Internacional

EUA propõem hoje o bloqueio ou destruição preventiva de qualquer tipo de poder que queira competir globalmente

“As nossas reformas burguesas sempre tiveram como limites dois medos seculares de nossas elites ilustradas: o medo do Império e o medo do Povo”, Maria da Conceição Tavares, em Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações, 1999.

A História conta que os Estados nacionais e o moderno sistema econômico e político mundial nasceram praticamente juntos, nos séculos XV e XVI, ou mais precisamente, que o próprio sistema mundial foi uma construção e um produto da expansão extraterritorial dos primeiros Estados nacionais europeus. Depois de nascer, esse sistema mundial se manteve, nos 500 anos seguintes, sob a égide política européia e do seu sistema interestatal. Mas não é verdade que neste período o Estado nacional tenha destruído ou substituído todas as demais formas de organização do poder territorial, e sobretudo os impérios, como pensam Paul Kennedy e Charles Tilly, entre outros. É verdade que os primeiros Estados europeus nasceram da luta contra o império muçulmano e da resistência ao império dos Habsburgos, mas depois também transformaram-se em impérios, dentro ou fora da Europa, e duraram muito, só sendo desmontados na segunda metade do século XX. Por isso, o mais correto é dizer que o império, ou a “vontade imperial”, foi sempre uma dimensão essencial dos próprios Estados nacionais europeus e que foi a grande responsável pelo nascimento do sistema político mundial, hierarquizado a partir de um núcleo central composto pelas grandes potências.

Este núcleo central nunca foi homogêneo, coeso ou pacífico. Pelo contrário, viveu quase em guerra permanente, porque todos os Estados componentes eram também impérios, com vocações iguais e contrárias, que sempre se propuseram a construir um império mundial, nunca completado. Por isto foram chamados de grandes potências, ou potências globais, complementares e competitivas entre si. Mesmo nos períodos de “equilíbrio de poder”, o que de fato existiu foi sempre uma competição bipolar, que acabou contendo o caos europeu e exportando, muitas vezes, as guerras para fora da Europa.

Assim foi, por exemplo, a bipolaridade ibérica nos séculos XV e XVI; a competição entre a Holanda e a União Ibérica, nos séculos XVI e XVII; logo depois, a longa disputa entre a França e a Inglaterra, que atravessou o século XVIII e culminou com a derrota de Bonaparte e com o Congresso de Viena, em 1815, quando se redesenhou o mapa geopolítico da Europa e de suas colônias ou periferias. A relação de complementaridade e o conflito político-militar foram decisivos para o desenvolvimento e a acumulação da riqueza capitalista das grandes potências européias. No século XX, o mesmo quadro e as mesmas regras mantiveram-se enquanto o sistema mundial foi gerido pela competição entre Estados Unidos e União Soviética. O desaparecimento desta bipolaridade, em 1991, criou uma impressão inicial de que chegara enfim a hora do Império Mundial, um novo tipo de poder global sem fronteiras, sem Estados e sem um centro de poder com base nacional, como o descreveram Antonio Negri e Michael Hardt, no livro Império. Do nosso ponto de vista, essa hora ainda não chegou e o centro de poder desta nova expansão imperial responde ainda pelo nome de Estados Unidos da América, e “o espaço deste novo tipo de Império Americano não é contínuo nem homogêneo. Seu poder apóia-se no controle de estruturas transnacionais, militares, financeiras, produtivas e ideológicas de alcance global, mas não suprime os Estados nacionais, nem a hierarquia do sistema interestatal.

O império americano
No melhor de todos os seus romances históricos, Gore Vidal origina o projeto imperial americano no final do século XIX, na guerra hispano-americana e na Presidência de Theodore Roosevelt; momento em que os EUA já eram a maior potência industrial do planeta, mas não eram nem de longe uma potência militar. Em 1938, pouco antes de entrar na 2ª Guerra Mundial, seu exército era menor do que o da Romênia. Só depois de Hiroshima e Nagasaki, e do fim da 2ª Guerra Mundial, é que os EUA aparecem no cenário internacional como um poder incontrastável, no campo militar, financeiro, produtivo e do conhecimento. Superioridade que lhe permitiu construir as bases materiais de um império informal, “baseado na projeção do seu poder militar a todos os cantos do mundo, e no uso do capital e dos mercados americanos para forçar uma integração econômica dos demais membros do sistema, a todo e qualquer preço [....] de tal maneira que uma década depois do fim da Guerra Fria, milhares de soldados norte-americanos, abastecidos com o armamento mais avançado do mundo, incluindo muitas vezes armas nucleares, estão estacionados em 61 bases militares ‘complexas’, instaladas em 19 países distribuídos por todo o mundo. Sendo que se contabilizarmos qualquer tipo de instalação militar, o número de bases chegará ao de 800..” (Johnson, 2000, pg 6 e 7)

O Império Americano nasceu com alguma semelhança com os velhos impérios marítimos europeus na África e na Ásia, cuja estrutura de poder articulava-se por meio de redes militares, mercantis e financeiras, apoiadas por “fortalezas” e “feitorias”. Estas foram substituídas pelas grandes corporações e com a transformação do dólar na moeda de referência do sistema monetário internacional, propiciada pelos acordos de Bretton Woods, de 1944. O novo tipo de “império informal”, de que nos fala Chalmers Johnson, recusou qualquer tipo de dominação colonial explícita, mantendo a estrutura hierárquica do velho sistema inventado pelos europeus, no seu “longo século XVII”. Manteve uma relação de hegemonia com seus aliados europeus e construiu uma rede de Estados-satélites, ou vassalos, na Ásia e no Oriente Médio. Só na América Latina o novo poder imperial americano foi exercido sobre um território contínuo, com a exceção de Cuba, depois de 1959.

O poder global dos EUA viveu a sua principal crise na segunda metade do século XX, simplificadamente, com a derrota no Vietnã. Seguiram-se sucessivos reveses da sua política externa durante a década de 70: a vitória da Revolução Islâmica no Irã; a vitória sandinista na Nicarágua; a crescente presença soviética na África e no Oriente Médio; e, finalmente, a invasão russa do Afeganistão. Um conjunto de humilhações que ajudou a eleger o conservador Ronald Reagan e legitimar seu projeto de retomada da Guerra Fria – no início dos anos 80 – e a expandir os gastos militares do seu governo. A mudança na correlação interna de forças – imposição da vontade política de uma nova aliança entre o capital financeiro, as grandes corporações e interesses mais diretamente ligados à guerra e os setores mais duros ligados à administração da política externa norte-americana – é o ponto de partida da “retomada da hegemonia americana”(Tavares, 1977). Aí tomou corpo, no campo político-econômico internacional, a “restauração liberal-conservadora”, iniciada por Thatcher e Reagan, e rapidamente adotada ou imposta a quase todos os países capitalistas, produzindo uma rodada global de abertura e desregulação dos mercados. Portas abertas para o avanço da globalização dos anos 80/90, fez-se uma verdadeira “revolução financeira” que teve papel decisivo na redefinição do formato imperial do poder mundial americano. Nasciam, como irmãos gêmeos, o novo sistema financeiro mundial, que mudou radicalmente a balança de poder entre as autoridades públicas e os agentes e mercados financeiros privados, e um novo sistema monetário internacional, o "sistema dólar-flexível". Neste, o dólar continua sendo a moeda internacional, “mas a ausência da conversibilidade em ouro dá aos EUA e ao dólar a liberdade de variar sua paridade em relação às demais moedas conforme sua conveniência, através da simples movida de suas taxas de juros” (Serrano, F. 1988). Um sistema em que o dólar deixou de ter qualquer padrão de referência que não seja o próprio poder norte-americano.

Quase à mesma época, uma “revolução militar” mudou a concepção política e a base estratégica e logística do poder bélico dos EUA. Ocorrida à sombra da Guerra nas Estrelas, a mudança da tecnologia militar, cujos efeitos práticos, no campo de batalha e na política internacional, só ficaram visíveis na Guerra do Golfo, em 1991, e na Guerra do Kosovo, em 1999, provou a eficácia mortífera da nova maneira americana de fazer guerra. Uma espécie de “guerra tecnocrática” que dispensa cada vez mais soldados-cidadãos ou patrióticos. A possibilidade de fazer “guerras à distância” e o controle de uma moeda internacional sem padrão de referência que não seja o próprio poder do emissor mudaram radicalmente a forma de exercício do poder imperial americano. Eliminado o poder de contestação soviético e ampliado o espaço desregulado da economia mundial de mercado, criou-se um novo tipo de território submetido à senhoriagem do dólar e à velocidade das intervenções teledirigidas das suas forças militares. Estas mudanças coincidiram com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS e da Guerra Fria. Diferentemente das duas guerras mundiais, que podem ser lidas como parte de uma mesma “guerra civil” européia, quase contínua, a Guerra Fria não teve nenhuma batalha na Europa e terminou no Iraque, na forma clássica das “guerras imperiais”, e sem a participação direta da URSS. Não houve, em 1991, nada parecido com os acordos interestatais assinados na Paz de Vestfália, de 1648; no Congresso de Viena, de 1815; no Congresso de Versalhes, de 1918; ou mesmo, nas reuniões não-conclusivas de Yalta e Potsdam, de 1945. Não foram definidas as novas regras em que se fundamentaria a governance global. Mesmo que todos reconhecessem a superioridade inconteste do poder militar, financeiro e informacional dos EUA, não se estabeleceu nenhum princípio normativo, nem acordo operacional sobre o uso das armas, da violência e da guerra; sobre a criação e legitimidade das novas leis internacionais; nem tampouco sobre o funcionamento do novo sistema financeiro global. Os atentados de 2001 apenas precipitaram o que vinha sendo engendrado no establishment da política externa norte-americana, desde a queda do Muro de Berlim. Por isto, o 11 de setembro se transformou num desses acontecimentos que levam a uma mudança brusca de rumo, mas que na verdade clarificam e precipitam decisões que vinham sendo tomadas, ainda que de forma mais lenta.

Para onde apontam estas mudanças, no longo prazo? Qual o seu significado para o futuro do projeto imperial americano? Em Diplomacia, Henry Kissinger sustenta a tese de que o establishment sempre esteve dividido e oscilando, desde o final do século XIX, entre duas grandes concepções sobre a política externa dos EUA. A primeira – inaugurada pelo presidente Theodore Roosevelt (1901-1908) – é partidária de uma presença ativa dentro do jogo político mundial, orientada pelo interesse do Estado americano e pela concepção européia de equilíbrio do poder. A segunda – identificada com o presidente Woodrow Wilson (1913-1921) – é partidária de uma liderança global dos EUA, com base na superioridade das virtudes e na defesa dos valores fundamentais da sociedade e do sistema político americano. A primeira, mais conservadora, coloca o país na posição de “farol do mundo”, e por isto, na prática, tendeu ao isolacionismo. A segunda, apesar de liberal, também patrocinou várias intervenções salvacionistas. Segundo Kissinger, estas posições se alternaram, durante o século XX, num movimento pendular que ora deu a vitória ao “realismo” de Nixon, Reagan e Bush, ora ao “idealismo” de Kennedy, Carter e Clinton. O que Kissinger não consegue explicar é a passagem de um para o outro tipo de política externa. Além disso, se a sua descrição cabe como uma luva na política democrata dos anos 90, o mesmo não se pode dizer com relação à nova política republicana, pós-11 de setembro. A “era Clinton” foi rigorosamente idealista e messiânica, na sua defesa universal do liberalismo econômico e político; dos mercados e da democracia; dos direitos humanos e das “intervenções humanitárias”; dos regimes e dos sistemas colegiados de governança global. E foi rigorosamente liberal ao apostar na utopia da globalização e num sistema mundial de segurança coletiva, sob a hegemonia americana. Logo depois da posse de Bush, os primeiros passos externos de sua administração pareciam apontar para um novo período de isolacionismo, arrogante e exemplar. Entretanto, depois do 11 de setembro, a doutrina Bush de combate ao terrorismo transformou o “interesse nacional americano” no princípio legitimador de um novo tipo de interven­cionismo político-militar, permanente, preventivo e global. Seguindo a trilha de Reagan, Bush também propõe uma divisão do mundo entre o bem e o mal, mas sua guerra é contra um inimigo invisível, não identificado com nenhum Estado em particular. Apesar disso, também se propõe levar a extremos o enfrentamento, supondo que o inimigo, invisível e universal, possa ser destruído, como nas “guerras absolutas”. Este paradoxo é o que explica que estejamos frente a uma guerra permanente e cada vez mais extensa: no início, seu objetivo era destruir a rede do Al-Qaeda e o regime talibã. Mas hoje, em nome da mesma guerra, as tropas americanas estão presentes no Afeganistão, Argélia, Somália, Yêmen, Filipinas, Indonésia e Colômbia. A própria definição do inimigo foi modificada, três vezes pelo menos: eram as “redes terroristas”; depois, o “eixo do mal”, constituído por Iraque, Irã e Coréia do Norte; e agora, os “Estados produtores de armas de destruição de massa”, categoria que inclui quase todos os aliados americanos no Afeganistão.

Na nova doutrina, o adversário é “infinitamente elástico”, pois não é uma religião, ideologia, nacionalidade, civilização ou Estado, e pode ser redefinido a cada momento. Por trás disso, observamos um deslizamento do objetivo central da doutrina Bush na direção de uma estratégia de “contenção universal”, cujo objetivo último é impedir o aparecimento, em qualquer ponto do mundo e por tempo indefinido, de qualquer outra nação, ou aliança de nações, que possa se transformar numa potência, capaz de rivalizar com os EUA. Uma estratégia de “contenção”, como a proposta por George Kennan com relação à URSS e adotada pelos EUA depois de 1947, mas agora com um agravante: o que se pretende não é mais a contenção de uma ideologia ou de um Estado nacional em particular, e sim o bloqueio ou destruição preventiva de qualquer tipo de poder que se proponha competir globalmente com os EUA. É isto que explica o deslocamento do foco na direção de um inimigo que, ao fim e ao cabo, pode ser qualquer Estado, mesmo aliado, que demonstre intenções expansivas. Por isso os EUA não assinaram o Tratado de Não Proliferação de Armamento Nuclear, abandonaram o Tratado Antimísseis Balísticos, e decidiram construir um “Escudo Antimísseis”. Foram decisões destinadas a enviar uma clara mensagem ao sistema político mundial: a de que estão dispostos e vão manter uma dianteira tecnológica e militar inquestionável com relação aos demais Estados do sistema. Isso dará a eles, por tempo indeterminado, o poder de arbitrar isoladamente a hora e o lugar em que seus adversários reais, potenciais ou imaginários devam ser “contidos”, seja por meio da mudança de regimes e governos ou da ação militar direta.

“As nossas reformas burguesas sempre tiveram como limites dois medos seculares de nossas elites ilustradas: o medo do Império e o medo do Povo”, Maria da Conceição Tavares, em Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações, 1999.

A História conta que os Estados nacionais e o moderno sistema econômico e político mundial nasceram praticamente juntos, nos séculos XV e XVI, ou mais precisamente, que o próprio sistema mundial foi uma construção e um produto da expansão extraterritorial dos primeiros Estados nacionais europeus. Depois de nascer, esse sistema mundial se manteve, nos 500 anos seguintes, sob a égide política européia e do seu sistema interestatal. Mas não é verdade que neste período o Estado nacional tenha destruído ou substituído todas as demais formas de organização do poder territorial, e sobretudo os impérios, como pensam Paul Kennedy e Charles Tilly, entre outros. É verdade que os primeiros Estados europeus nasceram da luta contra o império muçulmano e da resistência ao império dos Habsburgos, mas depois também transformaram-se em impérios, dentro ou fora da Europa, e duraram muito, só sendo desmontados na segunda metade do século XX. Por isso, o mais correto é dizer que o império, ou a “vontade imperial”, foi sempre uma dimensão essencial dos próprios Estados nacionais europeus e que foi a grande responsável pelo nascimento do sistema político mundial, hierarquizado a partir de um núcleo central composto pelas grandes potências.

Este núcleo central nunca foi homogêneo, coeso ou pacífico. Pelo contrário, viveu quase em guerra permanente, porque todos os Estados componentes eram também impérios, com vocações iguais e contrárias, que sempre se propuseram a construir um império mundial, nunca completado. Por isto foram chamados de grandes potências, ou potências globais, complementares e competitivas entre si. Mesmo nos períodos de “equilíbrio de poder”, o que de fato existiu foi sempre uma competição bipolar, que acabou contendo o caos europeu e exportando, muitas vezes, as guerras para fora da Europa.

Assim foi, por exemplo, a bipolaridade ibérica nos séculos XV e XVI; a competição entre a Holanda e a União Ibérica, nos séculos XVI e XVII; logo depois, a longa disputa entre a França e a Inglaterra, que atravessou o século XVIII e culminou com a derrota de Bonaparte e com o Congresso de Viena, em 1815, quando se redesenhou o mapa geopolítico da Europa e de suas colônias ou periferias. A relação de complementaridade e o conflito político-militar foram decisivos para o desenvolvimento e a acumulação da riqueza capitalista das grandes potências européias. No século XX, o mesmo quadro e as mesmas regras mantiveram-se enquanto o sistema mundial foi gerido pela competição entre Estados Unidos e União Soviética. O desaparecimento desta bipolaridade, em 1991, criou uma impressão inicial de que chegara enfim a hora do Império Mundial, um novo tipo de poder global sem fronteiras, sem Estados e sem um centro de poder com base nacional, como o descreveram Antonio Negri e Michael Hardt, no livro Império. Do nosso ponto de vista, essa hora ainda não chegou e o centro de poder desta nova expansão imperial responde ainda pelo nome de Estados Unidos da América, e “o espaço deste novo tipo de Império Americano não é contínuo nem homogêneo. Seu poder apóia-se no controle de estruturas transnacionais, militares, financeiras, produtivas e ideológicas de alcance global, mas não suprime os Estados nacionais, nem a hierarquia do sistema interestatal.

O império americano
No melhor de todos os seus romances históricos, Gore Vidal origina o projeto imperial americano no final do século XIX, na guerra hispano-americana e na Presidência de Theodore Roosevelt; momento em que os EUA já eram a maior potência industrial do planeta, mas não eram nem de longe uma potência militar. Em 1938, pouco antes de entrar na 2ª Guerra Mundial, seu exército era menor do que o da Romênia. Só depois de Hiroshima e Nagasaki, e do fim da 2ª Guerra Mundial, é que os EUA aparecem no cenário internacional como um poder incontrastável, no campo militar, financeiro, produtivo e do conhecimento. Superioridade que lhe permitiu construir as bases materiais de um império informal, “baseado na projeção do seu poder militar a todos os cantos do mundo, e no uso do capital e dos mercados americanos para forçar uma integração econômica dos demais membros do sistema, a todo e qualquer preço [....] de tal maneira que uma década depois do fim da Guerra Fria, milhares de soldados norte-americanos, abastecidos com o armamento mais avançado do mundo, incluindo muitas vezes armas nucleares, estão estacionados em 61 bases militares ‘complexas’, instaladas em 19 países distribuídos por todo o mundo. Sendo que se contabilizarmos qualquer tipo de instalação militar, o número de bases chegará ao de 800..” (Johnson, 2000, pg 6 e 7)

O Império Americano nasceu com alguma semelhança com os velhos impérios marítimos europeus na África e na Ásia, cuja estrutura de poder articulava-se por meio de redes militares, mercantis e financeiras, apoiadas por “fortalezas” e “feitorias”. Estas foram substituídas pelas grandes corporações e com a transformação do dólar na moeda de referência do sistema monetário internacional, propiciada pelos acordos de Bretton Woods, de 1944. O novo tipo de “império informal”, de que nos fala Chalmers Johnson, recusou qualquer tipo de dominação colonial explícita, mantendo a estrutura hierárquica do velho sistema inventado pelos europeus, no seu “longo século XVII”. Manteve uma relação de hegemonia com seus aliados europeus e construiu uma rede de Estados-satélites, ou vassalos, na Ásia e no Oriente Médio. Só na América Latina o novo poder imperial americano foi exercido sobre um território contínuo, com a exceção de Cuba, depois de 1959.

O poder global dos EUA viveu a sua principal crise na segunda metade do século XX, simplificadamente, com a derrota no Vietnã. Seguiram-se sucessivos reveses da sua política externa durante a década de 70: a vitória da Revolução Islâmica no Irã; a vitória sandinista na Nicarágua; a crescente presença soviética na África e no Oriente Médio; e, finalmente, a invasão russa do Afeganistão. Um conjunto de humilhações que ajudou a eleger o conservador Ronald Reagan e legitimar seu projeto de retomada da Guerra Fria – no início dos anos 80 – e a expandir os gastos militares do seu governo. A mudança na correlação interna de forças – imposição da vontade política de uma nova aliança entre o capital financeiro, as grandes corporações e interesses mais diretamente ligados à guerra e os setores mais duros ligados à administração da política externa norte-americana – é o ponto de partida da “retomada da hegemonia americana”(Tavares, 1977). Aí tomou corpo, no campo político-econômico internacional, a “restauração liberal-conservadora”, iniciada por Thatcher e Reagan, e rapidamente adotada ou imposta a quase todos os países capitalistas, produzindo uma rodada global de abertura e desregulação dos mercados. Portas abertas para o avanço da globalização dos anos 80/90, fez-se uma verdadeira “revolução financeira” que teve papel decisivo na redefinição do formato imperial do poder mundial americano. Nasciam, como irmãos gêmeos, o novo sistema financeiro mundial, que mudou radicalmente a balança de poder entre as autoridades públicas e os agentes e mercados financeiros privados, e um novo sistema monetário internacional, o "sistema dólar-flexível". Neste, o dólar continua sendo a moeda internacional, “mas a ausência da conversibilidade em ouro dá aos EUA e ao dólar a liberdade de variar sua paridade em relação às demais moedas conforme sua conveniência, através da simples movida de suas taxas de juros” (Serrano, F. 1988). Um sistema em que o dólar deixou de ter qualquer padrão de referência que não seja o próprio poder norte-americano.

Quase à mesma época, uma “revolução militar” mudou a concepção política e a base estratégica e logística do poder bélico dos EUA. Ocorrida à sombra da Guerra nas Estrelas, a mudança da tecnologia militar, cujos efeitos práticos, no campo de batalha e na política internacional, só ficaram visíveis na Guerra do Golfo, em 1991, e na Guerra do Kosovo, em 1999, provou a eficácia mortífera da nova maneira americana de fazer guerra. Uma espécie de “guerra tecnocrática” que dispensa cada vez mais soldados-cidadãos ou patrióticos. A possibilidade de fazer “guerras à distância” e o controle de uma moeda internacional sem padrão de referência que não seja o próprio poder do emissor mudaram radicalmente a forma de exercício do poder imperial americano. Eliminado o poder de contestação soviético e ampliado o espaço desregulado da economia mundial de mercado, criou-se um novo tipo de território submetido à senhoriagem do dólar e à velocidade das intervenções teledirigidas das suas forças militares. Estas mudanças coincidiram com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS e da Guerra Fria. Diferentemente das duas guerras mundiais, que podem ser lidas como parte de uma mesma “guerra civil” européia, quase contínua, a Guerra Fria não teve nenhuma batalha na Europa e terminou no Iraque, na forma clássica das “guerras imperiais”, e sem a participação direta da URSS. Não houve, em 1991, nada parecido com os acordos interestatais assinados na Paz de Vestfália, de 1648; no Congresso de Viena, de 1815; no Congresso de Versalhes, de 1918; ou mesmo, nas reuniões não-conclusivas de Yalta e Potsdam, de 1945. Não foram definidas as novas regras em que se fundamentaria a governance global. Mesmo que todos reconhecessem a superioridade inconteste do poder militar, financeiro e informacional dos EUA, não se estabeleceu nenhum princípio normativo, nem acordo operacional sobre o uso das armas, da violência e da guerra; sobre a criação e legitimidade das novas leis internacionais; nem tampouco sobre o funcionamento do novo sistema financeiro global. Os atentados de 2001 apenas precipitaram o que vinha sendo engendrado no establishment da política externa norte-americana, desde a queda do Muro de Berlim. Por isto, o 11 de setembro se transformou num desses acontecimentos que levam a uma mudança brusca de rumo, mas que na verdade clarificam e precipitam decisões que vinham sendo tomadas, ainda que de forma mais lenta.

Para onde apontam estas mudanças, no longo prazo? Qual o seu significado para o futuro do projeto imperial americano? Em Diplomacia, Henry Kissinger sustenta a tese de que o establishment sempre esteve dividido e oscilando, desde o final do século XIX, entre duas grandes concepções sobre a política externa dos EUA. A primeira – inaugurada pelo presidente Theodore Roosevelt (1901-1908) – é partidária de uma presença ativa dentro do jogo político mundial, orientada pelo interesse do Estado americano e pela concepção européia de equilíbrio do poder. A segunda – identificada com o presidente Woodrow Wilson (1913-1921) – é partidária de uma liderança global dos EUA, com base na superioridade das virtudes e na defesa dos valores fundamentais da sociedade e do sistema político americano. A primeira, mais conservadora, coloca o país na posição de “farol do mundo”, e por isto, na prática, tendeu ao isolacionismo. A segunda, apesar de liberal, também patrocinou várias intervenções salvacionistas. Segundo Kissinger, estas posições se alternaram, durante o século XX, num movimento pendular que ora deu a vitória ao “realismo” de Nixon, Reagan e Bush, ora ao “idealismo” de Kennedy, Carter e Clinton. O que Kissinger não consegue explicar é a passagem de um para o outro tipo de política externa. Além disso, se a sua descrição cabe como uma luva na política democrata dos anos 90, o mesmo não se pode dizer com relação à nova política republicana, pós-11 de setembro. A “era Clinton” foi rigorosamente idealista e messiânica, na sua defesa universal do liberalismo econômico e político; dos mercados e da democracia; dos direitos humanos e das “intervenções humanitárias”; dos regimes e dos sistemas colegiados de governança global. E foi rigorosamente liberal ao apostar na utopia da globalização e num sistema mundial de segurança coletiva, sob a hegemonia americana. Logo depois da posse de Bush, os primeiros passos externos de sua administração pareciam apontar para um novo período de isolacionismo, arrogante e exemplar. Entretanto, depois do 11 de setembro, a doutrina Bush de combate ao terrorismo transformou o “interesse nacional americano” no princípio legitimador de um novo tipo de interven­cionismo político-militar, permanente, preventivo e global. Seguindo a trilha de Reagan, Bush também propõe uma divisão do mundo entre o bem e o mal, mas sua guerra é contra um inimigo invisível, não identificado com nenhum Estado em particular. Apesar disso, também se propõe levar a extremos o enfrentamento, supondo que o inimigo, invisível e universal, possa ser destruído, como nas “guerras absolutas”. Este paradoxo é o que explica que estejamos frente a uma guerra permanente e cada vez mais extensa: no início, seu objetivo era destruir a rede do Al-Qaeda e o regime talibã. Mas hoje, em nome da mesma guerra, as tropas americanas estão presentes no Afeganistão, Argélia, Somália, Yêmen, Filipinas, Indonésia e Colômbia. A própria definição do inimigo foi modificada, três vezes pelo menos: eram as “redes terroristas”; depois, o “eixo do mal”, constituído por Iraque, Irã e Coréia do Norte; e agora, os “Estados produtores de armas de destruição de massa”, categoria que inclui quase todos os aliados americanos no Afeganistão.

Na nova doutrina, o adversário é “infinitamente elástico”, pois não é uma religião, ideologia, nacionalidade, civilização ou Estado, e pode ser redefinido a cada momento. Por trás disso, observamos um deslizamento do objetivo central da doutrina Bush na direção de uma estratégia de “contenção universal”, cujo objetivo último é impedir o aparecimento, em qualquer ponto do mundo e por tempo indefinido, de qualquer outra nação, ou aliança de nações, que possa se transformar numa potência, capaz de rivalizar com os EUA. Uma estratégia de “contenção”, como a proposta por George Kennan com relação à URSS e adotada pelos EUA depois de 1947, mas agora com um agravante: o que se pretende não é mais a contenção de uma ideologia ou de um Estado nacional em particular, e sim o bloqueio ou destruição preventiva de qualquer tipo de poder que se proponha competir globalmente com os EUA. É isto que explica o deslocamento do foco na direção de um inimigo que, ao fim e ao cabo, pode ser qualquer Estado, mesmo aliado, que demonstre intenções expansivas. Por isso os EUA não assinaram o Tratado de Não Proliferação de Armamento Nuclear, abandonaram o Tratado Antimísseis Balísticos, e decidiram construir um “Escudo Antimísseis”. Foram decisões destinadas a enviar uma clara mensagem ao sistema político mundial: a de que estão dispostos e vão manter uma dianteira tecnológica e militar inquestionável com relação aos demais Estados do sistema. Isso dará a eles, por tempo indeterminado, o poder de arbitrar isoladamente a hora e o lugar em que seus adversários reais, potenciais ou imaginários devam ser “contidos”, seja por meio da mudança de regimes e governos ou da ação militar direta.

Talvez seja este o único ponto de contato entre a nova doutrina e algumas áreas periféricas, fora da zona poten­cial de conflito e que, portanto, carecem de importância estratégico-militar, ou mesmo política, para o Império, como a América do Sul e o Brasil, que durante a Guerra Fria já não possuíam importância estratégica. A política de Bush repercute sobre o continente apenas enquanto recoloca a possibilidade de apoio norte-americano a mudanças inconstitucionais de governos e regimes, feitas à sombra da guerra contra o narcotráfico, ou contra “focos terroristas”, definidos e identificados pelo próprio governo americano, sem consulta aos governos locais.

O desafio da periferia imperial
Durante os anos 90, o crescimento econômico americano e a globalização do capital financeiro mantiveram a crença numa coincidência de interesses entre os países desenvolvidos e o resto do mundo. A volta da recessão mundial, em 2001, a intensificação dos conflitos militares na periferia e as crises nos “mercados emergentes” colocaram em primeiro plano um desafio próprio da natureza deste império informal, mas que se agudizou com o fim da Guerra Fria: o que fazer ou como renovar suas velhas estruturas de dominação global? O que fazer com as antigas colônias e com os Estados inventados pelos europeus, na América, na Oriente Médio, na Ásia e na África? Como manter a “ordem” e administrar as crises e as moratórias nacionais que deverão se multiplicar na periferia do sistema? Como dividir entre as grandes potências os custos imediatos e as tarefas futuras? Quem assumirá a responsabilidade pelo quê e onde?

Entre 1940 e 1990, o fim dos impérios europeus e a descolonização da África e da Ásia originaram cerca de 100 novos Estados nacionais. Em 2001, dos 188 Estados membros da ONU, 125 haviam sido, em algum momento, colô­nias européias que se independizaram, de forma concentrada, em duas grandes ondas: a primeira, no início do século XIX, na América, e a segunda, depois da 2ª Guerra Mundial, na África e na Ásia. Curtos pedaços de uma história muito longa: a do próprio sistema econômico e político mundial, nascido no século XV como projeção “extraterritorial” do poder europeu. Portugal deu o primeiro passo, ao tomar Ceuta dos mulçumanos, no norte da África, em 1415. Menos de um século, em 1494, já repartiam o mundo, definindo em Tordesilhas a primeira “ordem mundial européia”. Numa caminhada nunca mais interrompida, nos 500 anos seguintes, 8 países, apenas 1,6% do território global (Portugal, Espanha, Holanda, França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha e Itália), foram submetendo praticamente o resto do mundo, pela conquista militar e territorial, por meio do mercado e pelo poder dos seus capitais. Movimento expansivo que acompanha o desenvolvimento capitalista e é uma dimensão constitutiva própria do sistema mundial moderno. Uma estrutura hierárquica de dominação global, centrada na Europa, e depois na sua ex-colônia norte-americana, que assumiu várias formas através dos séculos: colônias, domínios, províncias de além mar, mandatos, protetorados etc. Também aqui se pode falar em duas grandes ondas, só que, ao contrário das outras, estas foram expansivas e muito mais prolongadas. A primeira vai do século XV ao XVIII e é interrompida pelas independências dos Estados americanos, tornados imediatamente periferia econômica da Inglaterra. A segunda vai do século XIX ao XX e coincide com a competição imperialista européia pelo controle da Ásia e da África. Esta segunda expansão foi “debelada” depois da 2ª Guerra Mundial, mas o controle europeu, ou “ocidental” do mundo, se manteve sob a tutela da competição entre a URSS e os EUA, o verdadeiro cinturão de segurança que manteve a “ordem” nessa galáxia de Estados nacionais.

Immanuel Wallerstein destaca a importância que os EUA e a URSS tiveram na descolonização do século XX, defendendo, desde a 1ª Guerra Mun­dial, o direito à autodeterminação dos povos e, depois da 2ª Guerra Mundial, o direito ao desenvolvimento econômico nacional. Entretanto, no início da década de 70, o desenvolvimentismo já entrara em crise na maioria dos países periféricos. Foi esse o momento em que o establishment da política externa norte-americana começou a rever sua política econômica internacional e o apoio incondicional aos projetos desenvolvimentistas. Sem dúvida, uma resposta à sua própria crise hegemônica e à crise econômica mundial, mas também resposta ao desafio da Opep, com relação ao aumento dos preços do petróleo, e ao aparecimento do Grupo dos 77 que, na Sexta Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU, em 1974, manifestou-se favorável à criação de uma nova ordem econômica internacional, incluindo a formação da Unctad.

Iniciava-se uma nova estratégica econômica americana, tendo como premissa a aceitação da impossibilidade do desenvolvimento generalizado, passando a priorizar países e regiões. Mas as condições políticas que permitiram associar a nova orientação geoeconômica com o abandono do desenvolvimentismo foram criadas nos anos 80, com Reagan e sua restauração liberal-conservadora. A renegociação das dívidas externas da periferia latino-americana permitiu que a estratégia de “cooptação seletiva” pudesse se associar de forma mais clara e definitiva ao projeto de restauração dos princípios liberais: mercados desregulados, economias abertas e exportadoras e Estados liberais não intervencionistas. Principais tópicos da agenda imperial que, no início dos anos 90, John Willliamson apelidou de “Consenso de Washington”.

Recentemente, Richard Cooper, conselheiro político internacional de Tony Blair, explicitou o verdadeiro significado deste consenso para a periferia do sistema e a relação congênita entre a globalização, as políticas econômicas liberais e o projeto de construção de “um novo tipo de imperialismo aceitável ao mundo dos direitos humanos e dos valores cosmopolitas”. Apesar de polêmico, Robert Cooper não inventou nada de novo, apenas explicou o fun­cionamento da ordenação hierárquica e da ação disciplinar do poder mundial, que vem sendo praticada desde que o “desenvolvimentismo” saiu da agenda econômica dos países centrais com relação à periferia. Para Cooper, as grandes potências se “tornaram honestas e não querem mais lutar entre si”, fazendo parte de um novo clube, o dos “Estados pós-modernos”, pacíficos e colaboradores. Uma minoria obrigada “a exportar estabilidade e liberdade” para os demais Estados, “pré-modernos”, que nasceram da decomposição do velho imperialismo e onde reina quase sempre a barbárie. Na relação entre estes mundos, Cooper vê três novas formas de imperialismo: um “imperialismo cooperativo”, entre as nações pós-modernas, chamadas no século XIX de “civilizadas”; um “imperialismo baseado na lei das selvas”, que rege as relações entre os Estados civilizados e os “pré-modernos" ou “fracassados”, incapazes de assegurar os seus territórios nacionais; e um terceiro, denominado de “voluntário da economia global”, “gerido por um consórcio internacional de instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial” e com a aceitação por parte dos subordinados de “uma nova teologia da ajuda que enfatiza a governança e defende o apoio aos Estados que se abram e aceitem pacificamente a interferência das organizações internacionais e dos Estados estrangeiros”. Cooper descreve apenas o que já vem sendo feito pelas armas e pelo capital, na África, na Ásia Central e na América Latina, casos paradigmáticos de novas formas de imperialismo: o da “lei da selva”, na relação com os Estados “pré-modernoss”; e o da “lei do mercado”, com relação aos Estados bem comportados, como a América Latina nos anos 90.

A herança desta década, e que se transformou no desafio central da política econômica americana, foi o aumento geométrico do endividamento da periferia que aderiu às políticas liberais e o desequilíbrio crônico dos balanços de pagamentos. Este, apenas transitoriamente compensado pela entrada de investimento direto destinado, sobretudo, às privatizações e às fusões e aquisições de empresas privadas locais, desnacionalizadas durante os anos 90. O montante deste endividamento, que era de 750 bilhões de dólares na hora da crise de 1982, hoje atinge cerca de 2.570 trilhões de dólares, e é responsável, em última instância, pelas crises financeiras cada vez mais freqüentes e destrutivas, como a da Rússia e, mais recentemente, a da Argentina.

O lugar do Brasil no império
O Brasil e os demais Estados latino-americanos permaneceram, no século XIX, como um laboratório de experimentação do imperialismo de livre-comércio, liderado pela Inglaterra. Quando os Estados europeus optaram por uma solução colonial para seus domínios africanos e asiáticos, na segunda metade do século XIX, a América Latina continuou formalmente independente, ainda que submetida ao capital financeiro inglês e à divisão internacional do trabalho, determinada pelo “centro cíclico principal do sistema”. É neste momento que o Brasil define sua primeira forma de inserção no sistema político-econômico e, apesar de não ser um dominium anglo-saxão, estava submetido ao seu sistema monetário e financeiro e espelhava-se, cada vez mais, no modelo político e na legislação norte-americana. A República consolidou um Estado nacional frágil, sem capacidade nem pretensões expansivas. Do ponto de vista estritamente econômico, até a crise mundial de 1930, o Brasil foi uma economia primário-exportadora, com uma trajetória de crescimento e modernização restrita às atividades ligadas à exportação e submetendo-se inteiramente às regras e políticas liberais impostas pelo padrão-ouro.

Este tipo de inserção internacional colocou o desenvolvimento econômico brasileiro frente a um problema crônico de “restrição externa”, relacionado ao seu balanço de pagamentos. Até os anos 30, o crescimento do país só foi possível graças à complementaridade entre a economia brasileira e a mundial e, sobretudo, à sua integração com as finanças inglesas que permitiram que este obtivesse, nas fases recessivas do ciclo, o financiamento externo indispensável para evitar crises mais agudas no balanço de pagamentos, como a que o levou à Moratória, em 1897. Entretanto, com a substituição da Inglaterra pelos EUA como centro “cíclico principal” da economia capitalista, estas condições externas favoráveis aos países periféricos deixaram de existir. O coeficiente de importação da economia americana era muito baixo e sua pauta exportadora/importadora não era complementar e sim competitiva com relação à pauta dos países periféricos.

A crise dos anos 30, derivada em parte do desmonte do padrão ouro, da retração do comércio mundial e da queda nos preços das commodities, obrigou o Brasil a um processo, quase espontâneo, de “substituição de importações” e a um protecionismo pragmático para enfrentar a escassez de divisas, impulsionando a industrialização brasileira. Logo, a substituição de importações espontânea enfrentou limites claros e a retomada do desenvolvimento só foi possível quando, a partir de 1937/38, a restrição externa deu origem a um projeto de industrialização liderado pelo Estado e voltado para o mercado interno.

Depois da 2ª Guerra, a bipolaridade entre EUA e URSS teve papel decisivo nos caminhos do desenvolvimento brasileiro e na forma pela qual o país enfrentou sua restrição externa crônica. Não houve Plano Marshall para a América Latina e nem um projeto de desenvolvimento regional. Muito menos o Brasil fez parte dos países cujo “desenvolvimento a convite” foi patrocinado – por razões geopolíticas – pelo governo norte-americano. Sem posição relevante na Guerra Fria, ainda assim o Brasil foi colocado na condição de parceiro privilegiado dos EUA, dentro da periferia sul-americana. Tornou-se um laboratório experimental de uma estratégia associada – pública e privada – de desenvolvimento, que contou com o apoio dos organismos multilaterais e com o investimento direto do capital privado de quase todos os países do núcleo central do sistema capitalista. Estes investimentos foram o único item com que a economia brasileira pode contar, em termos da conta de capital, e tiveram efeito duvidoso na geração de divisas, dado que se voltaram, em grande medida, para o mercado interno. Assim, a geração de divisas e o alívio da restrição externa ficaram condicionados pelo crescimento das exportações e, apesar da extensão da presença do Estado no “período desenvolvimentista”, em que o Brasil manteve uma das mais elevadas taxas médias de crescimento mundial, isto não significou a existência de um Estado forte que tivesse um projeto claro de poder nacional.

Na década de 70, dada a disponibilidade de liquidez internacional, este quadro sofreu uma modificação importante, permitindo o afrouxamento da restrição externa, em termos absolutos. A abundância de crédito privado para os países em desenvolvimento acelerou suas taxas de crescimento e, no caso do Brasil, permitiu que o país avançasse no processo de industrialização, iniciado nos anos 50/60, para complementar sua matriz industrial. Em contrapartida, o grau de endividamento externo foi além das possibilidades do balanço de pagamentos, e, em grande medida, foi responsável pelo estrangulamento do crescimento no momento em que a economia brasileira foi submetida – no final dos anos setenta e início dos oitenta – a quatro choques fatais: a elevação das taxas de juros internacionais; a recessão mundial; a deterioração dos termos de troca; e a interrupção do financiamento externo, depois da moratória mexicana. A severa crise do balanço de pagamentos obrigou os governos da década de 80 a fazer uma política de promoção ativa das exportações e de controle das importações, para honrar o serviço da dívida externa. Como conseqüência, o país viveu uma recessão, seguida de uma redução de sua taxa média de crescimento, ao que se somaram várias desvalorizações cambiais e a aceleração da inflação.

Nos anos 90, a adesão das elites brasileiras ao novo mito da modernidade, associada à utopia da globalização e à onda expansiva de investimentos externos que retornaram ao Brasil e à América Latina, depois da renegociação da sua dívida externa, pôs fim à “era desenvolvimentista”. Houve uma reversão nos fluxos de capital, viabilizada pela desregulamentação dos mercados financeiros e pela securitização das dívidas externas, alterando a configuração dos seus balanços de pagamentos. A abertura comercial e a sobrevalorização da taxa de câmbio levaram à explosão das importações e à estagnação das exportações, consolidando-se um déficit crônico em conta corrente, financiado pela conta de capital, cujos resultados positivos são induzidos pelos diferenciais entre as taxas de juros doméstica e internacional. A despeito de não haver restrição externa absoluta, a taxa de crescimento da economia brasileira permaneceu em níveis muito baixos. Por mais paradoxal que pareça, a reversão do fluxo de capital, nos anos 90, não alterou o fato de que a restrição externa ainda seja o principal obstáculo ao crescimento brasileiro. Mas agora, ao contrário de décadas anteriores, na ausência de políticas ativas de desenvolvimento, a única forma de ajuste da conta corrente, no caso de algum choque externo adverso, passou a ser a redução das importações, por meio de políticas fiscais contracionistas e de restrição ao crédito, criando um círculo vicioso que conduz a uma nova redução da atividade econômica.

Hoje, sabemos que a onda expansiva de investimentos externos, associada à abertura financeira e comercial da economia brasileira, não teve o mesmo dinamismo do período desenvolvimentista. O que é pior, passada uma década de ilusão, generaliza-se a convicção de que o mais recente ciclo de “globalização” econômico-financeira da economia brasileira vai perdendo fôlego e que ela volta a enfrentar-se com sua velha e permanente “restrição externa”, uma espécie de sinal indelével do lugar periférico do Brasil, nos impérios britânico e norte-americano.

O projeto desenvolvimentista brasileiro não esteve associado a qualquer idéia de potência, embora tentasse definir uma política externa relativamente autônoma aos EUA em, pelo menos, dois momentos de mudanças geopolíticas mundiais, nas décadas de 1930 e 1970, com Vargas e com Geisel, que sonhou com uma potência de porte médio, com liderança regional. Entretanto, nos anos 90, a nova estratégia liberal de integração do governo brasileiro apostou no fim das fronteiras nacionais e em uma nova sociedade civil e política internacional, ou global. Seu diagnóstico era simples: a globalização era um fato novo, promissor e irrecusável, que impunha uma política de abertura e interdependência irrestrita. O único ca­minho de defesa dos interesses nacio­nais, num mundo onde já não existi­riam mais fronteiras nem ideologias. Promoveu-se uma transnacionalização radical da estrutura produtiva e dos centros de decisão brasileiros, provocando uma fragilização do Estado e da economia, deixando-os ainda mais dependentes do capital privado internacional e do apoio do governo norte-americano, sobretudo nas situações de crise. Além disso, o governo brasileiro reatou as relações de cooperação militar com os EUA, interrompidas em 1977, por Geisel. Nestas condições, é fácil entender a fragilidade do Estado brasileiro a partir do momento em que a política externa norte-americana trocou a linguagem da globalização pela linguagem imperial do poder das armas, pós 11 de setembro. Na nova conjuntura internacional, o Brasil ocupa uma posição ambígua, em que sua pouca importância geopolítica contrasta com o peso que sua dívida externa possui para os interesses privados norte-americanos. Com cerca de 25% do total, o país detém hoje a segunda maior dívida externa mundial.

Impasse e caminhos
Arrefecidas as ilusões e a euforia do início da década de 90, volta-se a falar em crescimento e em desigualdade social. Ficaram cada vez mais claras as fragilidades do “modelo de desenvolvimento neoliberal”: a fragilidade externa e seus desajustes estruturais internos, provocados pela dependência financeira internacional, pela abertura comercial, pelo alto grau de desindustrialização e desnacionalização e pelo seu caráter violentamente antipopular. Os novos governos liberais supunham que as reformas institucionais, somadas a políticas macroeconômicas ortodoxas e, sobretudo, à desregulação dos sistemas econômicos, permitiriam a convergência dos preços internacionais e uma situação de equilíbrio que seria condição mais que suficiente para manter o fluxo constante e massivo do investimento direto estrangeiro, o carro-chefe do novo modelo de desenvolvimento.

Já na segunda metade dos anos 90, mesmo nos organismos multilaterais de Washington, este consenso perdia força na medida que se sucediam as crises financeiras de 1994, no México; 1998, no Brasil; 2001 na Argentina; e em 2002, de novo no Brasil. Quando se olha para o panorama da América do Sul, depois de uma década, se constata que a pobreza atingiu cerca de 44% da população, enquanto o desemprego duplicou. Hoje, as projeções de crescimento para 2002 são negativas e a região já amarga uma queda de 30% no volume de entrada de investimento estrangeiro direto. A Argentina deve fechar o ano de 2002 com uma queda de 12% do PIB, liderando uma recessão e/ou desintegração econômica que atinge também o Uruguai, o Paraguai, o Equador, a Bolívia, o Peru e a Venezuela, enquanto a Colômbia enfrenta um processo de guerra e desintegração territorial.

Uma certeza percorre a América Latina: a década liberal foi um retumbante fracasso e deixou o continente sem rumo. Sua situação relembra um quadro parecido, na segunda metade do século XIX, quando os ingleses e demais países europeus também tiveram que enfrentar a expansão geométrica do endividamento de suas periferias e, como conseqüência, suas falências e moratórias nacionais. Esta é uma história conhecida e que se repetiu inúmeras vezes, começando sempre pela assinatura, às vezes pela força, de tratados que obrigavam os signatários a eliminarem suas barreiras comerciais, permitindo o livre acesso a seus territórios das mercadorias e dos capitais europeus. Esses tratados foram estabelecidos com o Império Otomano, em 1838, e depois com a China, o Japão, o Egito, a Tunísia, o Marrocos, o Afeganistão, o Iraque e vários outros países que acabaram se especializando na exportação de matérias primas necessárias à industrialização européia. Seus governos eram obrigados a se endividarem junto à banca privada, sobretudo inglesa e francesa, devido à perda de arrecadação com o fim das tarifas comerciais e devido à construção da infra-estrutura, indispensável às exportações. Nos momentos de retração cíclica das economias européias, estes países enfrentaram, invariavelmente, problemas de balanço de pagamentos, sendo obrigados a renegociar suas dívidas externas ou declarar moratórias nacionais. Na América Latina, no século XIX, as dívidas e moratórias foram solucionadas com renegociações com os credores e transferência dos custos para as populações nacionais mas, no resto do mundo, a história foi diferente. Primeiro os credores criaram comitês de administração das dívidas públicas, que assumiam a tutela fiscal e financeira dos países endividados. Assim aconteceu na Tunísia, em 1869; no Egito em 1880; no Império Otomano, em 1881; e em quase todos os países que haviam assinado os famosos “tratados desiguais”. Quando o problema se manteve, ou se agravou, a solução encontrada foi a tomada direta do poder pelos Estados europeus mais atingidos pelas situações de inadimplência.

A grande diferença com o que está se passando na América Latina e no Brasil é que em 1880 já havia consenso entre as grandes potências sobre o que fazer. Elas já haviam abandonado o imperialismo do livre-comércio e decidido seguir o caminho do expansionismo territorial e do colonialismo. Hoje, pelo contrário, elas resistem a se envolver em qualquer tipo de dominação colonial direta que as comprometa com problemas políticos e administrativos fora de seus territórios. Está sobre a mesa, nos organismos multilaterais de Washington, a proposta da economista Anne Krueger, diretora-adjunta do FMI, de criação de um tribunal de arbitragem que viria ser a instância responsável pela reestruturação das dívidas dos países em situação falimentar. Algo muito parecido com o que foram os comitês de administração das dívidas, no século XIX. Entretanto, as resistências de Washington são fortes, porque a posição dominante na administração Bush, a do secretário do Tesouro, Paul O’Neil, é partidária de que os mercados devem aplicar o devido castigo aos governos e países que não obedecem e nem se comportam segundo as regras da “economia global”. Até nova ordem, são consideradas exceções estratégicas as ajudas concedidas ao Paquistão e à Turquia, e agora ao Uruguai e ao Brasil.

Fora do governo Bush, no meio acadêmico e em organismos multilaterais, cresce a importância dos que criticam o Consenso de Washington. Neste debate, destaca-se Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial, presidente da Assessoria Econômica da Presidência dos EUA, na Administração Clinton, e Prêmio Nobel de Economia de 2001. Stiglitz, em trabalhos recentes, considera que o Consenso não oferece respostas à questão do desenvolvimento, exatamente porque se submete à sua obsessão anti-inflacionária, fundada em convicções não comprovadas historicamente sobre a própria natureza do processo inflacionário. Por fim, questio­na a eficácia dos programas de privatização e defende o papel ativo do Estado na regulação da economia e na implementação de políticas industriais e de bem-estar social. Mas esta é uma posição minoritária dentro da política econômica internacional dos EUA. Também na periferia do sistema, e sobretudo no Brasil, ainda existem fortes núcleos de apoio às políticas liberais. Acreditam que as crises são passageiras e seriam o preço inevitável a ser pago em nome de um futuro promissor, desde que os governos se mantenham fiéis e irredutíveis na defesa do rigor fiscal e monetário. Apostam, em última instância, que a sucessão de crises cambiais acabará levando a uma dolarização da economia, que poderia ser a versão contemporânea do que se passou no século XIX, em particular com as “colônias brancas” da Inglaterra, como o Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Contra este pensamento, é cada vez maior o número dos que defendem uma revisão e mudança da política econômica e da estratégia do Brasil dentro da geopolítica do Império americano. Sabem que a globalização financeira não alterou algumas condições e contradições básicas do capitalismo, e que também o desafio da pobreza e da exclusão econômica e social segue sendo um problema dos Estados nacionais, onde se geram e acumulam os recursos capazes de alterar a distribuição desigual da riqueza e do poder entre os grupos sociais. Daí sua defesa de uma nova estratégia nacional que não incorra nos erros do velho desenvolvimentismo e que se sustente nos princípios da igualdade e da soberania. Dois problemas, entretanto, se colocam no caminho desta mudança de rumo. O primeiro, e mais imediato, tem a ver com o compromisso do país de honrar um superávit fiscal de 3.88%, estabelecido no acordo com o FMI. Como mantê-lo e cumprir com metas de crescimento e diminuição do desemprego? Dificilmente as exportações constituirão uma demanda suficiente, capaz de reduzir a restrição de divisas. Se não for possível gastar em reais pelo compromisso fiscal, dificilmente o emprego subirá, mesmo se a taxa de juros cair, porque não há razão para os empresários investirem numa economia deprimida como a nossa. A substituição de importações, necessária para um melhor desempenho nas contas internas, poderá dar algum ímpeto ao crescimento, no entanto será limitado seu impacto sobre o crescimento global e sobretudo sobre o nível de emprego. O essencial para refletir é que se forem mantidas as metas de superávits primários não dá para crescer e gerar empregos. O segundo problema, de mais longo prazo, tem a ver com o que a história nos ensina, que nenhum projeto de desenvolvimento nacional jamais se construiu apenas a partir do somatório dos “interesses materiais” dos vários grupos e classes sociais. Aparentemente, estes projetos só se viabilizaram quando uma situação de desafio externo gerou uma vontade política e solidária nacional, capaz de se impor aos custos de um projeto desta natureza. Parafraseando Lukács, se poderia dizer que também neste caso, não há uma passagem automática da consciência “em si” para a consciência “para si”, dos povos, territórios e nações.

Manifesto

No dia 19 de setembro de 2002, mais de 4 mil artistas, intelectuais, acadêmicos e líderes religiosos estadunidenses lançaram em Nova York, uma conclamação à resistência contra as políticas de guerra e repressão desencadeadas pelo governo George W. Bush desde o 11 de setembro de 2001. O manifesto, que tem o título de Não em nosso nome, foi publicado no New York Times.

Insistindo que o presidente Bush e seu governo não falam em nome de todos os norte-americanos, o manifesto tem como objetivos: informar ao mundo que nem todos os cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos estão de acordo com as políticas da Casa Branca e conclamar o(s) povo(s) a resistir a essas políticas.

Entre os 4 mil signatários do documento estão: Susan Sarandon (atriz), Kurt Vonnegut (escritor), Robert Altman (diretor de cinema), Gore Vidal (escritor), Danny Glover (ator), Barbara Kindsolver (escritora), Marisa Tomei (atriz), Russel Banks (escritor), Alice Walker (escritora), Aaron MacGruder – Boondocks (caricaturista), Jane Fonda (atriz), Ozomatli (banda de rock de Los Angeles), Oliver Stone (diretor de cinema), Laurie Anderson (compositora e dramaturga), Amy Ray (Indigo Girls), Ani Di Franco (cantora), Eve Ensler (dramaturga), Peter Seeger (cantor), Brian Eno (músico), Steve Earle (músico), Tony Kushmer (dramaturgo), Mark Strand (poeta), Gloria Steinen, Martin Luther King III, Edward Said, Howard Zinn, Angela Davis e Noam Chomsky. Para ver a lista completa, acesse www.nion.us. Leia abaixo a íntegra do manifesto.

Não em nosso nome! Conclamação de intelectuais e artistas estadunidenses à resistência contra contra a guerra

Que não se diga que nos Estados Unidos ninguém fez nada quando seu governo declarou uma guerra sem limites e instaurou novas medidas repressivas. Os signatários desta Conclamação convidam a população a resistir às políticas e às diretrizes gerais que emergiram após 11 de setembro, e que põem em grave perigo os povos do mundo.

Nós cremos que as pessoas e as nações têm direito a determinar seu próprio destino, livres de qualquer coerção militar das grandes potências. Cremos que todas as pessoas detidas ou perseguidas pelo governo estadunidense devem ter os mesmos direitos. Fazer perguntas, criticar e dissentir são atitudes que devem ser valorizadas e protegidas.

Repressão injusta e imoral
Cremos que as pessoas com consciência devem assumir a responsabilidade das ações de seus governos, e acima de tudo opomo-nos às injustiças cometidas em nosso nome. Convidamos os estadunidenses a resistir frente à guerra e à repressão que foram lançadas sobre o mundo pela administração de Bush. É injusta, imoral e ilegítima. Decidimos fazer causa comum com todos os povos do mundo.

Contemplamos com angústia os terríveis acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Também choramos milhares de vítimas inocentes e nos horrorizamos ante a terrível carnificina, que nos trouxe à memória cenas similares em Bagdá, Panamá ou, faz uma geração, no Vietnã. Como milhões de estadunidenses, nos perguntamos como é possível que algo assim tenha ocorrido.

Mas enquanto a dor estava apenas em seus começos, as mais altas instâncias desencadearam seu espírito de vingança. Cunharam uma consigna simplista: “bons contra maus” , que imediatamente foi adotada por meios de comunicação submetidos e acovardados. Disseram-nos que o simples fato de fazer pergunta sobre esses terríveis acontecimentos roçava a traição. Não devia haver debate algum. Não havia lugar para dúvidas éticas ou políticas. A única resposta possível era a guerra no exterior e a repressão dentro de casa.

Em nosso nome, a administração Bush, com a quase unanimidade do Congresso, atacou o Afeganistão e se arrogou, juntamente com seus aliados, o direito de destruir forças militares em qualquer lugar e momento. As brutais repercussões se fazem, sentir desde as Filipinas até a Palestina, onde os tanques e bulldozers
israelenses traçaram um terrível caminho de morte e destruição. E o governo se dispõe agora a empreender uma guerra total contra o Iraque, país que não tem qualquer relação com os fatos de 11 de setembro. Que classe de mundo será esta, se se permite ao governo dos Estados Unidos lançar comandos, assassinos e bombas onde quer que deseje?

Em nosso nome, o governo criou nos Estados Unidos duas classes de cidadãos: aqueles aos quais pelo menos se lhes prometem direitos básicos do sistema legislativo e aqueles que agora não parecem ter direito algum. O governo prendeu mais de mil imigrantes e os encarcerou em segredo e sem limite de tempo. Centenas de pessoas foram deportadas e centenas continuam na prisão. Pela primeira vez, em décadas, os procedimentos de imigração submetem determinadas nacionalidades a um tratamento desigual.

Em nosso nome, o governo desencadeou uma onda de repressão na sociedade. O porta-voz do presidente intimidou as pessoas dizendo que “tenham cuidado com o que dizem”. Os artistas, intelectuais e professores dissidentes vêem seus pontos de vista distorcidos, atacados e eliminados. O chamado Patriotic Act, ao lado de um sem fim de medidas similares nos diversos estados, dá à polícia novos e mais amplos poderes de investigação e seqüestro, com acobertamento de procedimentos secretos.

Em nosso nome, o Executivo usurpou constantemente os papéis e funções das outras instâncias de governo. Uma ordem do Executivo pôs em funcionamento tribunais militares. Uma assinatura presidencial é suficiente para definir como “terrorista” determinado grupo de pessoas. Devemos levar muito a sério os governantes, quando falam de uma guerra que durará uma geração, e de uma nova ordem. Achamo-nos ante uma nova política interna que gera e manipula o medo para limitar os direitos.

Há uma estratégia mortal nos acontecimentos dos últimos meses, que deve ser vista como o que é, e frente a qual há que resistir.

Demasiadas vezes na história, a população esperou para resistir até o momento quando já era demasiado tarde. O presidente Bush declarou: “Ou está conosco, ou está contra nós”. Esta é a nossa resposta: nós nos negamos a que fale em nome de todos os estadunidenses. Não entregaremos nossas consciências em troca de uma oca promessa de segurança. Dizemos não em nosso nome. Nos negamos a ser parte destas guerras e rechaçamos todas as ações empreendidadas em nosso nome ou por nosso bem-estar. Estendemos a mão aos que no mundo sofrem em conseqüência dessas decisões.

Unidade para enfrentar o desafio
Mostraremos nossa solidariedade com as palavras e a ação. Os signatários desta conclamação convidamos todos os estadunidenses a se unirem a este desafio.

Aplaudimos e apoiamos as propostas em curso, uma vez que reconhecemos a exigência de fazer muito mais para pôr fim a esta loucura. Inspiramo-nos na decisão dos reservistas israelenses que, assumindo o risco pessoal, declararam que há um limite e se negam a servir em Gaza e nos territórios ocupados.

Inspiram-nos numerosos exemplos de resistência e consciência que nos oferece a história dos Estados Unidos: desde os que combateram a escravidão, até os que puseram fim à guerra no Vietnã descumprindo ordens, negando-se a se incorporar às fileiras e apoiando os que resistiam.

Não permitamos que o mundo que nos contempla se desespere por nosso silêncio e nossa incapacidade de ação. Façamos com que esse mundo possa sentir o nosso compromisso. Resistiremos frente à máquina de guerra e à repressão, e faremos todo o possível para detê-las.

José Luís Fiori é cientista político, professor do Instituto de Economia da UFRJ

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