigação do Estado de assegurar retornos favoráveis aos investimentos e a criação de instâncias jurídicas internacionais para resolver contenciosos entre investidores e governos. Respectivamente analisados, estes fatores impedem que as regras nacionais sobre investimentos estejam condicionadas à indução de processos locais de desenvolvimento, definidos pelo Estado. Garantir o retorno dos investimentos por conta do Estado, além de representar um capitalismo absolutamente sem risco, desvia recursos públicos para assegurar os lucros do setor privado. Dar estas prerrogativas às empresas multinacionais, além de possibilitar que questionem governos nacionais em tribunais internacionais, solapa totalmente a soberania nacional e atribui a qualquer uma delas, um poder superior ou no mínimo equivalente ao do Estado. Esta ameaça tem mobilizado vários setores políticos que ainda têm a soberania nacional como um valor importante.

A ganância das corporações multinacionais e a existência de mecanismos para proteger seus interesses nas instituições multilaterais, como o Tratado sobre Patentes e Propriedade Intelectual (Trips) na OMC, se desmascaram à medida que utilizam este tratado para pressionar paí­ses como o Brasil e a África do Sul para cessar a fabricação de medicamentos genéricos, mais baratos e fora de seu controle para combater enfermidades como a Aids, colocando claramente seus lucros acima da vida humana.

A falta de transparência e, quando não, a implementação de negociações secretas, como foi a tentativa do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) em discussão na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) e até há pouco as negociações da Alca, levam a opinião pública ao raciocínio lógico de que se a perspectiva de uma negociação é a de propiciar benefícios para todos, não há necessidade de ocultá-la. Quando o conteúdo das negociações do AMI veio a público, principalmente a parte que implicava submeter a soberania nacional aos interesses das empresas multinacionais, a situação se tornou insustentável para os governos e em 1997 desistiram de levar o acordo adiante. Porém estas propostas sempre reaparecem, como a tentativa de introduzir o “Capítulo 11 do Nafta” na Alca, mas a suspeita e a oposição da sociedade também se mantêm.

A instalação de indústrias sem considerar o meio ambiente ou as comunidades ao seu redor; a industrialização da agricultura, destruindo pequenas propriedades rurais e a prática do “dumping social” para elevar a competitividade da produção no mercado globalizado com a utilização de trabalho infantil, trabalho forçoso e discriminação de gênero e raça no mercado de trabalho, além do não reconhecimento da liberdade de organização e do direito à negociação coletiva; entre outras barbaridades; tem levado os setores sociais afetados a se organizarem em defesa de seus direitos e também a se posicionarem contra a globalização neoliberal. Normalmente isso ocorre com apoio de sindicatos, ONGs ou ainda por intermédio de organizações sociais que surgem em função dos problemas em si.

Apesar dos gran­­des interesses econômicos e políticos envolvidos, é possível derrotar a Alca, assim como foi derrotado o AMI e também como não se iniciou a Rodada do Milênio. O Canadá e o México por estarem no Nafta já aceitaram as regras que norteariam a Alca, portanto, para viabilizá-la falta principalmente o Brasil, que é a segunda economia do continente e “é o único país devido às suas dimensões e ao seu potencial que pode competir político e economicamente com os EUA na América do Sul. Assim é preciso encarar a Alca como um projeto essencialmente entre o Brasil e os EUA”. (Guimarães, 2000).

A pressão do movimento social do continente tem sido crucial para alertar a população e os diversos governos para os prejuízos da Alca, conforme foi demonstrado em Quebec na mobilização convocada pela Aliança Social Continental (ASC), uma rede de organizações sociais, criada a partir da conferência paralela à III Conferência de Ministros da Alca em Belo Horizonte em 1997. Porém a possibilidade do Brasil não aderir à Alca é estratégica para barrar ou modificar este projeto e é a única alternativa que o governo tem hoje, se quiser manter a coerência do seu discurso referente às suas políticas internacionais, depois da aprovação do TPA, com todo seu conteúdo protecionista.

Nas negociações da Alca, o governo norte-americano sempre teve como prioridades a redução tarifária e os acordos para liberalização de investimentos, comercialização de serviços e acesso às compras governamentais, bem como, um acordo sobre patentes e propriedade intelectual mais generoso que o ora existente na OMC, que é um item que a rigor nada tem a ver com comércio. As prioridades brasileiras são o acesso ao mercado agrícola norte-americano e o estabelecimento de regras antidumping e solução de controvérsias, mais liberais, justamente os itens que o Congresso dos EUA impede que sejam negociados pelas regras estabelecidas agora no TPA. Este proibiu modificações na legislação comercial norte-americana, excluiu uma lista de produtos agrícolas das negociações, manteve os subsídios à agricultura e incluiu a política cambial dos países exportadores como um possível fator de prejuízo à economia dos EUA. Além disso, estão sendo tomadas outras medidas para proteger a siderurgia da competição internacional.

Os mecanismos de solução de controvérsias ora existentes na OMC se tornaram referência para os acordos regio­nais, pois foram aprovados por consenso. E o único acordo sobre agricultura que os Estados Unidos admitem é aquele que abre o mercado dos outros e preserva o seu. Por outro lado, quem tem tarifa a reduzir é o Brasil, pois sua tarifa externa média é de 13% contra a de apenas 2,5% dos EUA. Portanto não há justificativas para o governo brasileiro prosseguir com estas negociações ou esperar que se chegue a qualquer acordo aceitável. Prosseguir, depois do TPA, sinaliza a aceitação de seus parâmetros.

Os neoliberais pregam que a solução para o nosso desenvolvimento é ampliar nossa participação no comércio mundial e que para alcançá-la, é preciso aderir aos acordos de livre comércio que os países desenvolvidos tão “generosamentee” nos oferecem. É importante que digamos “não, obrigado” a tipos de acordos comerciais como a Alca, que eles “não se preocupem conosco” e que preferimos participar do mercado global a partir da preservação de nossos interesses e projetos nacionais. Aliás, essa é a forma como eles garantiram o seu próprio desenvolvimento. É fundamental convencermos a sociedade brasileira e o Congresso Nacional que, se um tema tão importante e com conseqüências tão graves for transformado em proposta de acordo, obrigatoriamente tenha que ser submetido a um plebiscito, para que ao menos seja o povo a aceitá-lo ou rejeitá-lo.

Referências bibliográficas:

BATISTA, Paulo Nogueria. "O Consenso de Washington". Cadernos de Debates das Associações da CESP nº 1, 1995.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. A política dos Estados Unidos para o mundo e o Brasil. Consulta Popular Cartilha nº 8, 2000.

Órgãos de imprensa: Financial Times, Folha de S. Paulo, Revista Exame e Revista Update.

STUART, Ana Maria. "Precedentes históricos da integração hemisférica". In Alca: aspectos históricos, jurídicos e sociais. FTD, 1998.

Kjeld Jakobsen é secretário de relações internacionais da CUT