Cultura

Livros: Textos de intervenção, de Antonio Candido, 389 páginas / Bibliografia de Antonio Candido, 269 páginas - Seleção, apresentações e notas de Vinícius Dantas, Ed. Duas Cidades-Editora 34, 2002.

No Brasil não conhece o Brasil e uma das poucas pessoas que tem muito a dizer sobre nós mesmos é Antonio Candido. Por incrível que pareça, esta é sua primeira antologia a tomar forma de livro em língua portuguesa. Um acontecimento, portanto. Em espanhol, francês e inglês, reuniões de seus textos mais conhecidos circulam há alguns anos mundo afora. Contudo, o Antonio Candido que ressalta em Textos de Intervenção vai surpreender até mesmo seus antigos leitores brasileiros. Durante anos, com lupa e paciência, Vinícius Dantas recolheu, fichou, anotou, comparou e organizou tudo o que andava disperso e pouco acessível. Prova disso é a bibliografia que faz par com este volume. A trabalheira lhe deu uma autoridade muito natural para, em que pese a diversidade dos textos, selecioná-los e montá-los de modo a salientar a “audácia camuflada” de Antonio Candido. O conjunto resistiu à passagem do tempo, não tem descaídas e fala a nós com uma vivacidade impressionante.

O mérito maior do trabalho de montagem feito por Vinícius está em mostrar que, desde sempre, Antonio Candido armou sua obra através de um diálogo incansável com o seu tempo. Assim, percebemos que seus livros mais conhecidos, publicados a partir de fins da década de 1950, já estavam prefigurados nos rodapés literários do decênio precedente.

Podemos ver aqui um intelectual fora do comum numa longa atividade pública – cerca de 60 anos – que exigiu raciocínios de fôlego e prontidão, equilíbrio e ânimo combativo nas mais variadas frentes e formas. O livro é dividido em quatro partes que se comunicam. As duas primeiras, “Direções” e “Argumentos”, reúnem textos sobre literatura. Neles, o crítico: a) afia instrumentos analíticos que auxiliem sua percepção estética alargada (a forma artística não é um mero reflexo do mundo nem está fora dele, mas ambos podem compartilhar estruturas nem sempre óbvias); b) abre caminhos novos para entender a literatura de países periféricos que se entroncam na tradição cultural do Ocidente e c) no corpo-a-corpo da vida cultural, ilumina e confere um significado preciso às mais diversas obras, grandes e pequenas. Para ficar em apenas alguns exemplos, veja-se a suíte “Variações sobre temas da Formação” (p.93), ou a avaliação certeira dos então estreantes João Cabral de Mello Neto (p.135) e Guimarães Rosa (p.183).

Na segunda metade de Textos de Intervenção, “Conduta” e “Conjuntura”, temos o Antonio Candido cidadão, empenhado em colocar seu saber humanístico e seu conhecimento do processo histórico brasileiro a favor de uma sociedade mais esclarecida e democrática. Aqui as surpresas também são muitas, como o debate com Cruz Costa a respeito da “utilidade” das idéias, num período de feroz instrumentalização do conhecimento (p.258); as evocações notáveis “Duas heroínas” (p.293) e “Doutor Fernando” (p.297), jogando luz sobre dimensões complementares de nossas desigualdades estruturais; e os extraordinários artigos para a antiga Folha Socialista – uma faceta quase desconhecida de Antonio Candido, desencavada pelo organizador deste volume, e que antecipa numa conjuntura difícil muito das melhores posições do futuro PT.

Todos sabemos que o Professor é avesso a medalhas e foguetório, fazendo contraponto à mania festiva nacional numa discrição afinada com casos-limite de nossa cultura, como Rodrigo Mello Franco e Lucio Costa, mestres em apagar o esforço custoso que resultou no tanto que realizaram. Tal atitude por certo que se reflete na sua prosa, cristalina e leve como certas águas minerais. Prosa cuja simplicidade alcançada também decorre dos valores socialistas de seu autor. No entanto, há nela uma dimensão menos evidente e que este livro busca revelar.

Por trás das resenhas, entrevistas, ensaios, falas e escritos de militante, existe uma figura de vanguarda num sentido muito especial e substantivo pois sem ilusões. O leitor notará que, no exercício de sua atividade crítica, Antonio Candido tinha na cabeça muito da ousadia esquiva de Machado de Assis e seu brasileirismo “interior, diverso e melhor do que se fora apenas superfi­cial”. E também de Drummond, do espírito de Minas e seu “claro raio ordenador”. A visão objetiva sobre o funcionamento e o papel da cultura no Brasil só pode tornar mais interessantes as relações, aliás variadíssimas, entre literatura e sociedade. Nesse sentido vai a liberdade moderna com que, nos meados da década de 1940, momento em que ainda conviviam nossas melhores gerações de escritores, Antonio Candido promove uma extraordinária verificação recíproca dos gêneros literários, nunca tomados em si e segundo a hierarquia do senso comum valor-eternista. Desse modo, a disciplina intelectual dos melhores poetas, Bandeira e Drummond à frente, dava à sua prosa uma relevância que não existia na que estava sendo praticada fora da ficção por nossos romancistas (pp.201-2). Na mesma linha, como nota Vinícius Dantas, o crítico parecia discernir na literatura brasileira um lugar muito próprio para a crônica, que na sua aparente gratuidade alcançava um ótimo nível em meados de 1940, era mais próxima do público leitor e como que representava um corretivo às tendências esteticistas de nosso regionalismo e... das poéticas de vanguarda (ambos trazendo em fim de contas a marca cruel do subdesenvolvimento).

É preciso notar o grau de risco exigido por estas operações, as quais não pretendiam ser tão somente intervenções na vida literária e manobravam num terreno histórico chamado por Eric Hobsbawm de “era dos extremos”. Os desdobramentos desta última na vida brasileira – com seus ciclos de virtualidades frustradas – foram uma prova constante para o intelectual engajado e pode-se dizer que neste ponto Antonio Candido é autor de verdadeiras façanhas, praticadas sem alarde, diga-se de passagem. Nazismo, comunismo, valores democráticos no contexto da Guerra Fria são tratados sem barateamento. Entretanto, a segunda metade deste livro mostra um problema de fundo: ao atuar na política, a figura de vanguarda na literatura entra num embate com forças de natureza e peso que lhe impõem limites propriamente materiais. Seja porque em países invertebrados como o nosso os processos de formação cultural e os de formação político-econômica são muito descompassados, quando não desencontrados (Antonio Candido nota que entre nós os valores supostamente universais da Ilustração costumam se perverter nas práticas da elite. Ver pg. 320-23). Seja porque a independência desenvolta do analista não encontra um correlato entre as forças constituídas, à direita e à esquerda. Os ardis políticos de um populismo nascente são encarados com notável lucidez, bem como as expectativas da oposição na abertura tutelada dos últimos anos da mais recente ditadura (Ver a seção “Conjuntura”). Antonio Candido sempre pensou em outras saídas, que rompessem efetivamente com os atoleiros de nosso passado. Vão nesta direção as tentativas de incorporar o ensaísmo histórico-social de Sérgio Buarque de Holanda à reflexão sobre as possibilidades brasileiras de um socialismo democrático, apontando um caminho necessariamente próprio. No Brasil, a memória política é em geral fraca e o que porventura se acumulou quase não passa de uma geração a outra. Tentativas como as de Antonio Candido são raras e continuam a ser possibilidades para imaginar um país livre da parte podre de sua condição periférica.

Milton Ohata é doutorando na FFLCH-USP e professor na Escola da Cidade