Sociedade

O país pode e deve ser o articulador de um processo de superação do fracasso da Cúpula de Joanesburgo (Rio+10) e promotor de um modelo de desenvolvimento que não seja excludente e nem predador de recursos naturais

Desde o fim da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), o mundo sentiu a necessidade de uma instituição global que zelasse pela paz e pela segurança de toda a comunidade internacional. Com a 2ª Guerra (1939-1945) e todas as atrocidades cometidas no período, e com a ampliação de tensões em várias regiões do planeta, esse sentimento se tornou ainda mais forte.

Pensada como sucessora da Liga das Nações, a ONU (Organização das Nações Unidas) foi oficialmente lançada em junho de 1945, já com representantes de cinqüenta países. Seus objetivos oficiais são salvaguardar a paz mundial; proteger os direitos humanos; fomentar direitos iguais a todos os povos e melhorar os padrões de vida no mundo.

Apesar do caráter pacifista e conciliador, a ONU tem como pilar central o Conselho de Segurança, formado por dez membros não-permanentes e cinco representantes fixos com direito de veto – China, França, Grã-Bretanha, Rússia e Estados Unidos. Além disso, existe determinação para que cada membro do Conselho disponha de Forças Armadas para promover “missões de paz” ou para eventualmente agir contra um “agressor”. A ONU acabou sendo alvo de críticas, como por exemplo pelo fato de a mesma se declarar “baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros” e, na verdade, ser dirigida por um grupo que dispõe do abusivo direito de veto no Conselho de Segurança, pos­suindo, desta forma, a capacidade de decidir pela paz ou pela guerra no mundo.

Ao longo da história, a entidade acabou direcionando suas ações para várias áreas, criando e/ou coordenando uma série de organismos especializados, como a Organização de Alimentação e Agricultura (FAO); a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco); a Organização Mundial da Saúde (OMS); a Organização Mundial de Comércio (OMC); o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

Atualmente, há grandes dificuldades por parte da ONU em controlar o aparato bélico global e em frear as grandes potências no seu ímpeto de fazer valer interesses próprios, como acontece em episódios de intervenção militar promovidos por grandes potências em países ditos subdesenvolvidos ou considerados perigosos à “ordem global”.

Com a ampliação crescente da consciência global sobre os problemas que as ações humanas vêm causando sobre o meio ambiente – principalmente por meio da ação de organizações não-governamentais pioneiras e de articulações da sociedade civil –, a ONU decidiu realizar em 1972, em Estocolmo (Suécia), a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Foi o primeiro grande encontro global sobre temas ecológicos. Na época, já eram questionados os limites do desenvolvimento frente a uma natureza finita e complexa.

Um dos princípios adotados na Conferência trazia a idéia de que “os recursos naturais: ar, água, terra, flora e fauna, e especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento”. A observação de temas como crescimento populacional, necessidade de crescimento econômico equilibrado, principalmente das nações em desenvolvimento, e conservação do meio ambiente, deu a largada para uma nova percepção sobre os recursos naturais.

Além disso, idéias até então consideradas românticas ou equivocadas, como a de que “o Homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Em larga e tortuosa evolução da raça humana neste planeta chegou-se a uma etapa em que, graças à rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o Homem adquiriu o poder de transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o cerca”, passaram a integrar a agenda oficial das nações, já colocando em questão o modelo de desenvolvimento adotado em escala planetária. Um outro resultado direto do evento foi a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

Em 1987, foi lançado o relatório Nosso Futuro Comum, também denominado Relatório Brundtland. O documento trouxe o hoje tão conhecido conceito de desenvolvimento sustentável – aquele que deve satisfazer as nossas necessidades sem prejudicar as das gerações futuras – e uma nova visão sobre o meio ambiente, com uma abordagem mais sistêmica das questões ecológicas.

No início dos anos 90, começaram as negociações para a realização, em 1992, da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Cúpula da Terra ou Rio 92), no Rio de Janeiro. Como fruto dessa conferência, foram assinados cinco documentos principais: Convenção sobre Biodiversidade; Convenção sobre Mudanças Climáticas; Agenda 21; Princípios para Administração Sustentável das Florestas; Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

O fracasso de Joanesburgo

Passados 10 anos, realizou-se em 2002 a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (de 26 de agosto a 4 de setembro em Joanesburgo, África do Sul), chamada no Brasil de Rio+10. Reunindo quase 60 mil pessoas de mais de 190 países, esse encontro se iniciou sob grandes expectativas. Os objetivos iniciais da Cúpula eram: avaliar avanços e retrocessos nos dez anos desde a Rio 92 e, principalmente, determinar no­vas e urgentes ações frente à crescente crise global. No entanto, em um ambiente marcado pela prepotência do governo George W. Bush e pela total falta de sensibilidade das lideranças mun­diais, a resposta que os “donos do mundo” apresentaram à problemática ambiental e ao aprofundamento do fosso entre ricos e pobres deixou muito a desejar.

Para a Cúpula de Joanesburgo, havia um forte sentimento de que era preciso levar o tema da sustentabilidade do campo dos discursos à esfera das ações práticas. E isso se deve a dois fatores. Primeiro, não haverá sustentabilidade sem redistribuição de riquezas, tanto na relação entre nações ricas e pobres quanto no âmbito interno dos países. Segundo, existe a necessidade urgente de modificação dos padrões de produção e de consumo, já que, se estendêssemos a todo o globo os atuais níveis dos países ricos, nosso planeta e nossa espécie sucumbiriam.

De uma conferência global, espera-se um plano de ação com metas e prazos de implementação claros, concretos e factíveis. No entanto, a maioria das propostas aprovadas ao fim do evento é de caráter voluntário, tem longo prazo para implementação e aposta nas diretrizes de mercado para solucionar problemas globais como a pobreza e a degradação ambiental.

Escudado na sua condição de sede da Rio-92 e de grande potência mun­dial da biodiversidade, o Brasil levou várias propostas a Joanesburgo, entre elas a chamada Iniciativa Energética, que sugeria a adoção de fontes renováveis em todo o planeta. Ficamos, no entanto, presos na polarização G-8 x G-77, enquanto deveríamos ter apostado mais nas alianças pontuais em torno de temas de interesse comum, formando outros blocos. É inegável que o Brasil deve participar e exercer sua liderança junto aos países em desenvolvimento, mas não podemos esquecer que, em alguns temas, como o da energia, há interesses inconciliáveis nesta articulação.

O fracasso da Rio+10 explicitou o enfraquecimento das Nações Unidas e o esgotamento dos mecanismos tradicionais de negociação nas relações multilaterais. Simultaneamente, se observa um processo de fortalecimento das ques­tões puramente econômicas e de entidades como Organização Mundial do Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial. Em Joanesburgo, na maioria das vezes em que houve embate entre os princípios ecológicos e de sustentabilidade e as regras econômicas, perderam os primeiros.

Essa tendência, de se impor e aceitar os ditames do mercado como a melhor solução para a crise socioambiental, se soma de forma preocupante a um panorama global totalmente diferen­ciado após os atentados de 11 de setembro, nos EUA. Aquele país, o que mais consome recursos naturais e gera resí­duos no planeta, parte para nova e explícita corrida imperialista, em que “ataques preventivos” são justificados pela ameaça à “soberania americana” e pelo temor à possibilidade de novos atentados. Devemos ter sempre em mente que a guerra é uma grande ameaça à sustentabilidade planetária. Como pano de fundo, os ideólogos norte-americanos viram na queda das torres do World Trade Center e no ataque ao Pentágono uma nova possibilidade para trazer à tona velhas mazelas – fomentar a violação de direitos humanos, recriar a idéia de um “eixo do mal”; fortalecer o mercado de armamentos e, paralelamente, disseminar o ideário neoliberal pelo planeta.

Com apoio ou conivência de muitas nações, os EUA e demais países hegemônicos tendem a elevar o protecionismo econômico, prejudicando os mercados de produtos primários e, em decorrência disso, provocar uma amplia­ção dos problemas sociais e ambientais nas nações chamadas subdesenvolvidas, atreladas a uma cadeia de consumo e de produção centrada no Primeiro Mundo.

Os maus resultados da Cúpula tornam ainda mais forte a necessidade de se trabalhar na implementação de ações concretas que levem à sustentabilidade, pois não há dúvidas de que a crise ambiental global se tornará mais aguda com a falta de compromisso dos países hegemônicos. Por isso, cresce a responsabilidade daqueles que acreditam num mundo sustentável e solidário e na elaboração de propostas reais para a redução dos problemas sociais e ambientais. E o grande ponto de confluência para isso deverá ser o 3º Fórum Social Mundial (janeiro de 2003, Porto Alegre), já chamado por alguns segmentos de Rio+11.

O Conselho Internacional do FSM definiu cinco eixos temáticos para o evento do próximo ano Desenvolvimento Democrático e Sustentável; Princípios e Valores, Direitos Humanos, Diversidade e Igualdade; Mídia, Cultura e Contra-Hegemonia; Poder Político, Sociedade Civil e Democracia; e Ordem Mundial Democrática e Paz. Cada eixo é um catalisador de preocupações, de propostas e de estratégias que já são desenvolvidas pelas organizações que participarão do processo. Será possível, então, dar passos reais para a criação de uma sociedade mais justa e igualitária.

O patrimônio brasileiro

O Brasil pode e deve ser o articulador de um processo de superação do fracasso da Cúpula de Joanesburgo e de um modelo global de desenvolvimento ultrapassado, excludente e predador de recursos naturais. Para tanto, precisamos desencadear um processo de valorização de nosso patrimônio natural, único no planeta, e buscar um modelo de desenvolvimento próprio, sem se espelhar em fórmulas desgastadas e moldadas a outras realidades. O país deve assumir sua posição de liderança entre os países em desenvolvimento, tornando-se o catalisador de bons exemplos e de boas práticas em termos de políticas públicas que tratem de crescimento econômico com sustentabilidade social e ambiental.

Além de enfrentar uma complexa e preocupante conjuntura internacional no próximo período, o Brasil terá a importante tarefa de finalmente realizar uma profunda reforma nas áreas econômica, social, política, e nos setores agrário e ambiental. Para tanto, faz-se necessária a implementação de um novo modelo de desenvolvimento – que observe com seriedade o caráter estratégico da sustentabilidade ambiental – e uma nova relação da sociedade com a natureza, da qual somos parte integrante e totalmente dependente.

A proteção, a recuperação e a racio­nalização do uso de nossos bens naturais – florestas, águas, minerais, terra, fauna e flora – fazem parte de um grande e estratégico projeto, com olhos no futuro. Historiadores modernos demonstram que os alertas contra a degradação de nosso meio não são recentes. Ainda nos tempos de colônia, cidadãos brasileiros já apontavam os perigos de uma exploração descontrolada do patrimônio nacional. No entanto, esses avisos não foram ouvidos.

Da Mata Atlântica restam apenas 7%, e hoje a população na faixa litorânea do Brasil enfrenta as conseqüên­cias, como escassez de água e de recursos naturais. O Cerrado sofre com o avanço irracional da fronteira agrícola, principalmente para produção de grãos voltada à exportação. A Floresta Amazônica, maior remanescente de matas tropicais no mundo, cercada por um arco de desmatamento e queimadas, tem sua área incessantemente reduzida pela exploração irresponsável. Somando-se a isso, vemos que muitas comunidades diretamente envolvidas na devastação não são “beneficiadas”, demonstrando que faltam alternativas para que a população encontre na sustentabilidade um meio digno de vida.

O Brasil tem como maior desafio fazer com que suas políticas públicas observem a inclusão social com justiça ambiental. Para que isso ocorra, devem ser adotados critérios ecológicos no conjunto das políticas públicas; fortalecer os sistemas nacionais de meio ambiente, de recursos hídricos e também de defesa do consumidor; melhorar os indicadores socioambientais – desmatamento, poluição, esgotamento e tratamento de resíduos sanitários, abastecimento de água, controle de vetores, qualidade do ar, acesso aos recursos naturais, uso de energias limpas e renováveis; e principalmente, valorizar as iniciativas e a participação da sociedade civil organizada em prol da sustentabilidade.

A Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, desde a sua criação, em 2000, procura fazer com que a política ambiental gaúcha seja tratada de forma integrada e estratégica. Os órgãos ambientais hoje atuam de forma conjunta, e isso tornou o Estado referência nacional. E esse reconhecimento levou o Rio Grande do Sul à presidência da Abema (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente).

O Estado está estruturando seu Sistema de Proteção Ambiental (Sisepra), fomentando uma maior articulação entre os setores ambientais em nível estadual e municipal, atendendo a uma demanda histórica das administrações locais. A efetivação do Sisepra está sendo feita por meio do Programa de Gestão Compartilhada Estado/Município, que já capacitou várias cidades gaúchas para um efetivo gerenciamento ambiental. Entre os objetivos do Programa está a implantação de estrutura organizacional local para a gestão ambiental; elaboração de legislação municipal para a área; e capacitação de multiplicadores em procedimentos de licenciamento de atividades de impacto local.

A atual administração tem ainda implementado e efetivado várias unidades de conservação que antes só existiam “no papel". Alguns exemplos são a Reserva Biológica do Banhado São Donato; o Parque Estadual do Espinilho; a Reserva Biológica da Serra Geral; a Reserva Biológica da Mata Paludosa; e o Parque Estadual de Itapuã. A política estadual de recursos hídricos também está mais eficiente, com a transferência do Departamento de Recursos Hídricos (DRH) e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CRH) da Secretaria de Obras Públicas e Saneamento para a Sema. A elaboração dos planos de ba­cias, base para o gerenciamento do uso da água é um dos assuntos desenvolvidos no DRH. Atualmente existem 16 comitês de gerenciamento de bacia instalados, dos quais 11 foram formados nos últimos três anos.

Com o fracasso da Rio+10, torna-se cada vez mais clara a importância da implementação regional e local de projetos e de políticas voltadas à sustentabilidade. O governo gaúcho, que teve participação ativa na Cúpula Mundial, está fazendo a sua parte. Em Joanesburgo, apresentamos experiências como a do Orçamento Participativo, do Programa de Gestão Ambiental Compartilhada e da implementação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Além disso, o trabalho com gestão compartilhada ganhou destaque em uma publicação editada pela Universidade de Londres.

Em vários países do mundo, os governos regionais são responsáveis por grande parte da implementação das políticas públicas. Para garantir o reconhecimento desse fato e promover o intercâmbio das boas práticas de sustentabilidade, foi criada durante a Rio+10 a Rede Mundial de Governos Regionais. O Rio Grande do Sul é um dos pioneiros dessa iniciativa, que já conta com dezenas de representantes dos cinco continentes. A Abema é responsável pela divulgação e promoção da iniciativa na América Latina.

O exemplo gaúcho vem se somar a outras experiências bem sucedidas no país, como as desenvolvidas no Acre, no Mato Grosso do Sul e em outros estados e vários municípios. Um governo que priorize as pessoas, sua relação com o meio, a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental será decisivo para um novo e vitorioso Brasil.

Claudio Langone é secretário de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul e presidente da Abema (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente)