Política

Império é um livro surpreendente pela sua ambição e por sua ingenuidade

Império, livro de Michael Hardt e Antonio Negri, é surpreendente. Por sua ambição: uma grande obra sobre as transformações por que passa o mundo. Por sua originalidade: uma síntese jamais tentada entre elementos do marxismo, pós-modernismo e liberalismo. Por seu caráter instigante: percorrendo muitos temas importantes para o conhecimento da sociedade e a ação política no mundo de hoje, levanta pistas interessantes para várias discussões. Mas também por sua ingenuidade: a forma como as categorias “império” e “multidão” (que vertebram o livro) são apresentadas é, para um texto que pretende dialogar com a tradição intelectual da esquerda, tão singela que em uma primeira leitura chega a desnortear. E por suas enormes conseqüências políticas: uma atuação a partir dos parâmetros por ela estabelecidos se situa em um terreno onde grande parte do que consideramos eficácia na prática política perde sentido.

E a desorientação aumenta quando percebemos as formas muito diferenciadas como, para além da intenção de seus autores, se dá a recepção da obra: ela pode variar do reforço da passividade pós-moderna a uma recolocação na ordem do dia da questão da dominação imperial (e para os incautos, identificada com o imperialismo norte-americana, em oposição direta ao que Hardt e Negri afirmam).

Na impossibilidade de, em uma curta nota, sistematizarmos esta discussão, vamos apenas iluminar um tema do debate – procurando por seu intermédio instigar nossos leitores a trilharem seus próprios caminhos.

A idéia central é que vivemos uma nova época histórica, caracterizada pelo domínio do império, “a substância política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo”. A soberania dos Estados-nações tem gradualmente diminuído; “a soberania tomou uma nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica ou regra única. Esta nova forma global de economia é o que chamamos de Império”.

Como dizem com todas as letras nossos autores, “os Estados Unidos não são, e nenhum outro Estado-nação poderia ser, o centro de um novo projeto imperialista. O impe­ria­­lismo acabou”. Ele estaria sendo substituído por um novo ordenamento que “não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho descentralizado e desterritorializado do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão. O Império administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando reguladoras. As distintas cores nacionais do mapa imperialista se uniram e mesclaram, num arco-íris imperial global”. Em conseqüência, as “divisões espaciais dos três mundos (Primeiro, Segundo e Terceiro) ficaram tão misturadas que a qualquer momento nos deparamos com o Primeiro Mundo no Terceiro, o Terceiro no Primeiro, e o Segundo, a bem dizer, em parte alguma”.

Grande parte do livro constitui o rechaço de qualquer papel para o Estado-nação no mundo pós-moderno em que viveríamos e a afirmação da nova soberania imperial. Nenhum Estado nacional, nem mesmo os Estados Unidos, teria enquanto nação um lugar ao sol no novo sistema. A existência de uma hierarquia mundial de poder político que tem como local de expressão os Estados nacionais perde totalmente sentido na análise de Hardt e Negri.

O contraponto do império é a multidão. “O poder imperial já não pode resolver o conflito de forças sociais pelo esquema mediador que substitui os termos do conflito. Os conflitos sociais que constituem o político confrontam-se diretamente, sem qualquer espécie de mediação. Esta é a principal novidade da situação imperial. O Império cria um potencial maior de revolução do que os regimes modernos de poder, porque nos apresenta, juntamente com a máquina de comando, uma alternativa: o conjunto de todos os explorados e subjugados, uma multidão que se opõe diretamente ao Império, sem mediadores”.

É impressionante como a idéia de multidão está pouco desenvolvida em Império, merecendo destaque apenas no capítulo final, onde é introduzida e debatida à luz de Santo Agostinho. Apesar disso, os autores apontam algumas demandas da multidão: uma cidadania global, o direito a um salário social, o direito à reapropriação (ingenuamente referido à constituição dos Estados Unidos) e a posse, isto é, sua constituição como sujeito político.

O poder constituinte: Ensaio sobre as alternativas da modernidade, de Antonio Negri é, em boa medida, a fundamentação conceitual de Império. Neste livro de 1992, encontramos uma genealogia da multidão como “sujeito absoluto da potência”. Negri procura recuperar – de Maquiavel, passando pelos ideólogos radicais das revoluções inglesa, norte-americana e francesa, até chegar no marxismo – o que para Hanna Arendt é a capacidade permanente de fundação ou criatividade dos processos revolucionários. É aí que começa a ficar mais clara a fundamentação teórica do pensamento de Negri na tríade Maquiavel, Espinosa e Marx, em uma articulação conceitual onde o social é diretamente político. Isso fica evidente na obra de alguns seguidores do pensador italiano, As multidões e o império: Entre a globalização da guerra e a universalização dos direitos (Rio de Janeiro, DP&A, 2002), organizada por Giuseppe Cocco e Graciela Hopstein.

Mas Negri – como antes Althusser, Della Volpi, Colletti e Cerroni – reconstrói um Marx sem dialética e por isso mesmo incapaz de reconhecer a teia de mediações que constroem um percurso do social ao político e do político ao social. Como o que Negri busca é justamente apresentar toda idéia de soberania como um aparato transcendental de domesticação da multidão, o que ele faz, em O poder constituinte, é uma fenomenologia da potência constituinte da multidão, da mesma forma que Império empreende a fenomenologia da dominação imperial. Mas depois de 450 páginas de discussão da filosofia política moderna, ficamos com a sensação de que a irrupção do poder constituinte na história (e portanto da multidão) é um processo metafísico. Ele parece inapreensível por um sistema de categorias mais refinado.

Ora, vale destacar que a emergência de um sujeito anti-sistêmico construído ao longo de um processo cumulativo de lutas, bem como a redefinição da hierarquia de poder entre os Estados nacionais, sempre compreendendo um centro e uma periferia, são temas que estão no coração das reflexões dos teóricos do sistema mundial. E que foram também publicados recentemente livros importantes desta escola. Após o liberalismo: Em busca da reconstrução do mundo é a primeira obra de fôlego que sai no Brasil daquele que podemos considerar o inspirador desta concepção, Imma­nuel Wallerstein. Uma importante pesquisa coletiva coordenada por Giovanni Arrighi, junto com Beverly Silver, Caos e governabilidade no moderno sistema mundial desenvolve e atualiza as teses deste autor, já apresentadas em O longo século XX e A ilusão do desenvolvimento. E esta abordagem vem sendo aprofundada entre nós nos livros recentes de José Luís Fiori, principalmente no que ele organizou com Carlos Medeiros, Polarização mundial e crescimento (Petrópolis, Vozes, 2001).

Podemos dizer que o debate sobre as distintas explicações teóricas fundamentais para as profundas transformações por que vem passando o mundo nas últimas duas décadas começa a se tornar acessível aos leitores brasileiros.

José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate