Cultura

Esses tais de "reality shows" nos engabelam com ilusões bestificantes: a de que mostram qualquer coisa que se preste ao show e ao consumo de massa pode ser chamada de intimidade

Escrevo quando já não suporto ver nada de reality show na televisão – e olhe que eu tenho uma paciência e uma receptividade de antena parabólica quando o assunto é televisão. No princípio era suportável. Tivemos a primeira fornada de Casa dos Artistas, no SBT, com aquele “elenco” de primeira (era pavoroso, mas hoje nos parece de primeira quando o comparamos com o que veio depois). Tinha o Frota, a Bárbara e o Supla, isso sim era elenco, isso sim é que era alto nível, teve até direito à prefeita Marta Suplicy e ao senador Eduardo Suplicy ao vivo, na noite de encerramento. Depois, tudo o que se seguiu foi saturação. Hoje devemos ter aí algo como uns 4.526 programas autoproclamados reality shows em todos os canais. Só nos canais abertos, suponho que exista uma população de 14 ou 15 milhões voluntários confinados nesse tipo de atração. Na Globo, além do Big Brother, temos aquela ilha de caras com adolescentes que ficam se namorando entre si, programa apresentado aos sábados por Luciano Huck, além de um outro, o Hipertensão, em que os candidatos mastigam baratas e pulam de penhascos logo após o Fantástico. João Kléber, na Rede TV!, também abriu sua quitanda. Leva atores em acelerado processo de anonimatização a provas de resistência, como ficar trancado em um caixão dentro de um cemitério. Há muitos mais e eu já suportei o que precisava suportar. Não sou mais capaz de ver.

Até o Sérgio Mallandro, o trash do trash, da TV Gazeta, em São Paulo, até ele tem agora um reality show, que é a Casa dos Desesperados. Vai ao ar nos sábados à noite, lá pelas onze. Um sósia do Tim Maia sem expressão, um anão sem superego, um travesti sem maquia­gem, um obeso sem camisa e outros tipos sem educação disputam para ver qual deles é capaz da performance mais enojante. O páreo é gosmento. Todos amontoados numa casa alugada. O programa é um lixão reverberante. Acredito que, ao pôr na TV o que os mais abjetos ativistas do cinema da boca do lixo tinham vergonha de pôr nas telas de cinema, e isso em filmes para maiores de 18 anos, e isso no tempo em que o cinema não tinha um tostão de orçamento, acredito que ao ultrapassar todos os limites da decência e da indecência, esse Mallandro revelou a podridão não só de suas instâncias morais, mas também de todos os reality shows que estão no ar. Isso porque, ao ver a Casa dos Desesperados, o telespectador é estapeado pelo grotesco e, ao ser assim estapeado pelo grotesco, é assaltado pelo fato cru de que todo reality show, e não só aquele, vive disso mesmo, de escancarar o que há de (supostamente) mais podre no humano para disso extrair audiência. A Casa dos Desesperados faz isso sem nenhum disfarce. E mais. Por sua precarie­dade, por sua pobreza de produção e por sua falta de critérios e de princí­pios, acaba descortinando sem querer o que os outros fazem tudo para esconder. Enquanto os outros produzem cená­rios supostamente glamourosos, este Casa dos Desesperados vira o cenário do avesso. Aparece ali, então, o mendigo pedindo os restos do almoço, aparece um tipo que bem poderia ser um subempregado dos reality shows milionários, aparece o que se esconde por trás da porta de serviço, enfim, não só desse novo gênero de entretenimento, como de toda a televisão no Brasil. A Casa dos Desesperados é assim uma revelação dos desesperados. Uma síntese do que é o reality show.

O ciclo do gênero é esse: vai do impacto inicial de um bestialógico intimista (no Brasil representado pelo Casa dos Artistas 1) à banalização do banal, ao sucateamento da sucata, à putrefação do putrefato (vide Casa dos Desesperados). Em questão de pouco tempo, ninguém mais vai ligar para reality shows. Os índices de audiência, que atingiram marcas obscenas quando, no final de 2001, o SBT apareceu aí com Casa dos Artistas, batendo o Fantástico (que pela primeira vez na história perdeu a liderança do horário), e subiram ainda mais quando a Globo contra-atacou com Big Brother (na final do programa, que foi ao ar logo após a novela O Clone, no dia 2 de abril de 2002, uma terça-feira, atingiu picos de 64 pontos no Ibope, ficando bem acima da novela), agora começam a arrefecer. Ainda são índices, digamos, robustos, mas já declinaram bem e declinarão mais ainda. A Casa dos Artistas 2 conseguia se segurar perto dos 20 pontos, um pouco abaixo. Ibope alto é sinal de qualidade? Claro que não. Mas dá carta branca a todo tipo de zebrice na televisão. Agora, porém, o que o declínio revela é que até mesmo a exacerbação do quanto-pior-melhor, que parece ser a fórmula da TV contemporânea (quanto pior o nível ético e estético, melhor a audiência), até mesmo isso tem limite.

A bem da verdade, que fique claro: Casa dos Artistas 1 já era uma excrescência, um rebaixamento aviltante, mas tinha ali um apelo de aparente novidade. Agora, só resta a repetição da fórmula com acréscimos de dose (mais nudez, mais palavrões, mais desaforos). E não funciona. O blefe do reality show é autodestrutivo. Ele atrai o público que depois cuida de expulsá-lo. Ele promete mostrar essa coisa que só pode ser dita numa frase horripilante, ele promete (com todas as aspas necessárias) ““““mostrar o que as pessoas têm por dentro”””” e depois frustra porque, bem, digamos, porque dentro das pessoas não há nada. Ou, pelo menos, nada de novo. Muito menos de velho.

Por aí pode-se começar a discutir o vazio intenso desses reality shows (e a contradição entre os termos “vazio” e “intenso” é uma contradição proposital). Estamos diante de um fenômeno que marca mais um degrau no aparente aproveitamento de aspectos privados e mesmo íntimos na confecção do espetáculo público. Digo aparente aproveitamento porque aí mesmo, nesse aparente aproveitamento, já há mistificação: o íntimo, aí, é um íntimo forjado para o “show”, ele já nasce como falsificação do íntimo. Trata-se de um íntimo um tanto prêt-à-porter, um íntimo que já vem pronto de fábrica, um íntimo que corresponde exatamente ao texto que o espetáculo espera daquele tal íntimo. Eu vou explicar melhor. O que eu digo é que existe um alto grau de adestramento do público em relação aos padrões postos pela indústria do entretenimento. Esse adestramento é o que permite a aproximação dos adolescentes enamorados e, em escala massificada, permite mesmo os rituais de acasalamento. Todos. As falas de cada um já vêm formatadas do espetáculo e, nos diálogos mais pes­soais, se reproduzem como senhas. O discurso amoroso, que já foi dado a refinamentos relativamente emancipadores, é hoje uma espécie de fast food do coração. Tome-se a frase típica: “Ai, meu amor, eu nunca senti isso antes”. Ou outra: “Nossa, parece que te conheço há tanto tempo...” Há uma colonização dos termos pelos quais se tece a vidinha íntima de cada um. Na intimidade, encadeiam-se frases gastas da indústria do entretenimento – que prefiro chamar de superindústria do imaginário e que outros chamam de espetáculo, mas aqui tanto faz. Essa superindústria fabrica signos em massa e são eles, retrabalhados, que cimentam uns corpos aos outros nos instantes em que os psiquismos incrustados a esses corpos acreditam viver um encontro amoroso. O texto que se colhe nas intimidades não é mais um texto vindo da cultura, ou mesmo de uma língua trabalhada em laços sociais que se encontram a salvo da economia – é um texto fabricado na superindústria. A superindústria do imaginário privatizou e industrializou o que, em outros tempos, pertencia à esfera da arte, da espiritualidade, da cultura em sentido amplo. Hoje, não. Hoje, as pobres pessoas namoram como garotos que trocam figurinhas do álbum da Copa do Mundo no recreio da escola. Trocam entre si alguns signos superindustrializados.

Esse adestramento da massa produz a indistinção entre os mortais, na outra mão, alimenta-se das diferenciações. Virtualmente, todos os signos são passíveis de serem absorvidos e reconfeccionados pela superindústria do imaginário, que também gera novas formas de signos, o que faz com que a possibilidade virtual dos repertórios íntimos individualizados também aumente. Com um detalhe: se essa possibilidade pudesse se traduzir no plano dos fatos, se verdadeiramente os sujeitos se libertassem dela para suas representações e suas narrativas mais íntimas, a superindústria ruiria enquanto tal. Ela só sobrevive na medida que se substitui à própria cultura como um todo. Não vou aqui me ocupar dessa tensão; vou apenas enfatizar que a superindústria tende a produzir um fetiche em torno da individualização do discurso íntimo. É disso que se trata. É isso que está na base do apelo dos reality shows – e não, como alguns crêem, um voyeurismo a-histórico. Ocorre que, ao ser excessivamente explorado, esse fetiche se autodestrói. O fetiche em torno do discurso íntimo se alimenta da promessa não da individualidade, mas do individualismo, e no entanto não entrega o que promete. Por isso é uma promessa que não se sustenta quando excessivamente explorada.

Um reality show faz isso: promete mostrar o que – lamento ter de repetir a lúgubre locução – “as pessoas têm por dentro” e, não obstante, nada há dentro das pessoas que seja capaz de revelar o sentido da vida ao telespectador perdido. Só o que há “dentro das pessoas” que se voluntariaram a ser humilhadas no tal reality show são esses detritos abandonados no acostamento da superindústria do imaginário. As noções que esses voluntários verbalizam de bem e de mal, de verdade e de mentira, do que é uma competição ou do que seja solidariedade são noções tristemente industrializadas e desnaturadas. Não só isso. O modo como cada um dos participantes do circo-açougue administra esses precários estereótipos que carregam é um modo também adestrado, um modo que tem por fim a sensibilização da platéia, sempre posta e sempre a postos. No reality show as pessoas encenam ser o que são, atuam, representam a si mesmas – posto que sendo elas mesmas estão sempre representando a fala que lhes vem do entretenimento. Note o leitor que, mesmo nas relações íntimas de cada um, dentro ou fora do reality show, de cada um qualquer, no dia-a-dia, note o leitor que em toda cena íntima de uma intimidade supostamente autêntica a platéia é pressuposta. Até aí, o olhar é um tirano sempre presente: uma mulher que vasculha suas rugas diante do espelho está na verdade se mirando, remotamente, a partir de um olhar anônimo que a espreita, de longe; alguém que chora no velório do filho está chorando para uma platéia pressuposta; a adolescente que se masturba encontra seu prazer na linguagem de sua historinha inconfessável mas sabida de cor. Nos dias que correm, mais que antes, muito mais, viver é representar. Viver é mostrar-se para a platéia pressuposta. No reality show o que se vê é a precipitação da presença dessa platéia. Ali, a platéia sempre pressuposta está de fato posta. Nisso estaria o êxtase do público mas, na verdade, é nisso que está sua tragédia. Pois ali a “vida interior” de cada um, ao mostrar-se nula, acaba se mostrando um deserto salpicado de pequenas misérias, sem pejo e sem perdão. O que o reality show acaba mostrando, portanto, sem querer, é que a “vida interior” de cada um é feita de uns cacos mal digeridos dos melodramas superindustrializados.

Por isso, aliás, há mais narrativa, mais sentido e mais “emoção” no texto da novela das oito do que nos textos ressequidos dos reality shows. Por isso, a teledramaturgia sobreviverá com folga ao rea­lity show, como sobrevive em todos os países. O elemento de reality show, o apelo dessa verdade factual-carnal, a morte real, o pranto autêntico, a história verdadeira, tudo isso são componentes perversos das narrativas ficcionais, componentes cada vez mais requisitados porque cada vez mais fetichizados, mas nunca serão capazes de substituí-la. A crise do telespectador, isto é, a crise que faz do telespectador um telespectador é o desejo das narrativas. Os reality shows podem lhe dar bumbuns e grunhidos animalescos, em doses maiores e depois maiores ainda, mas não lhe fornecem uma narrativa mínima (apenas um arremedo de narrativa carcomida). Por isso, os reality shows vão virando pó a partir de seu fetiche inicial. Com a agravante de que a intimidade que eles mostram não é intimidade, mas uma sucata retrabalhada, ou melhor, regurgitada, lançada de volta no espetáculo – e aí já devidamente empobrecida, feito bagaço. Depois, no reality show, essa intimidade regurgitada reaparece descosturada, sem enredo. Ela serve para expor o corpo, para expor o ato, para expor o impulso, mas não serve para explicar (e tornar mais suportável) a miséria afetiva de ninguém, coisa que as telenovelas e as reli­giões eletrônicas fazem muito bem, ou melhor, fazem menos mal (essa função nada nem ninguém é capaz de realizar por inteiro).

A Bárbara Paz, por exemplo, chorando aos litros quando foi escolhida a ganhadora da primeira edição de Casa dos Artistas. Confesso que, vendo aquela cena desamparada, eu mesmo quase chorei. Eu mesmo ou o desterrado sujeito-telespectador que em mim habita. Mas aquele choro, que é o choro do gozo da repetição do sentido, o gozo de reconhecer e ser reconhecido na linguagem, aquilo eu já vejo desde os concursos de miss e desde as crianças que enxergam uma imagem de santa onde todos os outros só divisam o invisível. Então isso é que é um show de realidade? Aliás, que show é esse? E por fim: a realidade existe? Ou é, ela mesma, apenas mais uma categoria do imaginário superindustrializado, ela mesma uma “realidade”, com aspas, discursiva e cada vez mais espetacularizada? Em escala mais ampla, pense que as eleições, agora, cujo enredo foi usurpado pelos publicitários e pelos ângulos piegas do telejornalismo, evoluem como um grande reality show. Ou, mais exatamente, cada vez há mais de reality show nas eleições assim como há mais apelos de realidade nas novelas assim como há mais publicidade na política e menos política em todo o resto. Pense nisso e será mais fácil (e mais penoso) de entender. Você chorou vendo a propaganda do PT? E achou que esse choro era diferente daquele de Bárbara Paz?

Eugênio Bucci é jornalista, integra o Conselho Editorial da Editora Fundação Perseu Abramo