Economia

O quadro de restrição externa não deve impedir uma retomada progressiva do crescimento, desde o início do governo Lula

A eleição de um presidente da República de um partido de esquerda e com a biografia de Luiz Inácio da Silva suscita esperanças e apreensões. Esperanças pela trajetória de lutas sociais do Partido dos Trabalhadores e do presidente eleito e de seus compromissos democráticos e populares. Apreensões pelas dificuldades em realizar mudanças no modelo econômico, num ambiente hostil às modificações no status quo, obstáculos esses agravados pela crise econômica doméstica e interna­cional ora em curso.

Raciocinar sobre os cenários e alternativas do governo Lula exige considerar alguns marcos gerais: o primeiro deles diz respeito às propostas programáticas sintetizadas na retomada do crescimento, na melhora da distribuição da renda e na manutenção da estabilidade. Outro condicionante é o compromisso, assumido pelo PT e pelo futuro presidente, quanto ao respeito aos contratos num contexto histórico caracterizado por uma situação econômica precária legada pela era FHC. O terceiro fator essencial e sobre o qual o novo governo terá influência mínima é a conjuntura internacional e seus desdobramentos, tanto no plano político-militar quanto no econômico.

Diante desses constrangimentos básicos é possível traçar os cenários e alternativas para o governo Lula, no qual certamente a margem de manobra da política econômica será reduzida, porém não desprezível. Para tanto é necessário considerar quatro grupos básicos de questões: a trajetória da economia internacional, a situação das contas externas do país, o estado das finanças públicas e a dinâmica da inflação.

A economia internacional
Torna-se cada vez mais generalizada a percepção do esgotamento do ciclo de expansão na economia internacional datado do início da década de 90 e acelerado após 1995. Quando esta desaceleração iniciou-se em 2001, tendo como epicentro a economia americana, apostava-se que ela seria intensa e breve. Hoje, mesmo os mais otimistas admitem sua duração prolongada e períodos de recessão mais intensa. Os pessimistas acenam com uma possibilidade mais grave: a deflação. A prevalência de qualquer dos dois cenários trará dificuldades para os países periféricos, dentre eles o Brasil.

O padrão de crescimento da economia americana, vigente com menor intensidade nas demais economias avançadas, põe em relevo a interdependência entre a liderança dos setores de tecnologia da informação, o financiamento via mercado de capitais, sobretudo bolsas de valores, e o gasto privado em consumo e investimento. Esse padrão virtuoso em algum momento é rompido pelo excesso de investimento ao engendrar uma capacidade de produção excessiva frente ao crescimento prospectivo da demanda.

Desse deslocamento decorrem várias conseqüências que podem ser intensificadas ou reduzidas pela condução da política econômica. A primeira delas é a queda recorrente das cotações das ações em bolsas induzidas pelas expectativas de lucros declinantes e até mesmo de falências e defaults das corporações. No plano das empresas, isto determina novas contrações do investimento, pois reduz os patrimônios e aumenta o grau de endividamento. A severidade dessa retração é ilustrada pelo desempenho do investimento não residencial na economia americana, que apresenta quedas sucessivas há oito trimestres consecutivos.

No consumo, observa-se um efeito menos intenso manifesto na sua desaceleração. Esse resultado não deixa de ser surpreendente quando se considera a deterioração da situação patrimonial das famílias expressa no aumento da relação dívida/patrimônio. Os dados mostram que só foi possível manter o consumo crescendo às custas de um maior endividamento das famílias, traduzido na elevação do indicador dívida/renda disponível. Isto é, esse crescimento se deu às custas do agravamento da situação corrente e patrimonial das famílias e portanto está sujeito a brusca reversão.

A trajetória recente do gasto privado na economia americana suscita a indagação acerca dos limites da política econômica enquanto elemento anticíclico. A inspiração keynesiana dessa política é indiscutível, caracterizada por sucessivas reduções da taxa de juros básica e ampliação do gasto público. No caso da política monetária é evidente a sua contribuição para evitar que a situa­ção patrimonial se deteriore ainda mais. É duvidoso todavia o seu papel de indutor na recuperação do gasto privado. Aqui parece prevalecer o sentido do adágio popular “A corda serve para puxar o cavalo mas não para empurrá-lo..” Por fim, a elevação do gasto público, além de moralmente condenável por basear-se principalmente nas despesas militares, padece também de uma limitação, qual seja, o seu tamanho absoluto, resultante de anos de redução do peso do Estado na economia.

A situação atual da economia americana, caracterizada pelo excesso de investimento e de endividamento bem como pela relativa incapacidade anticíclica da política econômica, leva a prever senão um cenário de deflação pelo menos um aprofundamento da desaceleração. Dada a posição particular dessa economia no cenário internacional pode-se deduzir daí duas tendências: a perda de dinamismo do comércio internacional e, o que é mais relevante, uma contração global do crédito, principalmente para os países emergentes.

A desaceleração do crescimento já promoveu mudanças na trajetória do comércio internacional com a redução das suas taxas de crescimento cuja média entre 1995 e 2000 foi de 8% ao ano e nos últimos dois anos caiu para zero. Como expressão dessa trajetória já se observa um recrudescimento do protecionismo em vários países. Mais significativo ainda é o comportamento desfavorável dos preços das commodities, produtos que interessam diretamente ao Brasil. A recuperação recente desses preços não é sustentável, pois ocorreu por razões especulativas, mormente a participação de fundos de investimentos americanos, que fogem da excessiva exposição em bolsas, nos mercados futuros de produtos agrícolas.

Nos mercados financeiros a situação é mais grave. A queda dos preços das ações e os defaults corporativos nos EUA, que trouxeram à tona as práticas contábeis fraudulentas, criaram uma séria aversão ao risco por parte dos bancos e dos investidores em geral. Além de uma maior seletividade por parte dos primeiros na concessão de créditos – alguns deles com parte de seus ativos fortemente deteriorados – observa-se também no mercado de títulos uma fuga dos papéis de maior risco em direção àqueles de maior qualidade. Para alguns tipos de empresa e países o mercado simplesmente passou a não aceitar novas emissões.

A eleição de um presidente da República de um partido de esquerda e com a biografia de Luiz Inácio da Silva suscita esperanças e apreensões. Esperanças pela trajetória de lutas sociais do Partido dos Trabalhadores e do presidente eleito e de seus compromissos democráticos e populares. Apreensões pelas dificuldades em realizar mudanças no modelo econômico, num ambiente hostil às modificações no status quo, obstáculos esses agravados pela crise econômica doméstica e interna­cional ora em curso.

Raciocinar sobre os cenários e alternativas do governo Lula exige considerar alguns marcos gerais: o primeiro deles diz respeito às propostas programáticas sintetizadas na retomada do crescimento, na melhora da distribuição da renda e na manutenção da estabilidade. Outro condicionante é o compromisso, assumido pelo PT e pelo futuro presidente, quanto ao respeito aos contratos num contexto histórico caracterizado por uma situação econômica precária legada pela era FHC. O terceiro fator essencial e sobre o qual o novo governo terá influência mínima é a conjuntura internacional e seus desdobramentos, tanto no plano político-militar quanto no econômico.

Diante desses constrangimentos básicos é possível traçar os cenários e alternativas para o governo Lula, no qual certamente a margem de manobra da política econômica será reduzida, porém não desprezível. Para tanto é necessário considerar quatro grupos básicos de questões: a trajetória da economia internacional, a situação das contas externas do país, o estado das finanças públicas e a dinâmica da inflação.

A economia internacional
Torna-se cada vez mais generalizada a percepção do esgotamento do ciclo de expansão na economia internacional datado do início da década de 90 e acelerado após 1995. Quando esta desaceleração iniciou-se em 2001, tendo como epicentro a economia americana, apostava-se que ela seria intensa e breve. Hoje, mesmo os mais otimistas admitem sua duração prolongada e períodos de recessão mais intensa. Os pessimistas acenam com uma possibilidade mais grave: a deflação. A prevalência de qualquer dos dois cenários trará dificuldades para os países periféricos, dentre eles o Brasil.

O padrão de crescimento da economia americana, vigente com menor intensidade nas demais economias avançadas, põe em relevo a interdependência entre a liderança dos setores de tecnologia da informação, o financiamento via mercado de capitais, sobretudo bolsas de valores, e o gasto privado em consumo e investimento. Esse padrão virtuoso em algum momento é rompido pelo excesso de investimento ao engendrar uma capacidade de produção excessiva frente ao crescimento prospectivo da demanda.

Desse deslocamento decorrem várias conseqüências que podem ser intensificadas ou reduzidas pela condução da política econômica. A primeira delas é a queda recorrente das cotações das ações em bolsas induzidas pelas expectativas de lucros declinantes e até mesmo de falências e defaults das corporações. No plano das empresas, isto determina novas contrações do investimento, pois reduz os patrimônios e aumenta o grau de endividamento. A severidade dessa retração é ilustrada pelo desempenho do investimento não residencial na economia americana, que apresenta quedas sucessivas há oito trimestres consecutivos.

No consumo, observa-se um efeito menos intenso manifesto na sua desaceleração. Esse resultado não deixa de ser surpreendente quando se considera a deterioração da situação patrimonial das famílias expressa no aumento da relação dívida/patrimônio. Os dados mostram que só foi possível manter o consumo crescendo às custas de um maior endividamento das famílias, traduzido na elevação do indicador dívida/renda disponível. Isto é, esse crescimento se deu às custas do agravamento da situação corrente e patrimonial das famílias e portanto está sujeito a brusca reversão.

A trajetória recente do gasto privado na economia americana suscita a indagação acerca dos limites da política econômica enquanto elemento anticíclico. A inspiração keynesiana dessa política é indiscutível, caracterizada por sucessivas reduções da taxa de juros básica e ampliação do gasto público. No caso da política monetária é evidente a sua contribuição para evitar que a situa­ção patrimonial se deteriore ainda mais. É duvidoso todavia o seu papel de indutor na recuperação do gasto privado. Aqui parece prevalecer o sentido do adágio popular “A corda serve para puxar o cavalo mas não para empurrá-lo..” Por fim, a elevação do gasto público, além de moralmente condenável por basear-se principalmente nas despesas militares, padece também de uma limitação, qual seja, o seu tamanho absoluto, resultante de anos de redução do peso do Estado na economia.

A situação atual da economia americana, caracterizada pelo excesso de investimento e de endividamento bem como pela relativa incapacidade anticíclica da política econômica, leva a prever senão um cenário de deflação pelo menos um aprofundamento da desaceleração. Dada a posição particular dessa economia no cenário internacional pode-se deduzir daí duas tendências: a perda de dinamismo do comércio internacional e, o que é mais relevante, uma contração global do crédito, principalmente para os países emergentes.

A desaceleração do crescimento já promoveu mudanças na trajetória do comércio internacional com a redução das suas taxas de crescimento cuja média entre 1995 e 2000 foi de 8% ao ano e nos últimos dois anos caiu para zero. Como expressão dessa trajetória já se observa um recrudescimento do protecionismo em vários países. Mais significativo ainda é o comportamento desfavorável dos preços das commodities, produtos que interessam diretamente ao Brasil. A recuperação recente desses preços não é sustentável, pois ocorreu por razões especulativas, mormente a participação de fundos de investimentos americanos, que fogem da excessiva exposição em bolsas, nos mercados futuros de produtos agrícolas.

Nos mercados financeiros a situação é mais grave. A queda dos preços das ações e os defaults corporativos nos EUA, que trouxeram à tona as práticas contábeis fraudulentas, criaram uma séria aversão ao risco por parte dos bancos e dos investidores em geral. Além de uma maior seletividade por parte dos primeiros na concessão de créditos – alguns deles com parte de seus ativos fortemente deteriorados – observa-se também no mercado de títulos uma fuga dos papéis de maior risco em direção àqueles de maior qualidade. Para alguns tipos de empresa e países o mercado simplesmente passou a não aceitar novas emissões.

Os fluxos de capitais para os países periféricos ao longo de 2002 mantiveram-se deprimidos, mas ainda positivos, sobretudo quando considerado o investimento direto estrangeiro. Isto todavia não deve obscurecer o fato de que eles foram excessivamente seletivos, concentrando-se em algumas re­giões (Europa Central e do Leste) e, nas demais regiões, em alguns países (Coréia e China na Ásia e México na América Latina). Ou seja, esses fluxos – excetuando-se o IDE – foram negativos para a maioria dos países periféricos, incluindo o Brasil.

Essas considerações põem em destaque dois cenários alternativos para os próximos anos. O primeiro deles supõe o agravamento da crise na economia americana e a ampliação da fuga para a qualidade, desta feita atingindo o conjunto dos emergentes. Nessa hipótese assistiríamos ao completo desfinanciamento da periferia, o seu default generalizado numa espécie de reedição agravada da crise da dívida dos anos 80. Esse cenário tem baixa probabilidade. O mais provável é que os financiamentos privados para a periferia continuem escassos e seletivos. Pode-se prever também o aumento de importância dos fluxos públicos (instituições multilaterais) com as suas condicionalidades.

O ajuste do balanço de pagamentos
Para traçar o cenário do balanço de pagamentos é necessário considerar a evolução das suas contas, tomando como marco geral a instituição do câmbio flutuante, mas enfatizando o ocorrido em 2002. O que se nota desde então é uma melhoria progressiva da conta corrente e uma deterioração da conta de capital, invertendo o padrão observado entre 1994 e 1998. A pergunta a ser colocada é se o ajuste da conta corrente tem dimensão e velocidade suficientes para contrabalançar a deterioração da conta de capital.

À primeira vista a trajetória do déficit em transações correntes impres­siona, pois em quatro anos cai para quase 1/3 do seu valor, de US$ 33 bilhões em 1998 para US$ 12 bilhões em 2002. Se considerarmos que no mesmo período a economia brasileira cresce apenas 2,4% ao ano em média e que o câmbio real desvaloriza-se em 70%, o ajuste é menos impressionante e, mais que isto, fica sugerido um forte componente cíclico no mesmo.

Entre 1998 e 2002 a redução do déficit deveu-se mais à contração das importações, responsável por 59% desse resultado. O aumento das exportações respondeu por apenas 34% dessa diminuição. Isto indica que, ao contrário de países como México e Coréia, nos quais as exportações cresceram mais do que as importações, o Brasil realizou o seu ajuste às custas do declínio da corrente de comércio.

O desempenho das exportações brasileiras foi certamente influenciado pela desaceleração do comércio internacional após 2001, mas foi adicionalmente afetado pela composição da nossa pauta. A predominância das commodities e o declínio de preços das mesmas afetou drasticamente o valor das exportações. Na queda das importações, dois fatores devem ser destacados: a substituição de importações e a contração da absorção doméstica. Há indicações de que a desvalorização cambial produziu uma substituição de importações espontânea nos setores menos sofisticados. Nos demais, a redução ocorreu por efeito combinado da desaceleração do investimento, redução da produção corrente e, portanto, diminuição da necessidade de insumos e ainda encarecimento e substituição do produto importado, no caso de bens de consumo.

Do que foi exposto destaca-se a dificuldade da manutenção do ajuste em transações correntes nas proporções em que foi realizado diante da retomada do crescimento e uma revalorização da moeda nacional. Isto por conta da ampliação das importações que fatalmente acarretaria. Dessa maneira, a sua preservação requererá a sustentação do saldo comercial por meio da adoção de políticas ativas de substituição de importações.

Como assinalado acima, a conta de capital sofre uma progressiva deterioração no ano de 2002, tanto em intensidade quanto em extensão. No primeiro aspecto destaca-se a ausência de financiamentos líquidos, vale dizer a conta de capital torna-se deficitária obrigando o país a recorrer a financiamentos das instituições multilaterais (FMI). Por sua vez, o conjunto das contas torna-se negativo, exceto o IDE que sofre significativa deterioração.

Desde maio de 2002 os déficits na conta de capital tornam-se recorrentes em razão da saída líquida de recursos nos investimentos de portfólio e da não renovação de parcela significativa dos financiamentos de longo prazo (35%) e de curto prazo (40%). O IDE, a fonte mais estável e importante desde 1998 sofre um significativo decréscimo (30%) e muda a sua composição com as conversões de dívida respondendo pela sua maior parte do IDE.

Outro aspecto relevante da conta de capital refere-se à remessa de recursos de residentes para o exterior, por meio das contas CC-5. Entre janeiro e setembro de 2002, cerca de US$ 6,8 bilhões foram transferidos por essa conta, 50% a mais do que em 2001. Esses recursos representam basicamente investimentos de residentes sujeitos a uma crise de confiança na moeda nacional, ou pré-pagamento de dívidas por parte das empresas, aproveitando a desvalorização dos seus títulos nos mercados externos.

Há um outro aspecto no ajuste do balanço de pagamentos relativo às distinções entre as responsabilidades dos setores público e privado. Isto porque o primeiro detém uma parcela muito menor da dívida e do seu serviço comparativamente ao segundo. Assim, em 2003 a amortização da dívida externa montará US$ 28 bilhões, dos quais US$ 8,9 bilhões do setor público e US$ 19,1 do setor privado. Os juros montam US$ 16,7 bilhões, dos quais US$ 5,9 bilhões são de responsabilidade do setor público e US$ 16,7 do setor privado. Em princípio o setor público tem recursos suficientes oriundos das reservas internacionais para pagar a sua dívida externa. O problema estaria no setor privado.

Na prática, o problema também é do setor público. A alternativa de solução que seria deixar flutuar a taxa de câmbio até o ponto no qual se equilibrasse a oferta e a demanda de dólares do setor privado tem diversas conse­qüências. Dada a intensidade da restrição internacional do crédito isso pode levar a uma excepcional desvalorização da taxa de câmbio, como a observada em 2002, com sérias implicações. A primeira delas é o default das empresas brasileiras endividadas em moeda estrangeira, contribuindo assim para exacerbar o risco Brasil e manter fechado o mercado para novos financiamentos. As outras duas são internas e trataremos delas em seguida: a dívida pública e a inflação.

Do que foi dito sobre o ajuste do balanço de pagamentos, cabe enfatizar a sua direção correta, a melhoria da conta corrente num quadro de escassez de novos financiamentos, mas a sua possível inconsistência temporal. Isto é, a obtenção de um superávit em transações correntes compatível com o déficit da conta de capital estão em assincronia. Há aqui duas opções dentro da estratégia mais ampla de manter o ajuste corrente: a primeira é a sua aceleração via políticas ativas. A segunda é a utilização por parte do setor público de fontes de financiamento extramercado, como a das instituições multilaterais, para provisoriamente bancar o gap de divisas do setor privado. Essa estratégia deverá produzir em médio prazo o retorno dos financiamentos externos.

A deterioração das finanças públicas
A análise das finanças públicas no período recente indica sua crescente deterioração, iniciada em 1994 com o Plano Real, mas exacerbada após 1998 com a flutuação cambial. Diante desse quadro, duas questões parecem pertinentes: a primeira delas é indagar se o ajuste corrente consubstanciado na ampliação dos superávits primários pode contrabalançar os desajustes patrimoniais oriundos do perfil da dívida e contribuir para estabilizar seu valor. A segunda questão refere-se às implicações do recente encurtamento dos prazos da dívida pública, vale dizer, quais seus efeitos sobre a condução da política macroeconômica.

A trajetória da dívida pública brasileira desde 1994 é explosiva, pois ela sobe de 28% do PIB em julho desse ano para 64% do PIB em setembro de 2002. Os determinantes de seu crescimento estiveram associados a mudanças patrimoniais ou fatores financeiros, tendo o componente estritamente fiscal pouco peso nessa trajetória. Assim, entre 1994 e 2001, os fatores patrimoniais (renegociação de dívidas dos Estados e reconhecimento de débitos menos privatizações) foram responsáveis por 37% do aumento da dívida líquida. Já os determinantes financeiros (juros e desvalorização cambial) responderam por 58% do seu aumento enquanto os fatores fiscais responderam por apenas 5% desse acréscimo.

Após a flutuação cambial em 1999, a elevada parcela da dívida indexada ao câmbio, atualmente em cerca de 50% do total, e, em menor escala, os juros altos passam a ser responsáveis exclusivos pelo aumento da dívida pública. Uma idéia mais precisa da relevância dos fatores financeiros para a dinâmica da dívida pode ser visto na simulação dos impactos da sua variação. Para cada 10% de desvalorização do câmbio, a relação dívida/PIB amplia-se em 3%. No caso dos juros, uma ampliação sustentada de 10% ao longo de 12 meses também acarreta um aumento de 3% na dívida como proporção do PIB. Os fatores contrarrestantes desse crescimento são o superávit primário e o aumento do PIB. A título de exemplo, para anular o aumento mostrado acima de 3 pontos percentuais na relação dívida/PIB, seria necessária uma ampliação de igual magnitude do superávit primário ou de 5 pontos percentuais na taxa de crescimento do PIB.

As considerações anteriores destacam as dificuldades de de0ter o crescimento da dívida por meio dos ajustes fiscais correntes e reforçam a necessidade da estabilização do câmbio e redução das taxas de juros para lograr esse objetivo. Dadas as atuais estruturas de receitas e despesas, apenas ajustes marginais podem ser realizados na direção de elevar o saldo primário. Senão vejamos: a carga tributária brasileira, em torno de 33% do PIB – com redução para 26%, excluindo Previdência e FGTS – é elevada comparativamente a países de nível de renda semelhante e dificilmente poderá aumentar nos próximos anos. Ademais o ajuste fiscal posto em prática nos últimos anos introduziu sérias distorções nessa carga tributária ao privilegiar a ampliação das con­tribuições sociais de caráter cumulativo ou “em cascata”, que passaram de 20% para 28% da receita total, pois possuíam maior flexibilidade na viabilização do ajuste pretendido, porque não são partilhadas com as esferas sub­nacionais.

Do ponto de vista da despesa há um conjunto de restrições. Desde logo, as vinculações, que atingem cerca de 85% da mesma, reduzindo a margem de manobra da União na sua re-alocação ou em eventuais cortes. A própria composição também torna difíceis mudanças de maior monta, sobretudo em razão do peso elevado da carga de juros e dos gastos previdenciários. A rigor, esses gastos são incompressíveis. Em resumo, sobra pouco para cortar. Não foi por outra razão que o atual governo promoveu o ajuste fiscal de grande envergadura, com a geração de um superávit primário médio de 3,5% do PIB através da ampliação mais que proporcional das receitas (18% no quadriênio) ante o aumento das despesas (8% no mesmo período).

O perfil da dívida pública, com a indexação de metade pelo câmbio e um terço à taxa de juros de curto prazo, e a dificuldade de realizar ajustes fiscais significativos podem levar à impossibilidade de estabilizar a relação dívida/PIB nos marcos do atual regime fiscal. O crescimento e eventual encurtamento de prazos da dívida pública criará problemas para a gestão da política econômica ao tornar a taxa de juros de curto prazo mais rígida à baixa. Todavia os limites para rolagem dessa dívida são bastante elásticos, não havendo necessidade de alongamentos compulsórios ou de um eventual default.

A dinâmica inflacionária
Com a flutuação do câmbio no início de 1999, o Brasil passou a adotar o regime de metas de inflação. Este, além de comprometer-se com a inflação baixa ou a fixação de uma âncora nominal interna, visa também uma trajetória declinante do índice de preços. Constitui um regime de política monetária não discricionário, no qual, em tese, as taxas de juros de curto prazo são manipuladas estritamente em função da performance da inflação.

A operação de um regime de metas inflacionárias numa economia como a brasileira está sujeita a uma série de restrições. A primeira delas é a ausência de sólidos fundamentos externos. Os choques oriundos de contração do financiamento implicam desvalorizações cambiais substantivas que se transmitem com intensidade aos preços domésticos. Isto significa que a manipulação das taxas de juros não tem influência significativa sobre um conjunto de preços. Quando o choque cambial ocorre, os preços dependentes do câmbio aumentam e a subida dos juros terá de ser mais forte para fazer desacelerar ou cair com mais intensidade os preços sensíveis à demanda. As dificuldades são ainda maiores quando se considera que outra parte do índice de preços – tarifas e preços de bens públicos – está indexada à inflação passada, isto é, não responde a variações da taxa de juros. Nesse contexto, manter metas de inflação muito baixas implica sacrificar, em graus variáveis, o crescimento do país.

Desde a sua implantação em 1999 o regime de metas de inflação logrou um sucesso apenas relativo. Se é verdade que a inflação foi mantida em baixos patamares, também o é que o crescimento da economia foi medíocre e houve declínio da renda dos trabalhadores e aumento do desemprego. Por sua vez, as metas foram recorrentemente ultrapassadas em 2001 e 2002 em razão da deterioração do cenário externo.

A taxa de crescimento da economia brasileira, após o boom de consumo do Plano Real, tem sido em média de 2,4% ao ano. Durante o mesmo período, isto é, após o segundo semestre de 1997, os salários e as outras formas de rendimento têm caído sistematicamente. Os primeiros, por exemplo, reduziram-se em cerca de 25% durante o período. O desemprego aberto ampliou-se consideravelmente, atingindo em São Paulo a marca dos 9% da PEA. O investimento desacelerou desde a crise energética e tem apresentado crescimento negativo nos últimos trimestres.

Esse ambiente de baixo dinamismo econômico certamente ajudou na obtenção de taxas de inflação reduzida, mas não evitou o seu repique após meados de 2001. Desde então, a taxa de inflação de 12 meses tem ultrapassado sistematicamente a meta inflacionária para igual período. Nas análises realizadas pelo Banco Central, os impactos das desvalorizações cambiais e a indexação de parte dos preços – os chamados preços administrados – são indicados como os responsáveis pela aceleração da inflação. Em 2001 e 2002, eles explicaram 2/3 do aumento da inflação.

A magnitude da desvalorização real do câmbio nos últimos meses – cerca de 40% – e a evolução do índice de preços que serve de indexador para os preços administrados – o IGP-DI –, com variação de 20%, indicam uma pressão inflacionária substantiva para o próximo ano. As expectativas do mercado financeiro coletadas pelo Banco Central indicam um IPCA de 10,5% em 2003, muito acima do teto da meta de inflação de 6,5%, estabelecida por essa instituição.

Conclusões
A análise do cenário para os próximos anos sugere várias dificuldades a serem equacionadas e ultrapassadas por meio da formulação de uma política econômica consistente. O primeiro aspecto dessa política é certamente o enfrentamento da questão externa. A preservação do superávit comercial e sua ampliação prospectiva é certamente um objetivo básico. Diante da redução dos déficits em transações correntes, é muito provável que o Brasil recupere o crédito internacional em algum momento e em alguma magnitude.

A obtenção dos superávits não pode, todavia, se fundar em políticas de contração da demanda interna e na excessiva depreciação da moeda nacional, como vem ocorrendo nos últimos anos. Ou seja, é urgente a formulação e a implantação de políticas ativas de promoção de exportações e substituição de importações.

O quadro de restrição externa não deve impedir uma retomada progressiva da demanda doméstica, com o crescimento do emprego e da renda dos mais pobres, desde o início do governo Lula. Para tanto, é necessário incentivar as atividades intensivas em emprego de menor qualificação. Isto pode ser conseguido dinamizando a construção civil residencial e não residencial. O crescimento da massa salarial dos trabalhadores de baixa renda minimizará o impacto do aumento do consumo interno sobre as importações. É possível conciliar crescimento interno e ajuste externo, durante a fase mais severa da restrição de financiamento, por meio da modificação da composição da demanda doméstica.

A política fiscal no governo Lula estará submetida a vários constrangimentos. O primeiro deles será a manutenção do superávit primário para fazer face à carga de juros e evitar o crescimento excessivo da dívida. Há também as reivindicações para a redistribuição da carga tributária com a desoneração da produção e exportações. Por fim, as demandas legítimas de ampliação e realocação do gasto social. Cumprir simultaneamente esses objetivos não pode ser tarefa a realizar no atual regime fiscal-previdenciário. Ou seja, será necessário realizar a reforma tributária para encontrar formas alternativas de receita, evitando redução da carga tributária. É necessário também um novo regime previdenciário que reduza prospectivamente o comprometimento de recursos fiscais com a previdência do setor público. Por fim, é preciso também aumentar a formalização do emprego através da reforma trabalhista para estender a proteção social e melhorar as contas da previdência do setor privado.

Finalmente, cabe considerar a questão da política inflacionária. É possível manter o regime de metas de inflação, desde que flexibilizado em razão das fragilidades externas da economia e dos recorrentes choques cambiais. De outro lado, é necessário desindexar, pelo menos pelos atuais critérios, os preços administrados. Desse ponto de vista as metas, além de declinantes ao longo dos anos, não podem exceder no primeiro ano, o patamar de um dígito, sob pena de estimular a reindexação da economia.

Respeitadas essas restrições, é possível caminhar mais decididamente na construção do novo modelo de crescimento que tem como fundamento a constituição de um mercado de massas, com a incorporação ao consumo de bens privados e públicos de uma grande parcela excluída da população brasileira. Nesse novo modelo, cuja implantação se acelerará à medida que forem sendo dribladas as restrições, será possível enfrentar a perversa herança da má distribuição de renda no país.

Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp e membro do grupo de economistas do PT.