Nacional

O Projeto Fome Zero é uma proposta de política nacional participativa de segurança alimentar e combate à fome. Sua elaboração envolveu alguns dos principais especialistas no tema, além de movimentos sociais e ONGs. Tem sido reconhecido por entidades nacionais e internacionais como uma importante iniciativa da sociedade civil, ao levantar alternativas concretas para combater o flagelo da fome no país

Ao contrário dos dados divulgados por técnicos ligados ao governo federal, houve um aumento dos níveis de pobreza e vulnerabilidade à fome no período de 1995 a 1999, especialmente nas áreas metropolitanas, fruto especialmente do desemprego e dos baixos níveis salariais. Assim, embora a pobreza esteja fortemente concentrada no Nordeste (50% dos pobres estão nos estados que compõem a região), ela tem crescido em quase todas as regiões metropolitanas (a uma taxa de 5% ao ano no período 1995/99) e ainda mais na Grande São Paulo (9,2% ao ano) e RM de Porto Alegre (7,8% ao ano)1.

Calculamos que existiam no Brasil, segundo dados básicos da PNAD-IBGE de 1999, 44 milhões de pessoas muito pobres, que ganham menos que um dólar por dia, correspondendo a 9,3 milhões de famílias com uma renda de cerca de R$ 180,00 por mês, que foram consideradas o público potencial beneficiário das propostas do projeto.

Constatou-se, ainda, que:

- o problema da fome, hoje, não é por falta de produção de alimentos, mas por falta de renda para adquiri-los em quantidade permanente e qualidade adequada. As estimativas da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) mostram que o Brasil tem uma disponibilidade per capita de alimentos equivalente a 2960 Kcal/dia, bastante acima do mínimo recomendado de 1900 Kcal. O problema é que o consumo de alimentos é uma função da renda das famílias; e como a renda está muito mal distribuída, uma parte importante da população não tem acesso aos alimentos nem mesmo na quantidade mínima necessária para garantir a sobrevivência. Há no Brasil uma grande parcela de subnutridos com um consumo médio de 1650 Kcal/pessoa/dia, de tal forma que estamos classificados pela FAO na categoria 3 (de 1 a 5 para proporções crescentes de subnutridos) juntamente com países como Nigéria, Paraguai e Colômbia;

- existe um círculo vicioso da fome, difícil de ser superado apenas com políticas compensatórias de doação de alimentos, como tradicionalmente tem se feito (cestas básicas, por exemplo). Este círculo é retroalimentado, por um lado, pelos problemas estruturais do país, de falta de emprego, salários baixos e concentração de renda; por outro, pela falta de políticas agrícolas e aumentos dos preços dos alimentos.

Neste quadro, verificou-se que as políticas alimentares foram sendo desmontadas ao longo da década de 90 e não há um programa no país que englobe ações diretas de combate à fome. As políticas existentes encontram-se fragmentadas em várias ações, predominantemente com caráter localizado, e pautam-se, fundamentalmente, pela transferência de pequenos valores monetários (“bolsa-esmola”) que são insuficientes para alterar o quadro de miséria e desnutrição. Exemplos disso são os diversos programas lançados pelo governo federal: programa da seca, bolsa-escola, erradicação do trabalho infantil, bolsa-renda, bolsa-alimentação.

O Projeto Fome Zero entende que a questão da fome no país tem três dimensões fundamentais: de um lado, a insuficiência de demanda, decorrente da concentração de renda, dos elevados níveis de desemprego e subemprego e do baixo poder aquisitivo dos salários pagos à maioria; de outro, a incompatibilidade dos preços atuais dos alimentos com o baixo poder aquisitivo da maioria da população; e a terceira e não menos importante: a fome daquela parcela da população pobre excluída do mercado de alimentos, muitos dos quais trabalhadores desempregados ou subempregados, idosos, crianças e outros grupos carentes que necessitam de um atendimento emergencial.

Por isso é que a proposta do Fome Zero envolve três grandes eixos simultâneos: ampliação da demanda efetiva de alimentos, barateamento do seu preço e programas emergenciais para atender a parcela da população excluída do mercado. Mas o equacionamento definitivo da questão da fome no Brasil exige um novo modelo de desenvolvimento econômico que privilegie o crescimento com distribuição de renda de modo a recuperar o mercado interno com geração de empregos, melhoria dos salários e recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo – que funciona como uma espécie de “farol” para as rendas dos segmentos mais pobres da população.

A segurança alimentar de um país vai além da superação da pobreza e da fome. O círculo vicioso que liga a pobreza e a fome é difícil de ser superado apenas com políticas compensatórias de doações de alimentos por meio de cestas básicas ou de transferências de renda, como os programas de renda mínima/bolsa escola. É necessário asso­ciar o objetivo da política de segurança alimentar com estratégias de desenvolvimento econômico e social que garantam eqüidade e inclusão social.

Algumas políticas podem ajudar a caminhar nesse sentido, como os programas ampliados e reforçados de renda mínima e bolsa-escola, o incentivo à agricultura familiar, a previdência so­cial universal, a intensificação da reforma agrária e uma política de crescimento que permita gerar mais e melhores empregos. Mas temos que ter também políticas específicas para o combate à fome, como um programa de cupons de alimentação em substituição às cestas básicas, outro de combate à desnutrição materno-infantil, a ampliação da merenda escolar e do PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), entre outros. Finalmente, torna-se necessário desencadear políticas locais diferen­ciadas segundo a localização das populações necessitadas. Nas áreas rurais, por exemplo, é preciso apoiar a produção de alimentos, mesmo que seja apenas para autoconsumo. Já nas metrópoles tem-se que ampliar o atendimento dos restaurantes populares, os bancos de alimentos e realizar parcerias com os varejistas para a comercialização de produtos de época e estimular o consumo da produção regional.

Apesar deste caráter de construção permanente e participativa, o projeto sofreu inúmeras tentativas de desqualificação, motivadas por duas causas principais: desconhecimento do seu conteúdo no estilo “não leu e não gostou”, já que muitas críticas pautaram-se pelas manchetes de jornais, claramente enviesadas; e motivos políticos, visando atingir seu principal inspirador, que é Lula.

Apesar dessas tentativas de desqualificação, julgamos que o projeto atingiu seus objetivos. Primeiro, conseguimos recolocar o problema da fome (e da falta de políticas para combatê-la) na pauta nacional. O impacto do projeto no noticiário foi grande e permitiu reiniciar uma mobilização da sociedade sobre o tema. Segundo, o governo federal foi obrigado, também pela opinião pública, a apresentar respostas à sociedade e à população faminta. Como resultado, tivemos a ampliação dos programas do tipo renda mínima para a população entre 15 e 60 anos, que estariam excluídas dos programas federais de transferência de renda, e a aprovação, no dia seguinte ao lançamento do Projeto Fome Zero, do Fundo de Combate à Pobreza, apresentado como principal fonte de financiamento para o combate à fome. Por fim, e não menos importante, verificou-se uma enorme aceitação do projeto, com dezenas de convites para lançamentos e debates públicos. Algumas prefeituras, como as de Santo André (SP), Campinas (SP), Embu (SP) e Ponta Grossa (PR) já concretizaram iniciativas para implantar parte das propostas contidas no Fome Zero.

Este artigo sistematiza os principais pontos questionados após o seu lançamento, visando levantar as bases para a continuidade do debate.

Combate à fome e à pobreza

Quais as propostas existentes para combater a fome e a pobreza no país? Um divisor de águas ficou bastante claro. Por um lado, há uma visão que defende que hoje há recursos e políticas suficientes e o problema é “focalizar melhor os pobres”. Para seus defensores, os recursos dos programas sociais não chegam aos realmente necessitados de forma eficiente. Daí decorre a substituição de diversas políticas (como aquelas ligadas à distribuição de alimentos, por exemplo, o fornecimento de leite e cestas básicas) por uma complementação de renda. Esta é a proposta subjacente às políticas do atual governo, defendida por pesquisadores ligados ao Ipea e ao Banco Mundial.

A diferença com a proposta do Fome Zero é completa. Deste lado estão as propostas de políticas específicas de ajuda alimentar, associadas a políticas estruturais como de geração de renda e emprego, reforma agrária, políticas de apoio à agricultura fami­liar, aumento do salário mínimo e ampliação da previdência social, por exemplo. Políticas diretas de segurança alimentar e combate à fome devem ser adotadas de forma que estas forneçam os meios básicos para a sobrevivência das famílias sem condições econômicas, mas, ao mesmo tempo, criem mecanismos dinâmicos em outras áreas da economia, como a produção e a distribuição de alimentos, servindo, também, como elementos educativos para libertação da dependência destas políticas específicas.

Limitar-se a políticas emergenciais ou assistenciais sem considerar as causas estruturais da fome e da miséria, como o desemprego, o baixo nível de renda e a sua altíssima concentração, fará apenas com que se perpetue o problema e a necessidade dessas políticas assistenciais.

Uma política de tal magnitude, necessária para que se supere a condição de país subcidadão, necessita sim de recursos, pois esta proposta atinge todas as pessoas e dinamiza a economia e a produção de alimentos ao mesmo tempo que faz a comida chegar à mesa das pessoas sem impactos inflacionários.

Embora necessite de uma política específica, o combate à fome não pode ser baseado em ações salvadoras. Em todos os países cujos casos foram apresentados no seminário internacional realizado na Unicamp em abril passado – Canadá, Estados Unidos e México – as políticas de combate à fome fazem parte de um conjunto mais amplo de instrumentos que formam uma rede de seguridade social e dão sustentação às diversas situações de vulnerabilidade. Ou seja, a fome é apenas uma das vá­rias inseguranças a que estão submetidas as famílias pobres. Isto nos remete a uma imagem de “cebola”: várias camadas de seguridade que se superpõem para combater a pobreza: o seguro-desemprego, a previdência por idade, a bolsa-escola para garantir a educação, as políticas de atendimento gratuito à saúde etc.

A metodologia

Outra crítica ao projeto foi seu suposto “erro” no cálculo do número de pobres. Constatamos que não há, no Brasil, estatísticas consensuais sobre o número de pessoas que “passam fome”.

Frente à ausência de pesquisas diretas2 mais recentes, de abrangência nacional, diversos pesquisadores têm procurado inferir a população carente por meio de métodos indiretos, principalmente da renda. A partir de um amplo levantamento3 constatamos que não há uma estimativa comum mesmo quando fundada na mesma fonte de dados e em métodos similares. Os resultados discrepantes devem-se a diferenças nos critérios adotados até chegar à definição da população indigente e pobre.

Isto explica a profusão de números existentes: são 30 milhões, como dizia o Mapa da Fome, em 1993; 50 milhões, como dizem os números da FGV4; 54 milhões, como diz o último estudo do Ipea; ou 44 milhões, como diz o Fome Zero? Qual número está correto? Todos e nenhum deles, porque dependem dos critérios adotados.

No Projeto Fome Zero buscou-se aperfeiçoar as metodologias existentes. Para isso, elaboramos dois textos metodológicos que estão disponíveis na página eletrônica do Instituto de Economia da Unicamp5, nos quais explicamos passo a passo a construção da linha de pobreza adotada, deixando claro que não adotamos a mesma metodologia do Banco Mundial; apenas tomamos emprestado o “corte” de “um dólar por dia” para definir a linha de pobreza nas áreas rurais do Nordeste, a região mais pobre do país. Mas para definir a linha de pobreza não adotamos a fictícia moeda do dólar PPP (paridade do poder de compra) do Banco Mundial e sim a média do dólar comercial em setembro da data de referência da PNAD de 1999. Vale ressaltar que a PPP é um indicador de equivalência teórico feito para comparar o PIB dos diversos países e não para fazer comparações internacionais de pobreza6.

Na verdade, os pesquisadores envolvidos no Projeto Fome Zero buscaram uma metodologia que permitisse corrigir as duas principais limitações apontadas pelo próprio Banco Mun­dial. A primeira refere-se ao fato de que uma só linha de pobreza não considera diferenças regionais de custo de vida entre áreas urbanas e rurais e entre regiões de um mesmo país. A segunda é a não consideração de consumo de bens produzidos pela própria família, como a produção para autoconsumo. Estas duas correções foram feitas no Fome Zero, utilizando-se dados da PPV (Pesquisa sobre Padrões de Vida) e da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), ambas do IBGE.

Um terceiro aperfeiçoamento metodológico dos números do projeto diz respeito ao desconto do item de maior peso no orçamento familiar, o pagamento de aluguel ou de prestação da casa própria, evitando as distorções de considerar que toda a renda da família estaria disponível para compra de bens de consumo. Esta correção é particularmente importante tendo em vista que os gastos com aluguel e prestação da casa própria são proporcionalmente maiores nas áreas metropolitanas que nas pequenas e médias cidades e nas áreas rurais.

Com todas estas correções chegamos a um número surpreendente: a linha de pobreza média ponderada para o Brasil (R$ 68,48 por pessoa) indica a existência de 44 milhões de pessoas que tinham renda disponível média de R$ 38,34 por pessoa ou 9,3 milhões de famílias (que possuem uma média de 4,7 pessoas) com renda de R$ 181,10. Ou seja, as famílias que tinham uma renda disponível referente ao valor atual do salário mínimo em setembro de 1999, data de referência da PNAD, foram consideradas pobres. Não temos dúvidas ao dizer que as pessoas dessas famílias não têm renda suficiente para garantir a sua segurança alimentar!

Os “custos” do projeto

Outra crítica levantada foi que o projeto não apontava claramente as fontes de seus recursos. Associada a esta, inflacionou-se o projeto, apontado como tendo um custo total de R$ 70 bilhões (6% do PIB), o que levaria o Brasil à falência em 15 dias, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, de 21/10/01. O equívoco desse número é evidente: os críticos do Fome Zero somaram todos os valores que seriam despendidos ao longo de vários anos como se fossem todos gastos de uma só vez, além de superestimarem os números.

Nossas estimativas mostram que somente o programa dos cupons de alimentação custaria cerca de R$ 20 bilhões se atendesse todo o “estoque atual” de 9,3 milhões de famílias muito pobres em um só ano – cerca de 44 milhões de pessoas. Como a proposta é implantar o programa em quatro anos, o custo médio anual seria da ordem de R$ 11 bilhões se considerarmos uma redução concomitante nos níveis de pobreza de 50% em um período de dez anos.

Além disso, não procedem as estimativas dos supostos efeitos devastadores do aumento do salário mínimo para US$ 100, nem da ampliação da cobertura para a previdência social fazendo valer, também para as famílias não-agrícolas, os benefícios para pessoas em regime de economia familiar vigentes na previdência rural. Nossos cálculos, com base nos microdados da PNAD-1999 indicaram a existência de um “estoque” de 2,9 milhões de pessoas com idade para aposentadoria (mulheres acima de 60 anos e homens acima de 65 anos) que não recebem nenhum benefício de órgãos públicos. Mesmo se todo esse “estoque” fosse contemplado no primeiro ano (que não é o que o projeto propõe), o seu custo de incorporação seria de R$ 6,8 bilhões. Isto representa aproximadamente apenas 0,7% do PIB ou 3,3% do total de recursos arrecadados em 2000 pertencentes à seguridade social. A partir da incorporação desse “estoque”, o saldo do fluxo anual (pessoas que se aposentam menos as que perdem o benefício por morte) não seria muito superior ao acréscimo que já temos hoje.

Com relação à crítica de que a correção do salário mínimo para US$ 100 quebraria as contas do país, temos a registrar que essa correção já foi feita em 1995, vigorando até janeiro de 1999. Foi ela que melhorou sensivelmente os indicadores de pobreza na era do real, apresentados como fruto da estabilização monetária, mas que na realidade tem tudo a ver com os ganhos do salário mínimo. Aqui também as contas apresentadas no referido artigo d’O Estado de S. Paulo estão exageradas, pois os benefícios de prestação continuada que estão baseados no salário mínimo não alcançam 20 milhões na seguridade social, mas sim 13 milhões de pessoas. Assim, o impacto do aumento do salário mínimo para US$ 100 em 16 milhões de pessoas (13 milhões mais o ingresso de 3 milhões do setor informal proposto no Fome Zero) seria de R$ 11 bilhões se fossem todos atendidos em um ano só. Estes números estão bem distantes dos R$ 70 bilhões ou 6% do PIB referidos no artigo de capa do Estado, e que, supunha-se, quebraria o país em 15 dias7.

Mas o ponto fundamental de discordância é que não se pode considerar só as despesas do Projeto Fome Zero sem considerar seus benefícios, ou seja, os efeitos positivos que o combate à fome e à miséria traria. Por exemplo, o alívio no orçamento da saúde ou ainda os benefícios da expansão da área cultivada com alimentos na geração de empregos e na arrecadação de impostos. Nossas simulações mostram, por exemplo, que o programa dos cupons de alimentos poderia gerar uma contrapartida de cerca de R$ 2,5 bilhões por ano na arrecadação de impostos adicio­nais (ICMS e PIS/Cofins) se incorporássemos ao consumo essas 44 milhões de pessoas pobres existentes no país8.

Se considerarmos uma ingestão adicional média de 50% das calorias e proteínas em função da distribuição dos cupons às famílias pobres, a produção atual de arroz e feijão teria que aumentar em mais de 30%. Isso significaria expandir a área cultivada em quase 3 milhões de hectares, gerando mais de 350 mil postos de trabalho na agricultura familiar e aumentando o valor atual da produção agrícola em cerca de R$ 5 bilhões, que é mais ou menos a metade do custo anual dos cupons previstos no projeto. Tudo isso foi “esquecido” pelos críticos que contabilizam apenas os custos do Fome Zero e que ainda não entenderam que combater a fome e a miséria é também uma forma de investimento.

Mas vamos supor por hipótese que nenhum desses mecanismos de expansão da demanda propostos no projeto funcionasse, ou seja, que não houvesse nenhum feedback em termos de crescimento, nem de queda da pobreza. De onde seriam tirados os recursos para implantar os programas propostos?

Dizemos claramente que é possível remanejar parte dos R$ 45 bilhões hoje disponíveis no orçamento para os gastos sociais (exceto previdência), o que dá mais de mil reais por ano para cada um dos pobres que contabilizamos. E citamos um exemplo concreto: o Fundo de Combate à Pobreza, estimado em cerca de R$ 4 bilhões anuais. Pois bem, foi divulgado pelo próprio Estadão, em 16 de outubro de 2001, que um terço dos R$ 3,1 bilhões previstos este ano para o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza será destinado pelo governo federal para reforçar o ajuste fiscal. Além disso, segundo dados divulgados recentemente pela Unafisco, o Brasil perde cerca de R$ 4 bilhões ao ano com diversas isenções tributárias, por exemplo, a empresas bancárias e indústrias como de bebidas e cigarros. Isso demonstra que a disponibilidade de recursos para combater a fome e a miséria é antes de tudo uma questão de prio­ridade política.

É essa mesma prioridade que esperamos ter por meio de um compromisso dos governadores em redire­cionar para o combate à fome parte dos recursos obtidos com os impostos indiretos incidentes sobre os produtos da cesta básica. Nossas estimativas mostram que esses impostos representam hoje R$ 9,7 bilhões por ano, ou 0,8% do PIB. Do ponto de vista dos estados, essas receitas variam algo entre 0,8% (São Paulo) e 3,1% (Cea­rá) do total da arrecadação. O Projeto Fome Zero propõe que os governadores retornem parte desses recursos para a população mais pobre.

Na verdade, os críticos só se preocupam em perguntar qual o custo do projeto e qual a fonte dos recursos; mas a pergunta deveria ser outra: quanto custa não combater a fome? A falta de políticas de geração de emprego, saúde e educação tem um custo elevado para o país que vê crescer a violência. Tem também o custo da falta de consumo e da produção de bens, custo para o empregador e diversos outros. Por isso, combater a fome não deve ser considerado apenas um “custo”, mas também um investimento no Brasil.

Cupons de alimento e renda mínima

Esse é outro falso debate. Os cupons de alimentos propõem-se a substituir o mecanismo tradicional de combate à fome, que é a distribuição de cestas básicas. É falsa a dicotomia: ou renda mínima ou cupons. Considera-se apenas que a transferência de renda isolada não basta para acabar com a fome, dada a magnitude que já assumiu o problema no Brasil. Além disso, programas como renda mínima visam a atender famílias com renda muito baixa, que não têm recursos para satisfazer suas necessidades básicas, que vão além da alimentação. Por isso apresenta-se um leque de propostas que engloba políticas visando desde melhorar a distribuição da renda até aumentar a oferta e baratear o custo da alimentação.

Vale a pena insistir nesse ponto: o cupom é um programa complementar, como ocorre em todos os países em que foi implantado, uma vez que se baseia na idéia de subsidiar a renda das famílias mais pobres até um valor que assegure uma alimentação adequada a essas pessoas. Considera-se que suas vantagens são: a) maior gasto em alimentos pelas famílias em relação a programas de fornecimento de renda em dinheiro; b) o seu caráter contracíclico e não inflacionário, pois liga o aumento de consumo de alimentos com a produção; c) permite recuperar as políticas de compra institucional por parte das prefeituras; d) o seu caráter complementar, permitindo ser temporário e associado a outros programas como o bolsa-escola, bolsa-alimentação, seguro-desemprego, previdência, programas de formação profissional, prevenção à saúde e à desnutrição, entre outros.

Todos estes pontos apontam para o fato de que o debate e a mobilização levantados com a elaboração do Projeto Fome Zero devem ser permanentes e amplos, como tem sido feito. Sua implantação não só é viável, como necessária e urgente no país.

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José Graziano da Silva é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
Walter Belik é professor livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp
Maya Takagi é doutoranda do Instituto de Economia da Unicamp.
Eles são coordenadores técnicos do Projeto Fome Zero