Cultura

Carlos Nelson Coutinho é um dos nossos principais intelectuais marxistas

Carlos Nelson Coutinho é um dos nossos principais intelectuais marxistas. Sempre articulando sua reflexão teórica com a prática militante, dedicou-se à crítica cultural nos anos 60 e 70, teve papel destacado na divulgação no Brasil das obras de Lukács e Gramsci e concentra sua atenção, desde os anos 70, na filosofia política. Seu clássico ensaio A democracia como valor universal foi uma intervenção marcante no debate sobre a teoria política no Brasil. Atualmente edita as Obras de Antonio Gramsci, pela Civilização Brasileira, da qual já saíram seis dos dez volumes previstos Entre seus livros mais recentes estão Marxismo e política e Contra a corrente, lançados pela Cortez Editora e Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político, da Civilização Brasileira.

Você acha que, de alguma maneira, as transformações pelas quais o mundo está passando negam as previsões marxistas?

O marxismo continua a ser, a meu ver, um instrumento fundamental para o entendimento das transformações por que passa o mundo hoje. Algumas delas foram previstas no Manifesto Comunista. A capacidade de previsão deste texto, escrito em 1847, é impressionante, sobretudo a respeito da globalização do capital. O capital não estava, então, globalizado como hoje; mas, quando Marx vê o capitalismo como uma etapa progressista na história, vê também, desde o início, suas terríveis contradições, que sabe que irão se acentuar à medida que a dinâmica capitalista se desenvolver. Mas existem coisas anacrônicas no Manifesto. Por exemplo, a idéia de que se constituiria, a partir da própria acumulação do capital, mais ou menos espontaneamente, uma classe operária relativamente homogênea, ligada essencialmente ao setor industrial, que se transformaria em um sujeito revolucionário.

O grande problema que vivemos hoje é o da redefinição do sujeito revolucionário, o qual, a meu ver, continua a ter seu lugar no mundo do trabalho. Mas a morfologia do mundo do trabalho mudou muito. Quando lemos Germinal, de Émile Zola, percebemos que aquele tipo de trabalho e aquela maneira do capital agrupar a classe operária provocava rapidamente a sensação de identidade e a formação de uma consciência de classe. Contudo, hoje em dia, pessoas trabalham e produzem mais-valia em casa, digitando um computador. Tal como o operário na cadeia de montagem, tais pessoas são exploradas pelo capital, produzem mais-valia, mas a possibilidade de uma identificação e da formação de uma consciência de que elas são tão exploradas quanto o operário e de que vivem também inseridas no mundo do trabalho é muito mais difícil. Essa é uma questão para a qual a obra de Marx e Engels não dá resposta.

A partir dos anos 70, ocorre a reestruturação produtiva. Já há importantes análises dessas novas formas de trabalho, mas ainda não se discutiu o modo pelo qual pode brotar delas um novo sujeito revolucionário. A velha classe operária industrial faz parte desse novo sujeito, mas o mundo do trabalho tornou-se bem mais complexo hoje.

Em geral, os analistas vêem nas políticas neoliberais de Reagan e Thatcher, em 1980, o marco de um novo período de adensamento de um mercado mundial. Isso seria um elemento fundamental desse novo período?
Seguramente, a partir dos anos 70, há uma extensão do mercado mundial, inclusive com o colapso do chamado “socialismo real” e com a incorporação dos países deste bloco na chamada economia de mercado. Mas essa etapa do capital não introduz uma novidade radical: as características fundamentais do capitalismo permanecem. Uma delas, hoje esquecida por muitos, é o imperialismo. A atual globalização modifica as formas de imperialismo, mas conserva e até reforça a hegemonia de algumas nações sobre outras, particularmente dos Estados Unidos, configurando uma hierarquia de dominação e formas novas e velhas de imperialismo.

Mas, além do colapso do chamado “campo socialista”, também tem sofrido duros golpes a esquerda ocidental. A crise não foi apenas do “socialismo real”, foi do socialismo em geral. No cenário europeu, até os anos 80, havia partidos nitidamente diferenciados do ponto de vista da base social e do programa: uma coisa era o Labour Party, outra era o Partido Conservador; uma coisa era a Democracia Cristã italiana, outra era o Partido Comunista. E hoje há uma tendência na Europa à americanização do sistema de representação política. Os partidos ficam cada vez mais iguais entre si. Tudo isso tem enfraquecido as condições de resistência dos trabalhadores.

O neoliberalismo não está em crise; ele é a crise, na medida em que exclui de seus supostos benefícios parcelas cada vez maiores da população. Tivemos uma breve etapa na história do capitalismo, a do Welfare State, que corresponde na América Latina ao período populista, em que havia um capitalismo que não só concedia direitos sociais, mas incluía setores da população nos benefícios do crescimento. O neoliberalismo, ao contrário, é claramente voltado para a exclusão não só de setores da população, mas também de países e continentes inteiros.

Em que consiste essa crise da esquerda ocidental, essa americanização da política?
Essa americanização da política é uma manifestação da hegemonia neoliberal, o esvaziamento do que Gramsci chamou de grande política. Ele distinguia entre grande e pequena política: a grande política é a que cuida de estruturas, ou da transformação e da conservação da sociedade como um todo, enquanto a pequena política atua nos quadros da ordem existente, é a política do corredor, do parlamento etc. Uma das provas da vitória da hegemonia neo­liberal é o predomínio da pequena política. Não se coloca mais em discussão, até mesmo pelos partidos ditos de esquerda, a transformação radical da sociedade. O capitalismo passou a ser considerado um fenômeno natural.

O Welfare State representou uma conquista importante para a classe trabalhadora. Mas, depois de uma última ofensiva da classe operária, no final dos anos 60, há um claro movimento de contra-reforma. A partir de então, temos a desconstrução do Welfare State; a americanização da política, com sua redução à pequena política; a modificação substantiva da morfologia do trabalho, que desestruturou não só os partidos políticos de esquerda, mas também as próprias organizações econômico-corporativas, que vivem um período de crise. Há mal-estar, há indícios de que pode se reestruturar uma nova esquerda e um novo sujeito revolucionário, mas estamos nu­ma fase ainda inicial. O que se expressa no Fórum Social Mundial é ainda uma coisa muito magmática, mas revela que, a partir de vários setores, emergem manifestações de repúdio à ordem internacional e ao capitalismo atualmente existentes.

Leandro Konder disse que estamos como no início do século XIX, ou seja, numa situação ainda indefinida. É cedo para dizer como vamos sair dela. E um elemento que reforça a hegemonia neo­liberal é o fato de que a esquerda não está sendo capaz de elaborar um efetivo projeto alternativo de sociedade. A tendência dominante é a de conciliar com o existente e, portanto, de aceitar a ordem capitalista como natural e irreversível, como algo que deve apenas, quando muito, ser “melhorado”.

Você vê alguma tendência sobre a qual poderia se apoiar uma política marxista do século XXI?
Enquanto existir capitalismo, o socialismo estará na agenda política. O capitalismo é uma formação social extremamente contraditória, que gera exclusão e desigualdade; e, nessa medida, nós, marxistas, sabemos que a alternativa ao capitalismo é o socialismo. Marx, no início dos anos 1870, dizia, referindo-se à fixação legal da jornada de trabalho, que esta tinha sido a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital, porque introduzira regulação social onde só havia mercado. A partir de um certo momento, portanto, revelou-se possível importantes reformas no interior da ordem capitalista alterando a lógica do capital, ainda que não a derrotando plenamente. A social-democracia do início do século XX foi lúcida ao se dar conta de que era possível empreender reformas, e empenhou-se neste sentido. O conjunto dessas reformas configurou o Welfare State, a maior vitória da classe operária no quadro da ordem capitalista.

Mas a social-democracia não foi coerente com sua própria proposta reformista. A lógica da cidadania, da luta pelas reformas deveria levar ao socialismo. Era inevitável que seu desenvolvimento se chocasse com a lógica do capital. Quando isso se colocou, a social-democracia preferiu gerir o capitalismo a aprofundar o processo de reforma. A social-democracia foi pouco reformista. É aqui que entra minha idéia (que, de resto, não é minha, é do André Gorz no final dos anos 60, quando ainda era marxista) do reformismo revolucionário. Devemos lutar por reformas que entrem em contradição com a lógica do capital e possam levar à sua superação. Isso tem a ver com a configuração das socie­dades ocidentais, complexas, que nos impõem uma estratégia de guerra de posição, em que ganha-se e perde-se, há espaços que são ocupados e depois reconquistados pelo adversário de classe.

Vivemos um período em que temos sofrido derrotas políticas importantes, mas isso não nos deve afastar da idéia de que a estratégia possível ainda é a da guerra de posição e do reformismo revolucionário. A redução da jornada de trabalho foi uma vitória da economia política do trabalho, como dizia Marx; mas, num primeiro momento, revelou que não era incompatível com o domínio do capital. Mas, hoje, uma nova redução da jornada de trabalho é muito importante para entrarmos em contradição com a lógica do capital e, eventualmente, até o superarmos. Deu-se no interior do capitalismo um aumento da produtividade do trabalho de tal nível que hoje é possível reduzir drasticamente a jornada de trabalho mantendo-se os atuais níveis de produção.

Mas isso não acontece; em vez de uma redução da jornada de trabalho, temos um aumento do desemprego porque há uma contradição entre as forças produtivas atuais e as relações de produção capitalistas. Esta contradição, uma velha lei formulada por Marx, que parecia meio abstrata, manifesta-se hoje no chamado desemprego estrutural. O único modo de resolver este problema em favor do interesse coletivo é a redução da jornada de trabalho, com o que todos poderiam trabalhar e trabalhar bem menos. Redução que, aliás, é para Marx o pressuposto do comunismo. A redução da jornada de trabalho nos liga a um processo de transformação global da sociedade, inclusive à fundação de um novo tipo de sociabilidade, baseado não mais na produtividade do trabalho visando ao lucro individual, mas no desenvolvimento da criatividade humana que poderá ser desenvolvida no tempo livre possibilitado pela redução da jornada de trabalho. Essa redução, assim, é claramente uma reforma revolucionária.

Você acha que, nesse novo contexto, o Estado nacional ainda tem um papel fundamental?
Há uma leitura muito equivocada do conceito gramsciano de sociedade civil. Gramsci chegou ao Brasil para valer em meados dos anos 70, num contexto em que a sociedade civil brasileira crescia na resistência à ditadura. Aí aparece um peculiar conceito de sociedade civil, segundo o qual tudo o que vem da sociedade civil é bom e tudo o que vem do Estado é ruim. Naquele contexto isso tinha sentido, o Estado era a ditadura e a sociedade civil, mesmo os organismos das classes dominantes que começavam a se descolar da ditadura, estava na oposição. Criou-se essa dicotomia maniqueísta, Estado de um lado, sociedade civil de outro.

Essa leitura de Gramsci é inteiramente equivocada. Para Gramsci, a sociedade civil é um espaço da luta política, da luta de classes, é um momento do que ele chama de “Estado ampliado”. O Estado não necessariamente é o mal. Se o Estado for conquistado pelas forças progressistas, ele se torna progressista. E, mesmo que ainda sob controle da classe dominante, é possível introduzir mudanças importantes no Estado, que não é instrumento direto de uma classe, mas resultado da correlação de forças, ainda que com predomínio de uma classe.

Essa leitura equivocada de Gramsci foi um prato feito para o neoliberalismo e explica a passagem de muitos supostos “gramscianos” dos anos 70 para posições cada vez mais liberais. Sociedade civil passa cada vez mais a se identificar com o mercado. O neoliberalismo alimenta esta idéia de que “temos de criar um terceiro setor”, como se a sociedade civil fosse alguma coisa situada para além do Estado e do mercado. Não é. Sociedade civil é Estado, é política. O MST, a UDR, a Fiesp, a CUT, tudo isso é sociedade civil. Em Gramsci, a sociedade civil é o espaço mais importante da luta de classe. A sociedade civil não é o reino do bem e o Estado não é o reino do mal. Toda essa confusão leva à idéia do Estado mínimo, que no fundo é a posição do liberalismo clássico. Hoje há ONGs de esquerda, mas há também ONGs do capital financeiro!

Outra capitulação importante da esquerda diz respeito à questão do mercado. Evidentemente, socialismo não implica a extinção em três dias do mercado e das suas regras. Mas a lógica do comunismo (e eu cada vez mais, para evitar confusões, prefiro me dizer comunista e não apenas socialista) é a da superação do mercado. O objetivo do socialismo e do comunismo é que os homens controlem os processos de reprodução da própria vida, e o mercado é um terreno por natureza incontrolável. A idéia do planejamento é inteiramente válida e atualíssima. É impossível reconstruir o projeto socialista sem que se recupere a idéia do planejamento. Não se trata, certamente, do planejamento burocrático que existiu na URSS e nos países do chamado “socialismo real”. Devemos lutar por um planejamento efetivamente democrático.

Há algo anacrônico na perspectiva expressa no Manifesto Comunista?
Há duas coisas: as teorias do Estado e da revolução. A teoria do Estado como simplesmente o comitê executivo da burguesia, que se vale apenas da opressão como recurso de poder; e a idéia da revolução como uma guerra civil oculta que explode violentamente. Em 1848, a maior parte da Europa ainda estava sob o absolutismo; e, onde havia liberalismo, havia voto censitário, ou seja, os parlamentos eram eleitos apenas pelos proprietários. Era então correto dizer que o Estado não passava de um comitê executivo da burguesia. Mas, já na segunda parte do século XIX, começou a se dar uma socialização da política: o sufrágio tornou-se cada vez mais universal, foram criados partidos políticos de massa, os sindicatos puderam se organizar legalmente. No prefácio que escreveu em 1895 para a reedição de Luta de classes na França de Marx, Engels – no ano de sua morte – já revela ter se dado conta desta socialização da política e, portanto, da necessidade de rever os conceitos que ele e Marx haviam formulado por volta de 1848.

Mas foi Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, quem efetivamente elevou a conceito esta nova constelação histórica. Gramsci chama de “sociedade civil” as organizações que resultam desta socialização da política: sindicatos, partidos, associações em geral etc. E, em função disso, reelaborou a teoria marxista do Estado. Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. Ela é marxista porque continua dizendo que o Estado é, em última instância, ainda que não mais em primeira, um Estado de classe. Mas o modo pelo qual ele hoje é um Estado de classe é diferente. O Estado se tornou um Estado ampliado: é obrigado a levar em conta, enquanto momento da constituição das relações de poder na sociedade, os organismos da sociedade civil. A forma pela qual o Estado opera hoje não é mais só por meio da violência, mas também da persuasão e do consenso.

Uma parte da sua reflexão é sobre a cultura como componente da hegemonia e da construção da contra-hegemonia. Como pensar a cultura como elemento de resistência?
A noção gramsciana de hegemonia distingue-se da noção de Lenin. Enquanto para Lenin a hegemonia do proletariado sobre os camponeses se dá a partir de uma proposta política, em Gramsci a hegemonia está claramente ligada à cultura. Uma classe obtém hegemonia na medida em que sua cultura e seus valores tornam-se de um conjunto de pessoas, uma cultura nacional-popular, que engloba o povo no conjunto da Nação e o pensa como momento constitutivo da mesma. E Gramsci sempre pensou a Nação como momento de um contexto internacional e, portanto, a partir de uma visão universalista. A cultura, portanto, é um momento constitutivo das relações de hegemonia.

Vejamos o caso da cultura hoje hegemônica, a do neoliberalismo. Ela se beneficia da difusão mundial do american way of life, ou seja, de uma cultura de tipo consumista e individualista. Devemos, contra essa hegemonia neoliberal, valorizar a cultura nacional-popular. Defender uma cultura popular autêntica, não uma cultura de massa, degradada, que é a do imperialismo. Isso também é fundamental para que um novo internacionalismo não seja hierárquico, baseado na predominância do centro sobre a periferia, mas sim fundado na diversidade cultural. Nós, brasileiros, temos uma contribuição a dar à cultura universal. Criamos essa coisa maravilhosa que é a música popular brasileira, que faz parte da resistência a essa americanização do mundo.

Como você avalia a discussão sobre o multiculturalismo?
Boa parte da esquerda norte-americana é hoje pós-moderna, enfatizando o fim das grandes narrativas e a defesa da diferença e das identidades. O multiculturalismo – que lá nos EUA é visto como uma posição de esquerda – contém, porém, o perigo da fragmentação da oposição ao capitalismo e de sua redução a algo muito setorial, pouco capaz de universalização. Ora, a grande política – aquela que se propõe discutir os fundamentos da ordem social – ou é universal ou deixa de ser grande. Essa universalidade é o que Gramsci chamava de hegemonia. Mais precisamente: ou se propõe um projeto que modifique o conjunto da sociedade (e, nessa medida, promova os direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais, de todas as minorias) ou os movimentos particulares de tais minorias terminam sendo facilmente absorvidos pela ordem existente. O multiculturalismo me parece implicar a renúncia a esta idéia básica da universalidade da cultura. Valoriza apenas a diversidade. Mas se a universalidade da cultura não anula a diversidade tampouco pode se limitar apenas a ela.

Pelo que sei, quem primeiro falou em literatura universal foi Goethe. Marx e Engels retomaram esta idéia no Manifesto Comunista. Isso queria dizer o seguinte: um escritor francês ou brasileiro, por exemplo, ao escrever um romance, embora esteja vinculado à sua nação e seus problemas, ao mesmo tempo – se for efetivamente um grande escritor – está criando um produto que pode ser vivenciado pelos leitores de todo o mundo como se fizesse parte da vida e da tradição cultural deles. Machado de Assis disse algo parecido em seu ensaio sobre o Instinto de nacionalidade.

A valorização de uma cultura universal – que, para ser efetivamente universal, não pode anular as diversidades – é um momento fundamental da construção de uma hegemonia alternativa à ordem existente. E, nessa medida, tem uma dimensão política clara. A cultura não se reduz à política. Seria um equívoco imaginar que a cultura é mero instrumento da ação política. Mas não há uma política universal que não mobilize valores culturais. A cultura é um momento fundamental da grande política, entendida no sentido gramsciano. A pequena política, certamente, opera sem cultura, até contra a cultura. Mas a grande política, aquela que visa a construir relações de hegemonia, mobiliza elementos culturais. E a defesa da cultura, de uma cultura autenticamente universalista, é um momento fundamental da grande política e desse novo interna­cionalismo que queremos construir.

A exportação do american way of life, do lixo da indústria cultural, é um elemento que pesa na dominação...
A exportação do lixo cultural é também um elemento econômico. Essa indústria cultural mobiliza bilhões e é equivalente à exportação de qualquer mercadoria. O pior é que não é só uma mercadoria, mas uma mercadoria em que está embutida uma ideologia. Uma correta política cultural tem de se opor claramente a isso.

Os meios de comunicação são um poderoso instrumento de difusão cultural. Adorno e Horkheimer pensavam que o próprio meio é viciado. Adorno dizia ser um absurdo que se ouça a Nona Sinfonia de Beethoven numa rádio e que, no meio da sinfonia, haja a propaganda de um dentifrício. Mas Adorno exagera. É melhor você ouvir a Nona numa rádio, se não puder ir a uma sala de concerto, do que não ouvi-la nunca. Os meios de comunicação, decerto, não são inteiramente neutros. Entre assistir a uma peça teatral num teatro e assistir à sua reprodução na televisão, há perdas. Mas os meios de comunicação, se democraticamente controlados, podem servir à difusão da grande cultura. Quanto a isso, prefiro Walter Benjamin a Adorno.

Você disse que considera o mundo do trabalho como centro das transformações. Como você vê o papel de outros movimentos sociais?
A proposta neoliberal é transformar os trabalhadores em consumidores e, no máximo, em reivindicadores de interesses particulares. O neoliberalismo não se propõe ainda, explicitamente, a proibir os sindicatos, por exemplo. Mas tende a admiti-los somente quando lutam apenas por interesses econômico-corporativos. Ou reduzir a idéia de cidadania a direitos individuais, sobretudo concentrados no direito ao consumo, à fruição da própria vida. É o oposto de uma concepção democrática, que vê o cidadão como participante da Nação.

Embora eu continue a considerar o mundo do trabalho como o centro de uma proposta de transformação da socie­dade, há outros atores políticos importantes que deverão participar deste movimento de transformação. Há movimentos importantes que, dentro de uma estratégia universalista, farão parte desse novo sujeito revolucionário: os movimentos feminista, dos homossexuais, das minorias raciais etc., que não necessariamente têm um corte de classe mas que, para terem plenamente realizadas as suas reivindicações, precisam de uma nova ordem social. Devem articular suas demandas particulares com as universais do socialismo e da transformação social.

Essa mediação entre as várias dimensões do mundo do trabalho e os diferentes setores so­ciais que podem constituir um novo bloco histórico remete para a discussão da forma partido e a efetividade de sua ação. Como você vê isso?
Continuo sendo um defensor da forma partido. Não acho que os partidos devam ser substituídos pelos movimentos sociais. Na teoria do partido de Lenin existem várias coisas anacrônicas, mas há um núcleo de verdade: o partido encarna o interesse universal da classe social. Ele é a forma institucional que permite a passagem do particular para o universal, para o que ele chamou de consciência política em contraste com consciência apenas sindicalista. Por meio desta consciência sindicalista, que é particularista, o trabalhador percebe que tem interesses contraditórios com os do capital, mas luta por tais interesses dentro da própria ordem: luta por aumentos de salário, mas não pelo fim do próprio salariato. O partido pode e deve pôr em discussão a própria ordem so­cial. Gramsci chamou de “catarse” essa passagem do momento econômico-corporativo para o momento ético-político, ou seja, do particular para o universal. A forma partido continua sendo fundamental para operar a “catarse”.

Uma outra questão é saber que forma o partido deve assumir. A fórmula criada pela Terceira Internacional – a idéia de um partido rigidamente centralizado e disciplinado – está superada. Um partido revolucionário hoje deve ser mais aberto, plural e flexível. O PT inventou uma forma partido interessante, com suas tendências e razoável unidade de ação. Por mais que seja da esquerda ou da direita do PT, você é do PT. Existe um arco amplo, mas há uma unidade política. E, de resto, não se trata mais de supor a idéia de um partido único no socialismo e mesmo na representação do mundo do trabalho.

Mas, se os partidos não cumprem sua função de agentes da grande política, isso cria uma frustração em setores da sociedade. Estamos vendo isso no mundo todo. Não me parece que seja um problema dos movimentos sociais extrapolarem o seu papel, mas sim da incapacidade dos partidos cumprirem o seu papel político.
Gramsci é muito claro na definição de partido: uma função necessária da luta social, a instância que transfere o particular para o universal. O movimento social tende a realizá-la quando algo que tem o nome de partido não desempenha essa função. Gramsci dizia: intelectuais funcionam como partido; um jornal pode funcionar como partido; um grupo guerrilheiro pode funcionar como partido. Num momento em que há uma crise da forma partido é não só possível como, às vezes, é necessário que movimentos sociais que tinham uma dimensão particular funcionem como partido.

Se o PT não cumprisse a sua função de universalizar as demandas dos vários segmentos sociais e se tornasse um instrumento corporativo apenas do sindicato de metalúrgicos – estou só dando um exemplo –, um movimento poderia aparecer e até atuar como um partido. Mas na medida em que o PT cumpre essa função universalizadora, nenhum movimento social particular vai ocupar esse espaço. Cumpre ao PT evitar que isso aconteça.

Como esta crise da representação se insere na discussão da democracia?
Em 1979 publiquei um artigo, A de­mocracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como o caminho do socialismo. Nunca separei democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.

Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título “A democratização como valor universal”. O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente, propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o chamado “socialismo real” não fez. E por isso, aliás, fracassou.

Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente no pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas, você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso não tem nada a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente de massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.

Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política. Lenin dizia que o capitalismo cria condições para que todos exerçam o poder, mas efetivamente impede que isso aconteça. Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.

Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento do consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está coerção devemos colocar cada vez mais consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes.

O que, da herança liberal, devemos recolher?
O liberalismo surge como uma clara posição de limitação do poder do Estado. Em seu início, tinha como inimigo o Estado absolutista. Locke diz que nascemos com direitos naturais, à vida, à liberdade e à propriedade, sobretudo à propriedade, e esses direitos são inalienáveis, o Estado não pode interferir neles. Já a democracia moderna surge com a idéia da distribuição e não da limitação do poder. Rousseau diz que somos livres quando obedecemos à lei que nós mesmos criamos como membros da comunidade.

Os regimes liberais originários fundavam-se nessa idéia da liberdade do indivíduo em relação ao Estado e muito pouco na idéia da participação que era restritíssima. Com base no princípio do voto censitário, só votava quem pagava imposto e tinha propriedade. Excluía-se do eleitorado a maioria esmagadora. Kant, um brilhante pensador liberal, dizia que não podiam votar as mulheres, porque não tinham independência de juízo, dependiam do marido ou do pai. E nem os trabalhadores assalariados, porque dependiam do patrão. A partir de um certo momento, os regimes liberais, pela pressão das massas, começam a incorporar elementos de democracia. O sufrágio universal é um princípio democrático, não liberal. A liberdade de organização, por exemplo, foi proibida nos regimes liberais. A Revolução Francesa proibiu os sindicatos, que só se tornaram legais na França depois da Comuna de Paris. Partidos políticos são também conquistas da classe trabalhadora, que começou a organizar partidos de massa, ligados a movimentos sociais. Podemos hoje falar de uma institucionalidade liberal-democrática, no sentido de que os velhos princípios do liberalismo foram enriquecidos com esses institutos democráticos.

Devemos herdar do liberalismo a divisão entre público e privado. No socia­lismo, mesmo com um poder já inteiramente democratizado, deve haver uma limitação do poder da comunidade, que deve respeitar os limites da autonomia individual naquilo que não disser respeito ao interesse comum. Deve existir um espaço privado que o coletivo não poderá violar. Devemos herdar também o princípio da rotatividade no poder: o socialismo, tal como eu o imagino, deverá ter eleições periódicas e, portanto, poderá mudar o grupo político que exerce o poder. Deverá também recolher o princípio da tolerância, mas com a convicção de que não podemos tolerar o intolerante, de que há idéias que violam a própria idéia da tolerância. Se o sujeito é racista e quer matar todos os negros, não pode ser tolerado.

Sempre digo, um pouco para chocar meus alunos, que sou a favor do direito de propriedade, um direito liberal, mas que tem de ser universal. O liberalismo diz que no fundo todos são proprietários, a maioria apenas de sua força de trabalho, de seu corpo (as mulheres nem tanto...). Então, vamos dizer que somos a favor do direito de propriedade. No Manifesto, Marx ironiza, “nos acusam de violar o direito de propriedade. Mas vocês é que eliminaram este direito. Só um décimo da sociedade é pro­prie­­tária”. Para ser um direito universal, de todos, a propriedade tem de ser socializada. O socialismo pode, até nesse sentido, reivindicar um velho valor liberal.

Não devemos defender a democracia como valor universal como uma fusão de socialismo com liberalismo. Temos, sim, que restabelecer a dimensão verdadeiramente democrática do socia­lismo, conscientes de que isso implica o resgate de alguns valores liberais. Mas não é uma junção bobbiana de liberalismo e socialismo. Aliás, Bobbio tem 98% de liberalismo e 2% de socialismo. Quando escrevi o artigo, em 1979, tinha a clara intenção de dizer que sem democracia não há socialismo. Hoje, dado o tipo de combate ideológico que estamos travando, é necessário sublinhar que sem socialismo não há plena democracia. É preciso combater não só os que negam a democracia no socialismo, mas também aqueles que, em nome da democracia, abandonam o socialismo – infelizmente, uma tendência hoje muito presente no interior do PT.

Se defino democracia como socialização do poder, ela implica participação. A idéia do orçamento participativo é muito importante. Não sei até que ponto, efetivamente, ela implica ampla participação. Mas que haja uma discussão com a sociedade do orçamento é uma idéia profundamente democrática, da tradição rousseauniana. O que é a democracia, para Rousseau? É a participação de todos, o que ele chamou de soberania popular, uma democracia direta. Para ele, a soberania não pode ser representada, pode ser apenas delegada. Dada a complexidade do mundo moderno, é impossível não haver representação. Mas, democracia efetiva implicará um controle da representação. Ou seja, a combinação de democracia representativa com elementos de democracia direta. O orçamento participativo não cancela o papel da Câmara de Vereadores, mas articula o papel dos representantes com uma participação mais direta da população.

É claro que o papel dos representantes se reduz se a participação direta aumenta, mas isso é bom. A participação direta ou condiciona a ação dos representantes ou os constrange politicamente. O impeachment de Collor foi obtido por meio da pressão popular sobre os representantes; sem isso eles não o teriam votado. Pietro Ingrao, um dirigente comunista italiano muito inspirado por Gramsci, sempre insistia em que a democracia de massa era uma integração de democracia representativa com a direta.

Como você decidiu entrar no PT?
Depois que saí em 1982 do PCB, no qual militei por mais de 20 anos, fiquei sem partido por algum tempo. Não gostei disso, perdi a capacidade de fazer análises de conjuntura... Decidi entrar no PT em 1987, mas Leandro Konder e Milton Temer, queridos amigos, me pediram para esperar um pouco para entrarmos juntos. Eles ainda não estavam plenamente convencidos. Votei em Gabeira, em 1986. Foi a primeira vez que votei no PT. E desde então comecei a namorar o PT, mesmo achando-o ainda sectário. Meu espírito “aliancista”, que vinha do PCB, de certo modo se manteve, mas achei que era importante entrar no PT para travar uma luta interna, o que fiz em 1989. Queria ser o chato democrático dentro do PT, queria levar para o partido a discussão que eu havia proposto em meu ensaio A democracia como valor universal. Uma coisa curiosa: quando entrei no PT, acho que a maioria do partido me considerava de direita, um reformista com ilusões democráticas. Apanhei muito nos debates que fiz com as diferentes correntes internas. Hoje, certamente, me identifico com a esquerda do partido. E tenho quase certeza de que não fui eu quem mudou. O que me fascinou no PT é que ele me parecia uma bela invenção política, muito diferente do PCB do qual estava saindo: era um partido com tendências e correntes, extremamente ligado ao movimento social, com uma clara vocação a se tornar um partido de massa.

O PT mudou muito desde que nele ingressei. Mudou para melhor em muitas coisas, para pior em outras. Estou muito preocupado com algumas tendências mais recentes, não simplesmente do PT, mas da esquerda mundial em geral, de ir para o centro e não se diferenciar suficientemente de outras forças políticas. Disso resulta, entre outras coisas, uma perda da dialética entre movimento e instituição, com o partido se concentrando apenas na luta institucional, eleitoral. Mas isso não é simplesmente uma opção do partido; resulta também do fato que o movimento so­cial se esvaziou no Brasil. Se houvesse um fervilhar de movimentos sociais, o PT teria que ter uma interlocução com eles. E, como não há, salvo o MST, a tendência normal é que o partido concentre-se na atuação institucional.

O PT não só se identifica como é identificado como um partido de esquerda, até mesmo como um partido socialista, embora ache que a questão do socia­lismo foi sempre mal resolvida por nós. Um momento de maior amadurecimento dessa discussão foi o texto Socialismo petista, aprovado em 1990, que o PT deveria continuar tendo como norte.

Cabe ressaltar que o PT foi o único partido de esquerda no mundo que cresceu ao longo dessas duas décadas de intensas dificuldades para os socialistas. E gosto muito do PT por essa coisa boa, que é a possibilidade de travar uma saudável batalha de idéias, de ser minoria sem medo de ser excluído. Espero que essa tolerância com a pluralidade interna continue a nortear a ação do partido.

Emiliano José e José Corrêa Leite são membros do Conselho de Redação de Teoria e Debate