Nacional

Entrevista com Luiz Dulci

Luiz Dulci, secretário-geral do PT e presidente da Fundação Perseu Abramo, integrou de forma destacada a coordenação da campanha Lula. Nesta entrevista ele nos fala da importância histórica da eleição de Lula para o Brasil e para a América Latina. Dulci expõe também seu ponto de vista sobre os rumos do governo e do partido no novo período que se abre.

Qual é o significado histórico para o país da vitória de Lula?
A vitória de Lula já é, em si mesma, uma conquista histórica. Uma ruptura com a tradição elitista e antipopular do poder político no Brasil. É a primeira vez que um filho do povo, com a trajetória sofrida e a coerência de classe que todos conhecemos, chega à Presidência da República. E o faz derrotando não apenas o candidato governista e seu bloco político-econômico, mas sobretudo vencendo preconceitos tremendos contra o trabalho e os trabalhadores, profundamente arraigados na sociedade brasileira, que deitam raízes – por que não dizê-lo? – em nosso longo passado escravocrata. E o faz desmentindo toda sorte de vereditos negativistas, seja de antigos e recentes oligarcas, seja da imprensa conservadora, seja de certa ciência política nacional e internacional, que não se cansaram de proclamar que Lula estava “liquidado” depois da derrota de 1998, que “jamais” chegaria à Presidência, que o PT não teria “absolutamente” nenhuma chance enquanto Lula fosse o nosso candidato.

A vitória de Lula é a vitória de um autêntico líder popular que não apenas não se deixou abater pelas derrotas como saiu maior e mais forte – humana, social e politicamente – de cada uma delas. E mais convicto de sua causa e de suas responsabilidades históricas. É a vitória de um partido que nunca desacreditou do seu principal líder e do valor agregado, político, cultural e moral, de chegar à Presidência justamente com Lula.

Por outro lado, é a primeira vez em nossa história que uma coalizão de centro-esquerda liderada por um candidato de esquerda e por um partido de esquerda chega à Presidência.

Trata-se agora de consolidar, no governo, a forte inovação histórica que a vitória eleitoral já representa.

Na sua opinião quais são os fatores que levaram à vitória?
Foram muitos, com certeza, os fatores que contribuíram para a vitória, tanto gerais como específicos. A crise do modelo neoliberal, as fraturas no bloco dominante, a pertinência da nossa alternativa programática, nossas alianças sociais e partidárias, a escolha do candidato a vice-presidente, a sintonia fina de Lula com o sentimento popular, a admirável unidade do PT, a lucidez e o entusiasmo da base, a agilidade tática da coordenação, a competência dos programas de rádio e TV, entre tantos outros.

Destaco dois aspectos que me parecem também muito relevantes.

Lula conseguiu, nesta campanha, algo quase inacreditável: em sua quarta eleição presidencial, sendo supostamente o mais previsível e “batido” dos candidatos, constituiu-se na grande novidade da disputa. E o que é fundamental: mantendo-se rigorosamente fiel a si mesmo e aos seus compromissos históricos. Com ousadia e humildade, soube superar-se, transcender-se , tornando-se uma enorme e positiva surpresa para toda a sociedade brasileira, inclusive para a parcela que já o apoiava. Arrisco-me a dizer que até mesmo nós, petistas, fomos surpreendidos com suas novas artes. Data venia, para utilizar o latim hoje largamente incorporado ao seu discurso, o próprio Lula não terá se surpreendido menos...

Ele foi, a um só tempo, o mesmo Lula – e um novo Lula. É de se augurar que o seja também na Presidência da República.

A sua vitória baseou-se, no entanto, numa experiência partidária construída passo a passo nos últimos 23 anos, forjada no debate interno pluralista e na unidade de ação do PT, em nossa relação substantiva com os movimentos sociais, nas experiências que acumulamos no Parlamento e em centenas de administrações municipais e estaduais, amadurecendo políticas públicas em entidades como o Instituto Cidadania, debatendo e socializando os desafios da realidade brasileira em instituições como a Fundação Perseu Abramo. Vale dizer, baseou-se num projeto histórico coletivamente elaborado e em uma prática política de fato compartilhada. O que não é menos inovador na vida brasileira.

O que a vitória de Lula representa para a América Latina?
Para a América Latina, a vitória de Lula pode representar um marco na derrota e superação do neoliberalismo. Tivemos em nosso continente a era do populismo, depois a era das ditaduras militares e na década de 90 padecemos a era do neoliberalismo, que desmontou quase todos os Estados latino-americanos, fragilizou profundamente as economias nacionais e agravou de maneira dramática as desigualdades sociais. Contudo, já da metade da década de 90 para cá, são visíveis os sinais, em diversos países, da rearticulação das forças progressistas como resposta ao fracasso das políticas neoliberais, cujos exemplos mais evidentes são o Peru e a Argentina. Vitórias populares recentes como as do Brasil e do Equador podem alterar decisivamente a qualidade e a amplitude desse processo.

Quais serão as alianças sociais e políticas que o governo Lula buscará implementar?
Para realizar as mudanças necessárias, será preciso consolidar um amplo leque de alianças sociais e políticas que inclua todos aqueles setores interessados em superar o atual modelo econômico-social. É muito importante que o governo Lula tenha maioria estável no Congresso, que lhe permita implementar suas políticas anticrise e as reformas estruturais que anunciou ao país: reforma tributária, reforma agrária, reforma previdenciária, reforma política, reforma trabalhista e da legislação sindical, entre outras. Uma relação inovadora com os governos estaduais será imprescindível para construir um novo pacto federativo. Mas não podemos encarar a questão da base de sustentação do governo apenas em termos parlamentares e políticos strictu sensu. Na minha opinião, devemos trabalhar com um conceito de governabilidade ampliada. É necessário envolver e engajar nesse processo diversos setores sociais – trabalhadores, empresários, classes médias – e múltiplas organizações da sociedade civil: Igrejas, ONGs, sindicatos etc.

Queremos dialogar seriamente, por exemplo, com as federações da indústria e da agricultura, em torno da retomada do crescimento econômico, com geração de emprego e distribuição de renda. Mas também com as centrais sindicais, o MST e a Contag, que são sujeitos coletivos estratégicos para o aprofundamento da democracia econômica, social e política no país. Além disso, existem hoje milhões de brasileiros e brasileiras, não vinculados a nenhum partido ou organização reivindicatória, que querem participar dessa cruzada contra a fome, o desemprego e a desigualdade social. Trata-se de uma poderosa energia solidarista que a campanha Lula despertou e que não podemos de modo algum desperdiçar. Uma energia ético-política extraordinária, que precisa encontrar os seus canais de expressão, e será igualmente decisiva para sustentar e impulsionar o projeto transformador de Lula. Sem esse vasto movimento político e social, nas instituições e nas ruas, que galvanize a maioria da sociedade, dificilmente teremos condições de enfrentar as forças de resistência às mudanças, que no momento podem estar aturdidas mas são extremamente poderosas. Daí a proposta de um pacto social pelas reformas e pela retomada do crescimento, que canalize e potencialize esse difuso anseio por mudanças.

Em um contexto nacional e internacional de grandes constrangimentos, quais serão as prioridades do governo Lula? Como atingir as metas sociais propostas, sabendo-se que a herança do governo FHC em termos sociais e econômicos é terrível?
A grande prioridade é a questão social. O Brasil, apesar de ser a 12ª potência econômica do mundo, é um país com um dos maiores índices de desigualdade social, só comparável aos mais pobres países africanos. Nesse sentido, foi extremamente importante o primeiro pronunciamento de Lula, no dia seguinte à eleição, quando toda a imprensa esperava que ele falasse de superávit primário e da presidência do Banco Central e ele destacou o combate à fome como prioridade número um de seu governo. Sem descuidar das questões macroeconômicas, é claro,que afetam diretamente a vida de todos. Mas articulando-as com os interesses do país e da maioria do povo. Nas condições atuais do Brasil, cidadania plena para todos é uma questão chave. Nesse sentido, é fundamental tomar medidas para implementar programas que apontem para o fim da fome, do analfabetismo, das epidemias, fazer a reforma agrária, enfim, cumprir nosso programa democrático-popular. O pressuposto básico para que isso aconteça é que o país volte a crescer e gerar empregos. A chave de nosso programa é crescimento econômico com inclusão social, o que significa criar um verdadeiro mercado interno de massas.

Sabemos que a herança social e econômica deixada pelo governo Fernando Henrique Cardoso é terrível e o povo já fez seu julgamento sobre ela nas urnas. Essa herança imporá o ritmo em que se darão as mudanças. Algumas medidas serão tomadas no primeiro ano, outras talvez no segundo ou quem sabe no terceiro e muita coisa não se resolverá em quatro anos. Trata-se é de colocar o país em outros trilhos e a mudança tem que começar desde o primeiro dia de governo.

Qual será o papel do PT nesse novo contexto? Como evitar o que aconteceu com muitos partidos socialistas, que na hora em que chegaram ao governo se transformaram em meras correias de transmissão deste último?
Ainda que aproveitando parte da experiência e da tradição da esquerda mundial, o PT trouxe inovações a esta cultura e em muitos aspectos rompeu com a tradição. Por exemplo, no seu próprio processo de formação “de baixo para cima” e na sua definição como um partido laico, sem doutrina oficial. Agora, mais uma vez, estamos diante do desafio de inovar. Evidentemente, o PT tem que ser o principal sustentáculo do governo Lula, e esta é, no período que se abre, sua principal tarefa. Mas é absolutamente indispensável que o partido não se esvazie nem se transforme em correia de transmissão do governo. Em primeiro lugar, porque há tarefas permanentes que são do partido e não poderão ser realizadas pelo governo. Falo, por exemplo, da articulação com os movimentos sociais, da formação cultural e política dos militantes, da preparação do partido para a disputa das eleições municipais em 2004, da assessoria aos nossos governos estaduais e municipais. Mas também porque é necessário que o partido seja um espaço de elaboração e de avaliação da própria experiência governamental, que muitas vezes quem está vivenciando a experiência no dia-a-dia não tem o distanciamento crítico necessário para enxergar problemas, apontar eventuais erros e oferecer sugestões. Isso não quer dizer imiscuir-se no cotidiano do governo. Nossa própria experiência à frente de executivos municipais e estaduais tem demonstrando que não é esse o caminho. Mas nas grandes avaliações periódicas que terão que ser feitas, a voz do PT, ressoando inclusive a opinião dos movimentos sociais, deverá ter peso. Da mesma forma, na discussão das reformas estruturais que o país reclama e que Lula comprometeu-se a fazer. Um partido autônomo, forte e solidário é indispensável para o próprio êxito do governo Lula.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate.