Internacional

A situação dos EUA será o principal fator para o contexto internacional no momento em que se realizarem as eleições brasileiras

Os Estados Unidos da América detêm 25% do PIB mundial e cerca de 20% das importações e exercem a liderança científica e tecnológica no mundo, tendo requerido 40 mil das 90 mil patentes solicitadas em 2001. Seu poder militar se expressa por suas 7 mil ogivas nuclea­res e por dezenas de bases nos diversos continentes; sua influência ideológica e cultural tem como símbolos a CNN, a internet, as agências de notícias e o cinema hollywoodiano; sua força política se exerce por meio da capacidade de interferir em cada conflito e em cada país, inclusive por meio de elites locais que cooptam ou intimidam diariamente. A situação dos EUA, as tendências do sistema mundial e a estratégia de política externa do governo George Bush serão os principais fatores que definirão o contexto internacional no momento em que se realizarem as eleições brasileiras de 2002.

A dinâmica da sociedade americana e a ideologia nela dominante têm efeitos desestabilizadores sobre o sistema mundial. A dinâmica tem seu cerne no fato de que o bem-estar e o funcionamento da sociedade americana estão entrelaçados com a economia mun­dial, sendo os EUA a única economia de natureza e alcance global, com interesses em quase todos os países. A economia americana está profundamente interligada com o mundo por meio de fluxos de importação e de exportação, com crônico déficit comercial que atinge 400 bilhões de dólares e por meio de fluxos financeiros representados pelos juros, amortizações e dividendos que remetem os capitais americanos investidos no exterior e pelo enorme ingresso de capitais estrangeiros naquele país. Os EUA são detentores da principal moeda internacional de reserva e as decisões de seu governo sobre taxas de juros, subsídios e impostos têm enorme impacto sobre a economia mundial e, finalmente, é um país que depende de forma perigosa do petróleo, essencial ao funcionamento de sua economia, pois importa 50% do seu consumo diário.

As megaempresas multinacionais americanas, por meio de investimentos, fusões e aquisições, lograram alcançar posição dominante nos mercados mundiais e nacionais de serviços, de bens em geral e de produtos de alta tecnologia. Essa situação dominante contribui para a capacidade dessas empresas gerar e remeter para seus acionistas megalucros, e a permanência dessa situação depende de preservar sua capacidade competitiva, a qual, por sua vez, torna necessários elevados investimentos em pesquisa científica e tecnológica. Os programas de pesquisa científica e tecnológica mais avançada, dispendiosa e de resultados alea­tórios são financiados pelo Estado, em especial por meio do orçamento de defesa, que atingiu nível recorde para o ano de 2003, cerca de 390 bilhões de dólares. Outra parte desse orçamento se destina à aquisição de suprimentos e equipamentos, o que representa uma forma de subsídio indireto às indústrias em geral e em especial àquelas como a siderurgia, a metalurgia, a computação, a ótica etc., que produzem insumos para as indústrias diretamente produtoras de armamentos. Os recursos incluídos no orçamento de defesa são financiados pelos impostos aprovados pelos congressistas, cuja atuação é acompanhada de perto pelos eleitores de seus distritos, ONGs sociais e por lobbies de toda sorte, e cujo mandato, no caso dos deputados, é renovado a cada dois anos.

Mas há algo que tem de existir para tornar possível a aprovação legislativa desse orçamento militar e a sobrevivência daquilo que o presidente Eisenhower denominou complexo industrial-militar. É indispensável a existência real ou “construída” de um inimigo que ameace de forma crível a segurança e o bem-estar da sociedade americana e de seus interesses nacionais no exterior, os quais vão desde a proteção das vias de acesso ao petróleo até a sustentação de governos em terceiros países que sejam simpáticos e cooperativos com as ini­cia­tivas políticas dos EUA e que executem políticas que atendam aos interesses das megaempresas americanas. A adesão da União Soviética ao capitalismo e à democracia, sua desintegração política e enfraquecimento militar, assim como a nova política chinesa de atração de capitais estrangeiros e de promoção do comércio exterior geraram a necessidade de identificar um novo inimigo crível, uma “nova ameaça”, para a sociedade americana.

Por outro lado, a produção em grande escala de armamentos, cada vez mais sofisticados e caríssimos, gera a necessidade de testá-los em “condições reais” e de vender os excedentes de gerações ultrapassadas, o que, por sua vez, contribui para a instabilidade em re­giões de alta tensão, como o Oriente Médio, onde o próprio aumento da tensão comprova a necessidade de elevados gastos com segurança e de um amplo orçamento de defesa e tranqüiliza os contribuintes quanto à utilidade e ao “bom uso” dos impostos que recolhem.

Há, assim, um círculo vicioso que inclui os altos níveis de bem-estar material e o extraordinário desperdício na sociedade americana; a liderança tecnológica e econômica das megaempresas multinacionais dos EUA nos diversos mercados mundiais e em distintos países; a proteção de seus interesses e do acesso a mercados externos de bens e capitais; as despesas do Estado americano com segurança; os investimentos em pesquisa científica e tecnológica de ponta; a “necessidade” de um inimigo crível; o clima por vezes estimulado, por vezes amenizado, de ameaça, insegurança e vulnerabilidade nos EUA; a instabilidade política e os conflitos armados regionais que colocam em risco os interesses americanos e aqueles níveis de bem-estar.

A ideologia predominante na so­cie­dade americana considera que os EUA constituem a democracia mais perfeita e longeva, o mais poderoso Estado de todos os tempos, a economia mais próspera, a sociedade melhor sucedida da história da humanidade, igualitária e justa, detentora e guardiã dos valores da civilização ocidental judaico-cristã, liberal e religiosa, temente a Deus e por Ele abençoada. A sociedade americana estaria cercada ou por sociedades que, mesmo quando são reconhecidas como mais antigas, como certos países europeus e asiáticos, seriam menos justas, menos democráticas e mais esclerosadas; ou por sociedades atrasadas, arcaicas em seus costumes, violentas e desiguais, habitadas por povos inferiores, mestiços e adeptos de religiões exóticas (e heréticas). Assim, os EUA teriam a missão civilizatória de liderar todas as nações do universo e levá-las a remodelar suas sociedades, fazendo com que aceitem, por meio de persuasão, cooptação ou coerção, reformar suas instituições, suas leis, seus costumes, suas economias (e até suas religiões) de acordo com os modelos bem-sucedidos da sociedade americana. Recentemente, a ideologia americana passou a ver os Estados periféricos, que são aquelas sociedades arcaicas, como invejosos do poder e da riqueza dos EUA, fonte de terríveis ameaças à tão prezada inviolabilidade do seu território, e que, por esta razão, podem ser atacados no exercício de legítima defesa preventiva.

A estratégia do governo Bush

Após o fim do interregno democrata de Bill Clinton, em que a expansão americana, o equilíbrio fiscal, e a estratégia multilateralista edulcoravam a política americana, disfarçavam os seus objetivos hegemônicos de natureza permanente e os tornavam mais aceitáveis e defensáveis pelas mídias e elites coop­tadas da periferia, a estratégia americana global se reafirmou sem sutilezas, de forma agressiva e unilateral. Logo após sua posse, o presidente Bush relançou o programa Guerra nas Estrelas, agora rebatizado de Escudo de Mísseis, contrariando frontalmente o acordo ABM (Anti-Ballistic Missiles) com a Rússia, causando profunda apreensão na Rússia, na Europa e na China, abrindo a possibilidade de rearmamentismo; recusou ratificar o CTBT e o Protocolo sobre Armas biológicas; o Protocolo de Kyoto e anunciou simultaneamente um plano energético agressivo e antiambientalista; abandonou os trabalhos da Conferência sobre Racismo das Nações Unidas, assim como manifestou sua disposição de arrostar os acordos internacionais sempre que julgasse conveniente e de tomar iniciativas militares sem a ninguém consultar, nem mesmo a seus aliados europeus mais fiéis.

Os trágicos atentados de 11 de setembro, que provocaram imensa perplexidade, angústia e ódio na população americana, trouxeram, porém, para os ideólogos da nova estratégia global americana, alívio: finalmente, fora possível identificar um novo inimigo, o terrorismo internacional (ainda que pouco crível no longo prazo) para substituir o comunismo e a União Soviética, e que permitia renovar a justificativa para a continuidade da mola mestra da dinâmica social americana que são as despesas militares que disfarçam o subsídio à indústria e à pesquisa científica e tecnológica de ponta. A estratégia americana que definirá o contexto internacional em que se rea­li­zarão as eleições brasileiras de 2002 tem como seu centro (ainda que cada vez menos crível) a luta sem quartel contra o terrorismo internacional, suas organizações e os Estados que as apóiam. Todavia, a adoção do terrorismo internacional como o “inimigo” difuso, poderoso e elusivo e a estratégia de enfrentá-lo por meio de luta militar direta e de qualquer outro meio abriram a caixa de Pandora da qual escaparam todos os pretextos para a violação de direitos humanos, para a violência internacional e para a insegurança de todos os Estados, inclusive dos EUA.

Eles passaram a definir sua estratégia de luta contra o terrorismo como uma luta em que todos os meios são válidos. Todas as restrições aos direitos civis nos EUA e em qualquer país serão aceitáveis; a identificação como terroristas de fenômenos como o narcotráfico e a rebelião contra regimes autoritários será válida; o ataque militar a Estados que, supostamente, detêm armas de destruição em massa sem “autorização” e que, portanto, seriam aliados do terrorismo, será justo. Os EUA passaram a dividir o mundo em nações amigas, que os apóiam incondicionalmente e com entusiasmo; em nações suspeitas, que fazem ressalvas ainda que tímidas ao unilateralismo, à arrogância e ao desrespeito ao direito internacional; e em nações inimigas, aquelas que, no passado ou no presente, reagiram aos interesses e à agressão norte-americana e desafiaram sua vontade hegemônica. O arbítrio unilateral, a violência, a instabilidade e a insegurança caracterizarão o cenário internacional.

A desaceleração, o lento e irregular crescimento e as falsas, apressadas ou fugazes notícias de recuperação da economia americana prosseguirão se alternando até o final de 2002, alimentados pela insegurança gerada pela própria estratégia antiterrorista americana, pela exaustão do ciclo de expansão gerado pelas novas tecnologias, pela crescente instabilidade na periferia, onde transcorre a catástrofe argentina, mas também a crise latente em vários outros países que ameaçam não honrar seus compromissos ou adotar políticas restritivas à livre movimentação de bens e de capitais estrangeiros.

Neste quadro internacional e no quadro nacional americano se entendem as iniciativas do presidente George Bush, em realidade de natureza neokeynesiana, de redução da taxa de juros a níveis muito baixos (com a cooperação de Alan Greenspan), do anúncio de futuras despesas militares significativas como ocorreria com a invasão do Iraque em 2003, de amplos subsídios à agricultura e à indústria (por meio do orçamento militar e do programa Escudo de Mísseis) e a estratégia renovada de abrir mercados por meio das negociações multilaterais da OMC, regionais da Alca e bilaterais com o Chile e Uruguai, ao mesmo tempo que protegem o emprego e o nível de atividade econômica doméstica por meio do protecio­nismo, como no caso do aço e do Farm Bill, e agora em breve do novo TPA (Trade Promotion Authority).

A política antiterrorista americana, apesar de seus trágicos e duradouros efeitos sobre o conflito no Oriente Próximo, agora se expande para acusar o Irã de ser o principal patrocinador do terrorismo e Cuba de ser detentora de armas biológicas, o que se completa com o anúncio feito pelo vice-presidente Dick Cheney de um próximo e certo ataque terrorista aos EUA, o qual, porém, não sabe onde ou quando ocorrerá. Essa política gera extraordinária instabilidade e cria enorme apreensão na União Européia devido a suas possíveis conseqüências em termos de retaliação ou ação preventiva americana.

A Europa, no entanto, vê a maioria dos governos de países importantes se inclinarem para a direita, como é o caso de Áustria, Espanha, Portugal, Itália, França, Dinamarca, Holanda e talvez em breve da Alemanha. Esses governos de direita, com suas retóricas e políticas ostensivamente antiárabes, anti-sociais e antiimigrantes, tendem a agravar o clima de conflito político e de instabilidade econômica na Europa. Tony Blair, paladino da defunta Terceira Via, se enquadra no mesmo grupo pelo seu alinhamento incondicional com a política exterior americana. Certamente, não se poderia afirmar que na Europa há condições propícias a taxas de crescimento mais elevadas que pudessem vir a contribuir para a recuperação americana e mesmo para efeitos favoráveis em termos comerciais e financeiros para a América do Sul e o Brasil, em 2002.

A política americana se, de um lado, tem esses efeitos desestabilizadores sobre a economia européia também dificulta a recuperação econômica do Japão, que teria conseqüências importantes sobre os demais países asiáticos a ele vinculados por importantes laços de comércio e investimento.

A situação do Japão, imerso em prolongada crise de superpoupança e que vem resistindo a todo tipo de estratégia de reanimação tentada pelo governo japonês, se agrava com a política americana. Por outro lado, a inclusão da China e da Rússia na lista do Departamento de Defesa dos países que poderiam ser alvo de ataques nucleares preventivos estimula programas de rearmamento nesses dois países, e estes, por sua vez, podem vir a desencadear corridas armamentistas entre China/Japão, China/Índia, China/Taiwan, Rússia/China, as quais, por sua vez, estimulam programas de armamentos em atores menores da política regional na Ásia que têm disputas de fronteira entre si ou com países maiores, o que agrava a instabilidade política mundial. O aumento de despesas militares na Ásia tem sido significativo nos últimos anos.

A situação no Oriente Próximo, se não se tornar explosiva, continuará pelo menos em estado de alta tensão enquanto permanecer a política de Ariel Sharon de consolidar pela força militar a ocupação do território palestino, de lá instalar novas colônias israelenses e de expulsar os seus habitantes palestinos, e enquanto esta política contar com o apoio implícito permanente e por vezes explícito da sociedade e do governo americano, de sua ajuda financeira e militar, de sua ideo­logia antiterrorista e da necessidade do governo George Bush de retomar o controle do Congresso, que é de grande importância para a caminhada política até a eleição presidencial em 2004. Os preços internacionais do petróleo que podem vir a explodir como conseqüência de uma evolução desfavorável da situação no Oriente Próximo deverão permanecer em níveis elevados, pois a nova situação de abastecimento que se pode vislumbrar a partir da expansão da produção russa e dos países do Mar Cáspio, assim como novas condições de exploração na Venezuela (o que quase ocorreu) e no México não deverão se verificar ainda em 2002.

O contexto sul-americano

Os países vizinhos do Brasil na América do Sul, que constituem o principal mercado para nossas manufaturas, a área geográfica mais importante para a atuação de nossas empresas de serviços, em especial de construção, a fonte de suprimentos importantes de produtos primários como o petróleo, o gás, a energia elétrica e o trigo, apresentam situações econômicas distintas, porém todas graves, com características comuns, que decorrem de estruturas econômicas semelhantes e de tentativas de implementar políticas muito parecidas, e equivocadas.

A primeira característica comum a todos esses países (que agora também se aplica à Argentina e ao Uruguai) é o elevado índice de concentração de renda e de riqueza, em termos de propriedade agrária, urbana e de títulos, e que hoje se expressa nos elevados percentuais da população de cada um desses países, em geral superior a 30%, que sobrevivem abaixo da linha de pobreza de dois dólares por dia.

A concentração de riqueza e renda está hoje acompanhada por uma acelerada urbanização, o que tornou as cidades enormes e confusos aglomerados em que há um pequeno centro urbano em que as condições de vida são de qualidade internacional, sitiado por uma massa gigantesca de casebres onde apenas sobrevivem populações marginalizadas, desempregadas, envolvidas pelo crime e o narcotráfico, em estado precário de saúde, habitação, educação e politização.

Em geral, na maior parte dos países da América do Sul essas populações marginalizadas são de origem indígena, africana ou mestiça, como no caso do Brasil, e esta situação às vezes corresponde a uma fissura política de natureza regional, com conotações raciais e econômicas como, por exemplo, o antagonismo antinordestino em São Paulo, a que corresponde o ressentimento antipaulista ou anti-sulino nos estados do Norte e Nordeste.

Uma segunda característica desses países vizinhos é sua frágil estrutura econômica, com base principal na mineração (vários desses países são produtores de petróleo) ou na agropecuária tropical ou temperada. Apesar dos esforços de diversificação, sua pauta exportadora está concentrada em poucos produtos primários ou em commodities industriais de baixo nível de agregação de valor, e seus principais vínculos de comércio são com vizinhos mais próximos ou com os mercados dos EUA e da Europa, em um resquício colonial, enquanto sua pauta importadora é constituída em grande medida por bens de consumo e bens intermediários. Os parques industriais desses países se caracterizam pela presença predominante de fábricas de bens de consumo leves, não-duráveis, enquanto suas indústrias de base ou de bens de capital, como a siderurgia e a petroquímica, são, quando existem, diminutas, com raras exceções, como são os casos da Venezuela e da Argentina.

Uma terceira característica da maior parte dessas sociedades é o seu crescimento demográfico a taxas ainda relativamente elevadas e a incapacidade do sistema econômico de gerar empregos tanto no campo (de onde a guerrilha, o latifúndio, as precárias condições de vida e a mecanização da agricultura expulsaram muitos habitantes) como na cidade, o que agrava o desemprego e a marginalidade urbana.

Uma quarta característica comum ao Brasil e a seus vizinhos foi a adoção de políticas econômicas neoliberais, como conseqüência da renegociação de suas dívidas externas e da imposição de programas econômicos pelo FMI e pelo Banco Mundial, que vêm sendo executados em especial a partir de 1982 (após a crise mexicana), mas que se intensificaram a partir de 1989, na Venezuela com Carlos Andrés Pérez; na Bolívia, com Paz Estenssoro; na Argentina, com Carlos Menem; no Peru, com Alberto Fujimori; no Brasil, com Collor de Melo, mas também no Uruguai, no Paraguai, na Colômbia e na Venezuela. Esses programas foram em geral executados por “equipes econômicas”, integradas por economistas que estudaram em universidades americanas, que por vezes trabalharam em agências internacionais como o FMI, o BID e o Banco Mundial, que assumi­riam uma atitude tecnocrática e pretensamente acima da política e dos interesses tradicionais. A articulação e a execução política dessa estratégia ficaram a cargo de políticos muitas vezes de passado esquerdista ou nacionalista e que, chegados ao poder, se converteriam radicalmente ao neoliberalismo, sem jamais reconhecerem isto.

Os programas econômicos executados em todos os países vizinhos ao Brasil na América do Sul (e no Brasil também) tinham como metas principais:

• ajuste fiscal para reduzir e eliminar a inflação, fonte de todos os males;

• redução da dimensão do Estado, fonte de muitos males, inclusive do autoritarismo, por meio da privatização, da desregulamentação e de sua reforma institucional;

• eliminação de barreiras não-tarifárias, redução acelerada, radical e unilateral de tarifas alfandegárias e ingresso no GATT para consolidá-las;

• adoção de um regime de taxas fixas ou semifixas de câmbio, em geral, sobrevalorizado;

• livre movimentação de capitais e eliminação de qualquer distinção legal entre empresas de capital nacional e estrangeiro;

• desregulamentação (flexibilização) do mercado de trabalho pela eliminação de leis de proteção, consideradas como causa do desemprego;

• utilização da negociação de áreas de livre comércio, tais como o Mercosul, a Comunidade Andina e a Alca, como forma de consolidar a abertura externa e a desregulamentação da economia.

Na esfera político-militar, a maioria dos países da região, com maior ou menor entusiasmo, procurou alinhar sua política externa com a dos EUA e assim:

• aderiram aos tratados assimétricos de não-proliferação de armas de destruição em massa;

• aceitaram teorias militares de segurança cooperativa e das “novas ameaças”;

• promoveram a redução de despesas militares e dos efetivos de suas Forças Armadas;

• acataram a idéia de transformar as Forças Armadas em forças de natureza policial de combate ao narcotráfico e ao crime organizado;

• aceitaram a cláusula democrática na OEA e em Québec, a qual, apesar de sua nobre intenção, pode servir de instrumento para articular intervenções coletivas;

• apoiaram os EUA em suas iniciativas internacionais em relação às chamadas novas ameaças, nas operações do Golfo e do Kosovo e nas votações nas Nações Unidas;

• desenvolveram programas de erradicação das plantações de coca e se engajaram em combate implacável a movimentos de guerrilha, como no caso do Peru.

As reformas econômicas apareceram como muito vitoriosas, em seus primeiros anos, quando medidas pela queda drástica das taxas de inflação, pela redução dos déficits orçamentá­rios, pelo enorme ingresso de capital estrangeiro, pelas taxas de crescimento econômico que voltaram a ser positivas ainda que modestas.

Todavia, talvez a partir da crise mexicana de 1994, a situação dos países sul-americanos vizinhos ao Brasil passou a apontar sintomas semelhantes de estagnação e de crescente possibilidade de crise externa de pagamentos. Em todos esses países, com maior ou menor intensidade, ocorreram:

• aumento pouco significativo da capacidade instalada, pois o capital estrangeiro se dirigiu em grande parte à aquisição de empresas existentes, em especial estatais;

• acentuada desnacionalização da economia, em especial em setores de infra-estrutura que foram privatizados;

• expansão do desemprego, do subemprego e da marginalização devido à automação e à “racionalização”;

• pequena expansão em valor das exportações e grande em valor das importações, com déficit comercial significativo;

• dolarização progressiva, ostensiva ou disfarçada, da economia;

• lento crescimento econômico e até estagnação e recessão;

• desarticulação das agências do Es­­tado;

• evasão crescente de divisas e de cérebros;

• incremento do narcotráfico, crime organizado e tráfico de armas;

• eclosão de rebeliões indígenas, agravamento de conflitos sociais e animosidade racial;

• proliferação da corrupção em altos escalões do governo e em setores empresariais.

O contexto regional da América do Sul nesse período que precede as eleições presidenciais no Brasil é de estagnação econômica, grave inquietação social e política, intervenção e interferência estrangeiras, reanimação de movimentos guerrilheiros e descrédito das instituições políticas. A democracia formal é vista cada vez menos como regime capaz de promover o desenvolvimento e de romper com o poder das velhas estruturas oligárquicas parasitárias e cada vez mais como regime que garante sua sobrevivência e cria novas oligarquias financeiras que exploram e asfixiam as sociedades, desarticuladas e conflituosas. Cada país, naturalmente, vive uma conjuntura histórica específica, mas são todos vítimas maiores ou menores do fracasso das políticas econômicas neoliberais impostas pela aliança entre as elites locais, o FMI, os EUA e potências européias, que viram a possibilidade de se apropriar do patrimônio público acumulado, de realizar grandes negócios neste processo e de abalar as bases de um eventual desenvolvimento econômico sustentado e acelerado que viesse a permitir a construção de um bloco sul-americano, que pudesse gozar de razoável autonomia econômica e política.

Este processo sul-americano, diante do novo contexto mundial e da estratégia americana no mundo multipolar, enfrenta três grandes articulações estratégicas que continuarão a se desenrolar este ano e que prosseguirão em 2003, no próximo governo. A primeira é a intervenção militar direta americana na América do Sul, a partir do pretexto de combate às guerrilhas na Colômbia e ao narcotráfico, que faz parte de uma operação mais ampla que pode se estender com facilidade ao Peru, à Venezuela e ao Equador, e cujo objetivo final é a instalação de bases militares permanentes na região, com essa aparência ou não, como poderiam ser a base Alcântara e a base na Patagônia argentina. A segunda é a consolidação jurídica da “abertura” desregulamentada das econo­mias sul-americanas, que tem permitido a desinibida atuação de megaempresas multinacionais, por meio da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais de comércio, como a Alca, e de acordos de garantia de investimentos. Essa consolidação se faria também pela criação de instituições independentes, como o Banco Central e as agências reguladoras “técnicas”, que garantiriam a perpetuação dessas políticas. A terceira é garantir a continuidade das políticas econômicas neoliberais executadas pelas equipes econômicas quando ocorrem processos eleitorais legitimadores da democracia formal, ou a desestabilização de governos que a elas se opõem ou que a elas venham a se opor, com o apoio de elites locais beneficiárias, como é o caso da Venezuela, mas que pode vir a ser o de outros países onde a crise venha a exigir o abandono das políticas do FMI, como é o caso da Argentina, Uruguai e talvez do Brasil.

A desagregação patente do Mercosul esfacela o mito da “integração aberta” neoliberal como forma de organizar a sub-região para participar de modo mais eficaz das negociações econômicas e políticas internacionais. A Tarifa Externa Comum do Mercosul se transformou em verdadeira “peneira”, tal o número de perfurações; o Uruguai e o Paraguai não escondem seus ressentimentos em relação ao “unilateralismo” das decisões de política econômica adotadas, sem consulta, pelo Brasil e Argentina; a Argentina e agora o Uruguai para se recuperarem de sua crise econômica certamente desejarão, com ou sem razão, poder exercitar uma política comercial ativa e independente do Brasil, devido à diferença radical de circunstâncias e de estrutura econômica, o que torna difícil supor a sobrevivência da TEC, a não ser como um símbolo insepulto de uma utopia neoliberal.

Apesar de reiteradas declarações sobre a importância dos vínculos com o Brasil, existe em círculos uruguaios e argentinos o desejo de negociar acordos de livre comércio bilaterais com os EUA, o que revela com clareza sua opinião pessimista sobre as perspectivas do Mercosul.

Em nível político-militar regional, a estagnação econômica nos países vizinhos do Brasil leva à instabilidade social e política, aos movimentos de protesto popular, à possibilidade de “soluções” autoritárias e de emergência de movimentos de guerrilha. Esta situação afeta a segurança nas fronteiras brasileiras e torna provável sua violação, o que contribui para aumentar a inquietação das Forças Armadas diante da contenção de despesas militares, e torna a região, como um todo, e o Brasil em especial, menos atraente para investimentos diretos, em especial no momento em que qualquer tentativa de prosseguir com o processo de privatizações se tornou quase que impossível na prática, devido às resistências so­ciais e aos escândalos do passado.

À guisa de conclusão
O contexto econômico mundial será de crescente protecionismo comercial nos países desenvolvidos, instabilidade nos mercados mundiais de produtos primários, retração de capitais financeiros e investimentos diretos, lento crescimento da economia mundial e agravamento da crise nos países da periferia. O contexto político-militar mundial que deverá prevalecer quando da realização das eleições brasileiras de 2002 será de crescente instabilidade política, violência e arbítrio unilateral, gerado e alimentado pela dinâmica e ideo­logia da sociedade americana e de sua estratégia internacional antiterror, que estimula corridas armamentistas e o agravamento das campanhas antiguerrilha, com a intervenção americana militar direta, como está ocorrendo nas Filipinas, na Indonésia e na Colômbia.

O contexto econômico mundial e regional tende a agravar as dificuldades para o Brasil de gerar um superávit significativo, de enfrentar o déficit em transações correntes, e de reduzir a taxa de juros, medidas indispensáveis para retomar o crescimento e afastar a crise externa. A dependência da captação de 50 bilhões de dólares para “fechar” as contas externas mantém o governo brasileiro refém das classificações das agências de risco, das avaliações dos megabancos internacionais e da estagnação econômica no centro do sistema mundial. O círculo é vicioso: quanto maior a dificuldade em atrair capitais, por mais tempo se mantêm altos os juros, mais aumenta a dívida pública interna, mais se desacelera a economia, mais se amplia o desemprego, mais a economia se torna desinteressante aos capitais estrangeiros, mais aumenta a dolarização da dívida e se reduzem seus prazos, mais aumenta a tributação, mais se agravam os problemas sociais, mais aumenta a insegurança e a violência social e sua percepção pelos investidores, mais aumenta a percepção dos investidores da possibilidade crescente de “defaultt” e maior a dificuldade em atrair capitais e assim se retorna ao início do círculo, cada vez a um degrau acima de gravidade.

Uma tendência extremamente grave da política internacional americana é a substituição de sua política tradicio­nal de persuasão sutil/intimidação discreta/agressão modulada por uma política de intimidação aberta/exploração/subordinação dos países recalcitrantes e de “abandono” dos países da periferia que, mesmo sem se oporem à política americana, venham a enfrentar crises econômicas graves.

A política americana tradicional tinha como objetivo manter o equilíbrio do sistema mundial, que vem gerando a concentração de poder em seu centro, por meio uma grande estratégia cujos objetivos, retóricos ou sinceros, eram a promoção do desenvolvimento econômico, a luta contra a pobreza, a redução da desigualdade no mundo, a luta pela paz e o desarmamento, a luta em favor da democracia e dos direitos humanos. Esses objetivos conferiam à hegemonia americana, e a seus aliados europeus, um caráter benévolo e justificável, que permitia cooptar elites nos distintos países para apoiar e defender aqueles objetivos.

Essa política de hegemonia magnânima e compartilhada parece ter sido substituída por uma hegemonia imperial unilateral, darwinista e agressiva. Os riscos dessa nova política imperial hegemônica para as perspectivas de futuro de um país como o Brasil são crescentes e significativos, pois o temor reverencial e o complexo de inferioridade de setores importantes das elites podem fazer com que se concretize, na política, o mote da canção do Rapa: “quem não reage, rasteja”.

Há, todavia, sinais tênues de esperança, tais como, de um lado, a reação do Partido Democrata nos EUA, que procura abalar a unanimidade do apoio da opinião pública a George Bush, por meio de investigações sobre corrupção empresarial, sobre a incompetência do FBI e da CIA e o conhecimento do governo a respeito dos ataques terroristas de setembro e seu descaso ou omissão, não importa se proposital ou não, e, de outro lado, a retomada da articulação das ONGs em todo o mundo contra o arbítrio, a violência e a consagração do neoliberalismo selvagem.

Assim, vive a sociedade brasileira um momento excepcional que permite refletir sobre os caminhos necessários a partir de 2003. Podem ver os brasileiros em seu vizinho, a Argentina, o resultado extremo das políticas econômicas que aqui, no Brasil, se insiste em executar; segundo, podemos todos perceber que o alinhamento político com as grandes potências não assegura sua gratidão e nem recompensa; em terceiro lugar, podemos enxergar a natureza da política hegemônica imperial, pois ela se exerce agora sem disfarces, com o objetivo de acentuar as assimetrias de poder e consagrar formalmente os privilégios; vemos que o mercado prefere o lucro à democracia, como declarou George Soros, símbolo da especulação mundial. Nós preferimos a democracia acima do mercado, a civilização acima da barbárie, a justiça acima do arbítrio.

Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, foi diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty