Nacional

Personagens como ACM e Gilberto Mestrinho são criações da ditadura e da inversão de relações entre poder central e poderes locais. Muitas vezes dão a impressão de figuras com força local, mas freqüentemente não sobrevivem à perda da intermediação de poder nomear cargos e funções do governo central em suas províncias

Os ventos das eleições gerais de 2002 parecem ter varrido, pelo menos da cena política, algumas velhas e novas oligarquias e umas quantas sinistras personalidades em si mesmas “oligárquicas” – o que é uma contradição em termos. Será que uma eleição tem esse poder? Podemos esperar não voltar a ver os controladores de pequenas ou vastas regiões e essas caras medonhas na política ostensiva, e no controle de bastidores do acesso a bens públicos e recursos estatais, velhas e novas raposas do patrimonialismo brasileiro?

O poder local na Colônia

Os clássicos do pensamento social brasileiro situam no controle oligárquico a fonte básica da anticidadania, no sentido preciso de cortar as vias de acesso à política e à formação de uma esfera pública democrática. É bastante claro que a matriz primeira da anticidadania foi o trabalho escravo, mas é interessante pensar a especificidade das formas do poder local no Brasil, porque o escravismo, tanto o antigo quanto o novo, em várias situações históricas, deixaram brechas por onde passaram os ventos citoyens e democráticos, como é o caso da Grécia clássica e dos Estados Unidos no nosso tempo. Nunca é demais repetir que no último exemplo foi necessária uma guerra civil para destruir o sistema patriarcalista do sul norte-americano, e que as marcas antidemocráticas tiveram vigência até o movimento dos direitos civis para os negros ainda nos anos 60 do século XX.

Todos os grandes pensadores brasileiros deram notável relevo à formação oligárquica. Uns, que podemos dizer à esquerda, como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Raymundo Faoro; outros, que podemos dizer à direita, como Oliveira Vianna e Alberto Torres, e um outro, gigante solitário, no meio, como Gilberto Freyre1. Para os de “esquerda”, o poder oligárquico frustrava exatamente a via democrática pelo exclusivismo patrimonialista anticidadão; para os de “direita” os poderes oligárquicos eram fonte de desagregação política e de fraqueza do Estado; para Freyre, o senhor de engenho patriarcal era o Juno da “dominação doce”. Faoro em seu clássico Os Donos do Poder talvez tenha sido o mais específico e o mais incisivo no tratamento do poder oligárquico.

A fonte maior da formação oligárquica constituiu-se na propriedade da terra, mais que na propriedade dos escravos; daí, talvez, uma das diferenças com o caso norte-americano. A proprie­dade da terra nunca foi processada por um mercado, enquanto a propriedade dos escravos era mediada pelo infame “mercado negreiro”: ou em outras palavras, a terra foi, no caso brasileiro, desde sempre um oligopólio, enquanto os escravos estavam abertos à compra e à venda. Como a terra era o que os economistas clássicos chamaram um dos três grandes “fatores de produção”, seu monopólio ou oligopólio dava aos proprietários a possibilidade de controlar os meios e modos pelos quais se produzia e reproduzia a vida cotidiana, além de, pela propriedade de escravos, controlarem a própria vida. E na experiência colonial, que perdurou até nossos dias em muitas re­giões decadentes, como a dos engenhos de açúcar do Nordeste, numa economia pouco monetizada, o controle da terra significava, na prática, o controle total sobre a própria vida de cada grupo social; em outras palavras, o “barracão”; também recentemente a exploração na Amazônia deu lugar a verdadeiro trabalho escravo, mediante o aprisio­namento dos trabalhadores nas redes de dívidas impagáveis.

A associação entre mercado e poder local nos EUA teve o significado que Tocqueville encontrou na “democracia na América”2, enquanto a associação entre um não-mercado e o poder local era a “via oligárquica” na colônia brasileira, assim como, em geral, nas colônias espanholas, com algumas especificidades num e noutro caso. Mas, em ambos, o controle da propriedade da terra produziu poderes locais oligárquicos, antiliberais e antidemocráticos. Vítor Nunes Leal, de “esquerda”, caracterizou desde o título de seu livro, Coronelismo, Enxada e Voto3, esse verdadeiro carrefour de poder na República Velha.

Caio Prado Júnior sinalizou mais: a formação de um poder local, que concentrava o poder econômico, social e político nas mesmas mãos, no sentido oposto ao liberalismo que justamente separou economia e política, foi, até certo ponto, uma estratégia do Estado português, ante a impossibilidade de povoar e governar diretamente um imenso território, que engoliria todos os recursos humanos à disposição da Coroa, que, aliás, ainda não havia alcançado sequer o estágio do absolutismo, com a completa ausência de uma burocracia estatal4. Assim, a delegação de poder aos proprietários rurais transformou-se no método para gerir o imenso território; Freyre diz mesmo que a colonização foi uma empreitada privada, dos donatários e sesmeiros que investiram seus cabedais, inclusive mediante empréstimos. Até a República Velha, por exemplo, ainda existia a figura do coletor das Fazendas federal e estaduais, concedida a um proprietário, que cobrava sua comissão e fazia as vezes de uma inexistente e pouco capilar burocracia estatal.

Assim, a já formidável concentração de poder reforçava-se com o poder fiscal, o que se constituía em um triunfo a mais para o poder oligárquico. O controle político tornava-se quase intransponível. Sabe-se da importância dessa figura na Colônia e depois no Império. É somente com a centralização e a burocratização da era Vargas que esse quadro mudou.

Império unitário, realidade oligárquica; República, federação de oligarquias

O Império não modificou muito a situação herdada da Colônia, exatamente porque o estatuto da propriedade da terra não experimentou mudanças, enquanto o estatuto da força de trabalho foi sendo modificado lentamente pelo abolicionismo gradual e mais fortemente pela introdução do trabalho semi-livre – o colonato – na nova região do café em São Paulo. A rigor, o Império era uma construção de cabeça para baixo: eram as províncias que sustentavam o centro organizador no Rio que exercia, sobretudo, a função de circulação das elites, de equilíbrio entre as várias formações oligárquicas regionais e de defesa externa. Não é que o Estado fosse uma ficção, pois de fato sua organização é precoce e, com a abolição do tráfico e a repressão das revoluções regionais, se afirmou definitivamente5. Mas a idéia que se faz do Império como centro irradiador é falsa, até certo ponto, e o monopólio legal da violência não esteve assegurado bem, entrados os anos 20 do século XX no Nordeste e no Norte, como o mostram as sagas do cangaço e dos bandidos do sertão. A função de equilíbrio entre as várias oligarquias regionais pode ser vista na repressão aos movimentos independentistas regionais, que percorreram o território brasileiro ao longo e ao largo de todas as regiões, até a Revolução Praieira no Nordeste e a Farroupilha no Rio Grande do Sul, que encerraram o longo ciclo. Mesmo as funções de defesa externa, que a Guerra do Paraguai mostrou em grau extremado, faziam-se a partir do apoio oligárquico: não apenas frações do Exército tiveram origem em poderes locais, tanto na via “Osório” quanto na vertente “Caxias”, como o recrutamento dos legendários “Voluntários da Pátria” – na verdade os negros escravos transformados em tropa de combate – dependia dos favores das oligarquias e poderes locais. Mas é matéria de muito interesse ver como a própria tentativa de formação de um Exército profissional, habilitado a travar uma longa guerra já continha elementos de desagregação da velha ordem patrimonial, repetindo o caso clássico da força armada como uma das origens do processo de burocratização – no sentido weberiano6 – do Estado moderno, ao tempo em que o “voluntariado” negro funcionou como alforria.

São Paulo, a zona do capitalismo emergente por excelência, resolveu a seu modo as questões relativas ao estatuto da propriedade fundiária e da força de trabalho, pela criação de um “mercado de terras” que avas­salou o velho patrimonialismo vin­do da Colônia, e pela imigração européia para suprir as novas necessidades de mão-de-obra7. Mas a resolução estanque dessas duas questões manteve intocadas as oligar­quias regionais no resto do país8. A situação transitava da velha dependência do Estado central vis-à-vis os poderes oligárquicos regionais e locais, dada a proeminência agora das finanças dependentes do café, mas ainda a República Velha, caracterizada como “república oligárquica”, sustentou-se num pacto em que o famoso “café-com-leite”, São Paulo-Minas, era a ponta mais saliente e mais beneficiada. É interessante verificar a renovação da classe dominante e dirigente de São Paulo, com os novos barões do café, os Camargos, os Penteados, os Prado, enquanto Minas comparecia ainda com os velhos Andradas, que remontavam à época da Independência. No Nordeste, assinala-se a longevidade das grandes famílias patriarcais, cujos sobrenomes atravessaram séculos desde a grande implantação no século XVI em Pernambuco e nas províncias do seu entorno.

O começo do declínio oligárquico

A Revolução de 30 vira, de vez, a pirâmide das relações entre o poder central e as oligarquias regionais, nos estados e regiões mais circunscritas. O poderoso movimento de centralização, pelo qual destruíram-se os poderes dos estados para legislarem em matéria fiscal e financeira9, de fato criou a virtualidade do mercado nacional de mercadorias e o sistema de transporte mais tarde rompeu tam­­bém os diques que continham as populações excedentes nas regiões de­cadentes. Junto com a legislação do trabalho, o “mercado” de mão-de-obra se estruturou, sob for­tes controles governamentais. O horizonte do cálculo econômico burguês pôde ser delineado10.

O golpe mortal sobre as oligarquias havia sido assestado. A centralização era para valer. A revolução destituiu os antigos governadores, que por sua vez destituíram prefeitos chefes de pequenas e recortadas oligar­quias. Novas “dinastias” foram criadas, a partir dos próprios interventores, que em alguns casos conseguiram manter-se por muitos anos; na maior parte, a nova dinâmica econômica erosionava rapidamente os novos grupos no poder. Mas há casos como o de Adhemar de Barros, justamente no centro motor do desenvolvimento capitalista, em São Paulo, que criou uma corrente tão poderosa que chegou a transformar-se num partido político de certa importância, fazendo o vice-presidente de Vargas em 1950, e cujas características perduraram em alguns herdeiros políticos até nossos dias. Diz-se mesmo que Paulo Maluf é o herdeiro mais acabado do ademarismo como estilo do “rouba mas faz”, embora sua origem política não possa ser entendida como dele tendo surgido.

As antigas oligarquias foram liquidadas pela integração nacional, e ao mesmo tempo os novos grupos que se criaram obedeciam agora a um novo traçado, em que era o centro federal que criava os meios para o surgimento e manutenção dos novos poderes locais. A poderosa centralização de impostos, criados em sua maioria a partir de 1930, invertia a clássica dependência do governo federal para uma dependência dos poderes locais vis-à-vis o governo central via mecanismo das transferências de recursos federais. É isto que criará os novos grupos de poder local, que se redefinem constantemente até nossos dias, dependendo da relação com o poder federal. Na ditadura isto ficou patente, até mesmo com a criação de novos estados. Mesmo hoje, existem estados da federação, e centenas de municípios, que apenas se mantêm devido às transferências de recursos federais.

O regime militar de 64 reforçou em grau extremado a centralização de recursos no poder central e, como em 30, a ditadura destronou chefes estaduais e locais, e colocou em seu lugar novos personagens. O básico, entretanto, foi a dependência, que vinha desde Vargas, reforçada pela industrialização pesada promovida pelos militares. Personagens como Paulo Maluf, Antonio Carelos Magalhães, José Sarney, Gilberto Mestrinho – o “boto tucuxi” de Márcio de Souza – são criações da ditadura e da inversão de relações entre poder central e poderes locais. Muitas vezes dão a impressão de figuras com poder local, capazes de enfrentar os rugidos do leão central, mas freqüentemente se vê que não resistem à perda da intermediação de poder nomear cargos e funções do governo central em suas províncias. Maluf foi beneficiado na época das “vacas gordas” da ditadura militar com a nomeação para a Prefeitura de São Paulo, fazendo obras como o discutível “Minhocão” e logo depois no governo estadual tocando o metrô; ACM pôs-se sob o guarda-chuva da Petrobrás, que levou inúmeras empresas para o pólo petroquímico de Aratu, na Bahia, e Ernesto Geisel, tanto na presidência da Petrobrás quanto na da República, o transformou em seu cônsul; José Sarney beneficiou-se até anteontem da presença da Vale do Rio Doce estatal no Maranhão e Gilberto Mestrinho cevou-se nos favores da Zona Franca de Manaus. Mesmo Jader Barbalho, que emergiu com a redemocratização e com a vitória do PMDB pós-ditadura, criou seu poder ancorado na Sudam com seus prepostos como gerentes e intermediários – gulosos, diga-se – dos recursos dos benefícios fiscais para o desenvolvimento da região amazônica.

O último tipo de quase-oligarquias é o que a lite­ratura política cha­ma, em geral, populista, e a imprensa apelidou de fisio­lógico/clientelística. A denominação populista é imprecisa, pois a rigor o populismo marca mais uma forma da “via passiva” brasileira, pela qual as massas de trabalhadores urbanos foram ao mesmo tempo incorporadas e tuteladas. Vargas foi o populista emblemático, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros, já Garotinho pertence ao tipo fisiológico/clientelístico, cuja marca é a intermediação das novas políticas sociais exigidas pela industrialização/urbanização, mas processadas pelo Estado brasileiro sob o signo do assistencialismo. Mas o próprio crescimento do eleitorado e as mudanças que se processam no Estado e na economia não deixam que o tipo fisiológico se sedimente como oligarquia; vê-se a intensa e acelerada mudança que se dá sob esse aspecto. Praticamente todos os grandes derrotados nas últimas eleições pertencem a este tipo fisiológico/clientelístico, também às vezes chamados “caciques” urbanos.

A rota da derrota oligárquica

Oligarquias são como vampiros: não resistem à luz, à publicidade. A urbanização e a intensa mercantilização das relações sociais nas cidades – e já agora mesmo no campo – constituem-se nos dois meios mais “luminosos” para liquidar vampiros, diga-se, oligarquias. De fato, a vida na cidade não pode ser processada pelo código do barracão, nem os empregos na indústria e nos serviços, pelo seu volume, podem ser processados pelo código do favor. O controle sobre a vida cotidiana dos moradores, base da relação pela qual as oligarquias mediavam o acesso dos cidadãos aos recursos públicos, e mesmo privados, já não pode ser exercitado. Experimentos na fase inicial da industrialização, com a criação das vilas-cidades industriais, foram um “método” para recrutar força de trabalho e mantê-la permanente à disposição. Mas constituíam-se em ersatz de um mercado de trabalho que não existia. Casos conhecidos, como a cidade de Paulista11, nos arredores de Recife, ou as várias vilas no Rio, em São Paulo, em Minas – Juiz de Fora, por exemplo – ou mesmo, até hoje, Votorantim, sede primeira do grupo econômico do mesmo nome, foram sendo varridos pelo fato de que se tornou oneroso operar um “exército de reserva” quando o próprio mercado de trabalho, com seus ciclos de auge e desemprego, faz essa função.

Por outro lado, o intenso crescimento demográfico, decorrência e não causa da industrialização e da urbanização, tornou impossível o controle dos meios de vida, e até mesmo o uso de antigos métodos para controlar o voto: o barracão, a compra de votos pura e simplesmente – esse deputado que vende e compra votos, o dele para a reeleição, o dos eleitores para sua eleição, é, hoje, caso raro –, o par de botinas para ir votar, o caixão de defunto, tornaram-se inacessíveis aos próprios dominantes, pelo enorme custo que representam e pelo fato de que o controle do voto é praticamente impossível na cidade.

De outro lado, estudos políticos mostram como a ampliação do colégio eleitoral no Brasil, tornou-se um decisivo meio de acabar com o controle do voto e com o poder oligárquico. Crescimento demográfico e aumento do colégio eleitoral, por via do voto obrigatório – eis um paradoxo digno de nota – aumentaram o que a ciência política chama de “demanda” dos eleitores, a qual é respondida pelo sistema político-partidário com uma “oferta” igualmente ampliada de partidos e de candidatos, dissolvendo as possibilidades de “currais” eleitorais. Mesmo em regiões tidas como “oligárquicas”, o Nordeste, por exemplo, a “oferta” de candidatos por vaga às assembléias estaduais aumentou: o número médio de candidatos – entre 1945 e 2002 – passou de 1,60 para 9,70 e para a Câmara de Deputados foi de 5,6 para 7,6. Para o Brasil como um todo o número médio para cada vaga nas assembléias legislativas pulou de 1,60 em 1945 para 12,1 em 2002 e para a Câmara de Deputados de 5,90 para 9,20. Mesmo no Sudeste, a região mais populosa e mais desenvolvida, a possibilidade de oligarquias fica sepultada pela elevação da média de candidatos para as assembléias estaduais, que multiplicou-se por quase dez entre 1945 e 2002, indo de 1,60 para 15,3012.

A formação livre de partidos é outro dos mecanismos do sistema político-partidário que ajuda a desbloquear controles muito estratificados; assim, é preciso pensar três vezes antes de adotarem-se “cláusulas de barreira” para evitar a formação de “nanicos” ou partidos de “aluguel”, assim como o fenômeno Enéas da última eleição. É preferível correr o risco de uma superquantidade de partidos, do que bloquear a emergência do novo, como o próprio PT foi a seu tempo. Instituições como a propaganda eleitoral gratuita também ajudaram, com os partidos tendo acesso direto ao eleitor, sem outra mediação que não seja sua própria representatividade. São aquisições e inovações no sistema político que jogam luz sobre o vampirismo oligárquico. O financiamento público das campanhas dos partidos poderá juntar-se a essas inovações, liberando-os, parcialmente, da influência do poder econômico que, se já não funciona na compra de votos, é eficaz ainda ao selecionar os preferidos do “mercado” para receberem doações, numa época em que os custos da propaganda eleitoral, forçados pela mídia eletrônica, sobem astronomicamente.

Mas é uma tendência já assinalada pela sociologia política, desde Weber e Robert Michels13. Não se trata, em chave weberiana, de simples metamorfose degenerativa, embora tais sinais não estejam ausentes: trata-se da divisão social do trabalho, em sua forma técnica, infiltrando-se na formação e estrutura dos partidos. Em outro registro, é a divisão do trabalho entre “intelectual” e “material”. Burocratização entendida como profissionalização e cálculo.

Essa burocratização pode criar a mais perigosa, em tempos modernos, das “oligarquias”: aquelas que controlam o acesso dos cidadãos aos partidos que devem representá-los. A divisão do trabalho cria “dirigentes” e “militantes de base”, versão mais atenuada da “vanguarda” e “base” da tradição de esquerda. Tal cisão existe também nos partidos de direita e centro: trata-se, neste caso, dos “políticos profissionais”. Sendo os partidos uma invenção extraordinária para justamente escapar da personalização da política e das relações pessoais ou da regra do favor, colocando em seu lugar formações que expressam a classe, a etnia, a situação jurídica ou, pura e simplesmente, a laicidade ou a religiosidade de amplos grupos, isto é, clivagens mais universais, todo o cuidado é pouco para evitar-se a transformação dessa extraordinária invenção no seu oposto. Os remédios para tanto têm sido, na maioria dos casos, freqüentemente ineficazes. Ainda que a própria burocracia seja ela também atropelada pela dinâmica social, é preciso cuidado. Não apenas entre os partidos de esquerda existe o risco, como o caso da experiência socialista em vários países, e sobretudo na ex-URSS, segue sendo exemplar; a China continua a ser o caso de uma oligarquia política que controla a cidadania chinesa e os próprios militantes do PC. O PRI no México vale tanto quanto o PC soviético: manteve um estrito controle sobre a política mexicana por 70 anos durante o século XX!

Os remédios vão da criação de associações civis desligadas dos partidos – e o extraordinário crescimento do associativismo civil no Brasil é uma base para tanto, como nos mostrou Leilah Landim14 – assim como dos próprios sindicatos, às proposições de institucionalização de procedimentos de escolha que estejam sujeitos à “luz” da publicidade dos próprios militantes e até de fora da militância, como ocorre nas prévias dos partidos norte-americanos. Embora a experiência norte-americana cada vez autorize menos pensá-la como exemplarmente democrática, não vale “jogar a criança com a água do banho”: o ex-presidente Carter, hoje laureado com o Prêmio Nobel da Paz, é o típico exemplo de uma liderança que se impôs à própria burocracia do Partido Democrata.

Sem dúvida, eleições reiteradas, mecanismos de publicização cada vez mais amplos, trabalhando sobre o terreno criado pela urbanização e pela mercantilização da vida – o que o Evangelho chamaria de “aproveitar as riquezas da iniqüidade” – são os fatores mais importantes para a liquidação das oligarquias que sufocaram a cidadania brasileira, impediram a transparência das relações dos cidadãos com o Estado, conspiraram contra o caráter público das instituições republicanas, e afinal alicerçaram a desigualdade. O controle da própria opinião pública sobre os partidos é uma das novas senhas do que deve ser a permanente desoligarquização da política.

É necessário lembrar, os nomes mais importantes entre os derrotados de 2002 conheceram a sanção de uma opinião pública, veiculada pela imprensa, que desde o impeachment de Fernando Collor aumentou seu grau de intolerância em relação à corrupção e à malversação do dinheiro público, ou mesmo a expedientes de manipulação da vontade popular e de seus representantes no Congresso. Afinal, assim poderemos dizer “adeus”, sem saudades, a esses meios de controle social e político e às caras medonhas que, se não apavoraram criancinhas – muitos deles têm filhos e netos e até bisnetos – foram pesadelos para a República em sua longa trajetória.

Francisco de Oliveira é professor-titular aposentado da FFLCH-USP. Coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania-FFLCH-USP.