Internacional

Foi um êxito numérico: a presenta no FSM 2002 triplicou em relação a 2001. Foram credenciadas mais de 53 mil pessoas pela organização do Fórum (35 mil ouvintes, 15 mil delegados e 3 mil jornalistas) e 11 mil pelo acampamento da juventude. Mais importante, o número de delegados passou de 4 mil para mais de 15 mil, representando cerca de 5 mil organizações, quase metade deles no exterior

O Fórum Social Mundial de 2002 representou um avanço importante em relação ao de 2001. Foi um êxito político: primeiro grande evento do movimento global contra o neoliberalismo depois de 11 de setembro, o II FSM atesta que a "guerra contra o terrorismo" de Bush e aliados, que procura criminalizar toda oposição ao sistema, não quebrou o ímpeto ascendente de nossa mobilização. A guerra imperial e a tentativa de estabelecer um estado de sítio planetário ocupam um lugar de destaque na cena política, colocando novos problemas e cobrando respostas. Mas a tônica de Porto Alegre não foi dada pela agenda "norte-americana", e sim pelo aprofundamento da crítica à globalização neoliberal e pela busca de alternativas.

Em uma conjuntura extremamente dinâmica, o Fórum pode também recolher, poucos meses depois do início da ofensiva imperial, as grandes energias mobilizadoras liberadas pelo rechaço popular ao neoliberalismo na Argentina, caso exemplar de destruição de um país pela tirania dos mercados. Pode igualmente debater, como destacaram com razão os delegados dos países anglo-saxônicos, a quebra da Enron nos EUA, uma mostra inequívoca do despotismo das corporações sobre os cidadãos.

O II Fórum mostrou a ampliação do nosso movimento, sua mundialização concreta e o avanço da consciência política internacionalista contrária ao neoliberalismo. Foi um êxito numérico: a presenta no FSM 2002 triplicou em relação a 2001. Foram credenciadas mais de 53 mil pessoas pela organização do Fórum (35 mil ouvintes, 15 mil delegados e 3 mil jornalistas) e  11 mil pelo acampamento da juventude. Mais importante, o número de delegados passou de 4 mil para mais de 15 mil, representando cerca de 5 mil organizações, quase metade deles no exterior. Os dados atestam a relação do Fórum com as lutas decisivas contra o neoliberalismo: estiveram presentes mais de mil italianos, testemunhando o impacto do Fórum Social de Gênova e da mobilização de julho contra o G-8; e compareceu um número semelhante de argentinos, representativo da camada militante que esteve à frente dos cacerolaços.

Houve uma mudança expressiva na composição do Fórum: o enorme crescimento do acampamento da juventude e sua internacionalização mostram o apelo cada vez maior do movimento global junto a uma nova geração política de esquerda que se forma. Onze mil foram inscritos, com o credeciamento sendo suspenso numa tentativa frustrada de de impedir que mais gente acampasse no Parque Harmonia. Aí cerca de 15 mil jovens viveram, durante cinco dias, uma experiência de liberdade radical, totalmente oposta ao conservadorismo, à passividade, à alienação e ao consumismo que as elites no poder querem impor ao mundo - e oposta mesmo a certas tendências mais moderadas e/ou burocráticas presentes no próprio Fórum.

Outra modificação relevante foi a maior participação das organizações representativas dos trabalhadores assalariados, pouco presentes no evento anterior, e que estavam representadas nas principais redes sindicais internacionais.

E vivemos também o avanço político-organizativo que representa nossa conquista mais preciosa: o FSM se legitimou como espaço anual no qual o movimento global se encontra, dialoga, estabelece relações de respeito mútuo e confiança entre seus participantes, pode aprender com diferentes experiências e parcerias, encontrar apoio nas múltiplas lutas e consolidar uma agenda comum de mobilizações contra seus inimigos. Cria um espaço de expressão positiva da diversidade, força e riqueza do movimento, permitindo que uma identidade e uma cultura política comuns sejam construídas preservando as identidades particulares, mas possibilitando que elas se integrem em um grande movimento aberto - plural do ponto de vista político e ideológico, mas nem por isso menos comprometido com as lutas de todos que resistem à exploração, à injustiça e à opressão e buscam aí liberdade, justiça, igualdade e liberdade.

A compreensão da necessidade deste espaço mundial de encontro sistemático acabou se impondo de maneira consensual a partir da reunião do Conselho Internacional. A mundialização do processo do Fórum foi assegurada com a confirmação da realização de vários fóruns regionais e continentais em outubro/novembro (já marcado na Itália, no Equador e na Índia), mas assegurando a realização do III FSM em Porto Alegre 2003.

Este II FSM foi um espaço prático de construção de convergências. Consolidou um calendário global de mobilizações para os próximos dois anos, colocando um horizonte comum para múltiplas lutas. Organizou o encontro dos delegados por continentes, reforçando a dinâmica que aponta para os fóruns regionais e continentais. Deu continuidade à articulação internacional dos movimentos sociais. Propiciou saltos políticos e organizativos nas campanhas contra  a Alca, a OMC, o patenteamento da vida e a disseminação dos transgênicos e pela anulação da dívida externa dos países dependentes e a taxação das transações financeiras internacionais. Propiciou um momento de discussão importante entre os delegados argentinos, que contribuiu para a reflexão sobre o processo pelo qual passam. Debateu de forma ampla a questão da paz com justiça social nesta conjuntura de militarização das relações internacionais na conferência "Um mundo sem guerras é possível" e na "Assembléia pública mundial do orçamento participativo com gastos de guerra". Incorporou várias atividades anexas: o Fórum Mundial de Autoridades Locais, o Encontro Preparatório para a Conferência Rio+10, sobre o meio ambiente, e o Fórum Mundial de Juízes.

O II FSM propiciou dinâmicas agregadoras para os diferentes setores: além da juventude e do mundo do trabalho, compareceram ao Fórum e desenvolveram suas iniciativas com amplo reconhecimento os movimentos negro e de mulheres, os povos indígenas e o movimento por livre orientação sexual. Duas grandes marchas, a segunda contra a Alca, também contribuíram para o tom mobilizador  do FSM.

27 conferências organizadas com uma metodologia de documentos preparatórios, sínteses das discussões e sistematização das alternativas propostas permitiram um importante salto na formulação política do movimento e na construção de um programa de alternativas para o movimento global.

O êxito do Fórum repercute como uma vitória dos governos do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre, em particular do primeiro, que investiu pesado no evento. Também credencia o PT como um caso excepcional na esquerda internacional (talvez o outro exemplo neste sentido seja o do Partido da REfundação Comunista Italiano), um partido que convive com o protagonismo dos movimentos sociais - diferente da social-democracia européia, considerada por boa parte dos movimentos inimiga.

Um tema complexo, que certamente será aprofundado no processo subseqüente do Fórum, é a ralação entre movimentos sociais e partidos políticos. O Fórum Mundial de Parlamentares, que contou com a presença de mais de seiscentos deputados e cerca de duzentos convidados, constitui hoje o espaço de acolhida dos diferentes partidos e parlamentares que buscam uma identificação com o processo do FSM. Mas é claro que o movimento global favorece fundamentalmente a reconstrução de uma nova esquerda anticapitalista e não a convivência com os partidos comprometidos com as políticas neoliberais. Esta tensão se expressou no Fórum de Parlamentares - na discussão sobre se seria feita uma condenação explícita à guerra contra o Afeganistão -, permeou o II FSM e certamente continuará marcando o processo do FSM do conjunto.

Vários outros problemas podem ser levantados: a insistência de personalidades marcantes do "lado de lá" em comparecerem ao evento (os mais emblemáticos, como o primeiro-ministro belga e o vice-presidente do Banco Mundial, finalmente desestimulados), a persistência de organizações políticas que se colocam fora da carta de princípios do FSM de o utilizarem como espaço de publicidade, as dificuldades organizativas próprias a um evento desta magnitude etc. Mas são problemas que o próprio processo pode equacionar, a partir da consolidação do FSM e a expressão nele das energias das lutas que estão construindo um outro mundo.

José Corrêa Leite, editor do Em Tempo, integra o Conselho de Redação de TD e o Comitê Organizador Brasileiro do FSM pelo Attac.