Economia

Desde 1989 o economista Reinaldo Gonçalves tem participado da elaboração do programa econômico do Partido dos Trabalhadores

Desde 1989 o economista Reinaldo Gonçalves tem participado da elaboração do programa econômico do Partido dos Trabalhadores. é professor titular de Economia Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de mais de duas centenas de trabalhos publicados em dezenove países.

No Brasil, os seus principais trabalhos são os livros: Empresas Transna­cionais e Internacionalização da Produção (Vozes, 1992); Ô Abre-alas: A Nova Inserção do Brasil na Economia Mundial (Relume-Dumará, 1994); Globalização e Desnacionalização (Paz e Terra, 1999); O Brasil e o Comércio Internacional (Contexto, 2000); Vagão Descarrilhado (Record, 2002); e, O Nó Econômico (Record, 2003). Ganhador do Prêmio Jabuti 2001, como primeiro lugar da categoria Administração, Direito e Economia, é, ainda, co-autor dos livros O Brasil Endividado e A Armadilha da Dívida, ambos publicados pela Editora Fundação Perseu Abramo.

Em que cenários, internacional e nacional, se situa o governo Lula?
As perspectivas para a economia mundial nos próximos dois anos variam de desfavoráveis a muito desfavoráveis, tanto em termos de crescimento da renda e do investimento externo direto, quanto do comércio e dos fluxos financeiros internacionais. De um lado, isso é um problema visto que aumenta as dificuldades para o Brasil exportar e captar recursos financeiros, mas, de outro, há a oportunidade de se superar um desafio maior ao desenvolvimento nacional. Na história brasileira, quando há um cenário internacional relativamente favorável, as classes dirigentes tendem a ser mais complacentes com o controle das contas externas. Mas, quando a situação internacional é desfavorável cria-se um mecanismo tipo “desafio-resposta”. Frente a um mundo hostil, os tomadores de decisão procuram se proteger, impondo maiores controles sobre as relações econômicas internacionais do país. É questão de sobrevivência.

Esse é o cenário que o Brasil deve encontrar no futuro próximo, um ambiente internacional desfavorável que forçará o país a estabelecer mecanismos de autoproteção frente a um mundo hostil. Isso é positivo porque nos coloca diante da raiz fundamental dos nossos problemas, a vulnerabilidade externa.

Entretanto, o problema central é de natureza interna visto que o próximo governo se defrontará com a herança trágica, tanto na economia quanto nas instituições e na sociedade. O governo FHC teve um desempenho medíocre. Do ponto de vista macroeconômico é a pior gestão no Brasil nos últimos cem anos. Estamos herdando enormes desequilíbrios de fluxos e de estoques.

Poderia detalhar esses desequilíbrios de fluxos e estoques que tornam a situação da economia brasileira extraordinariamente difícil?
Os desequilíbrios de fluxo são, por exemplo, as contas públicas e as contas externas. Em 2001, o Brasil foi, na América Latina, o país com o segundo maior déficit público. O primeiro foi a Nicarágua. As contas públicas do Brasil estão completamente desequilibradas. Se analisarmos 150 anos de finanças públicas, desde Dom Pedro II, observamos que nunca tivemos uma dívida interna tão grande quanto agora; e tampouco déficit público e carga tributária tão elevados. Nem na Guerra do Paraguai o Brasil chegou a esses níveis de descalabro das finanças públicas. Existe também um grande desequilíbrio de estoque quando se observa o nível de dívida interna brasileira. Fernando Henrique deixa o governo com uma relação de dívida pública/PIB de quase 70%.

As contas externas brasileiras estão completamente desequilibradas, com um déficit médio de transações correntes da ordem de 20, 25 bilhões de dólares por ano, equivalente a quase 5% do PIB brasileiro. Esse déficit só se torna menor quando o país mergulha na recessão. Como resultado, o passivo externo cresceu extraordinariamente. Temos aí, mais um desequilíbrio de estoque.

Outro desequilíbrio de fluxo é a própria evolução da renda, que cresce a uma taxa medíocre inferior a 2,4% ao ano desde 1995. A taxa histórica de crescimento anual da economia brasileira é de 4,9%. A taxa de crescimento dos fluxos de renda da economia durante o governo FHC foi menos da metade da taxa secular.

Com relação aos desequilíbrios de estoque, deve-se destacar que a dívida pública atingiu níveis críticos. O mesmo com relação ao passivo externo brasileiro. Quando Fernando Henrique entrou, era da ordem de 200 bilhões de dólares, quando ele sai, é de 400 bilhões de dólares. Essa diferença é como se, todo ano, a economia brasileira gastasse 25 bilhões de dólares a mais do que ela produz. Esse valor é o nosso passivo com relação ao mundo. Essa geração e a próxima terão de pagar por isso.

Em síntese, há um conjunto de desequilíbrios graves: renda com crescimento medíocre, contas públicas estropiadas, alta taxa de desemprego, taxa de investimento medíocre etc. A dívida pública é gigantesca, e o passivo externo e o desemprego cresceram de forma extraordinária. Quando FHC entrou, tínhamos algo como 11 milhões de desempregados; ele sai e o Brasil fica com 21 milhões. Isso é um desequilíbrio de estoque do ponto de vista da economia. FHC sai e a economia fica numa situação recessiva e de forte pressão inflacionária.

E a perda de competitividade?
A perda de competitividade da economia brasileira é um dos problemas estruturais deixados por FHC, se compararmos a segunda metade da década de 90 com a primeira. Basicamente significa perder participação no comércio internacional. Na realidade, como parte da herança trágica há o que no meu livro O Brasil e o Comércio Internacional chamo de inserção regressiva do Brasil no sistema mundial de comércio, que tem dois componentes: um é a perda de competitividade internacional dos manufaturados e o outro é a reprimarização do comércio internacional do país.

O Brasil foi andando para trás do ponto de vista do comércio internacional, ficando cada vez mais dependente das exportações de commodities – soja, suco de laranja, carne – e de outros produtos primários. Isso é ruim porque tem problemas como baixo valor agregado, reduzido dinamismo do mercado internacional, e queda de preços dessas commodities. Em vez de exportar mais manufaturados, com maior conteúdo tecnológico, com maior valor agregado, a política de Fernando Henrique levou o Brasil a exportar cada vez mais produtos intensivos em recursos naturais. É a volta para o passado.

Isso dentro de uma política que o próprio FHC colocava como de aprofundamento e ampliação das exportações brasileiras...
O compromisso de exportar sempre existiu, o problema todo é que a exportação depende da estrutura econômica interna. O principal fator que explica a perda de competitividade da economia brasileira não tem nada a ver com a taxa de câmbio, ou com ausência de incentivos e subsídios, e menos ainda com a carga tributária; tem a ver com o fato de que o lado real da economia foi perdendo dinamismo. O Brasil ficou com uma economia marcada pela ineficiência sistêmica e foi perdendo competitividade internacional. A recuperação desta competitividade não se faz a curto prazo, porque a origem da perda de competitividade tem a ver com o desmonte do aparelho produtivo e do sistema nacional de inovações. É difícil imaginar que as exportações brasileiras crescerão significativamente no curto e médio prazos. A nossa sorte é que não podem ser, não são e não serão o motor de crescimento da economia.


O que é esse desmonte do aparelho produtivo e essa ineficiência sistêmica crescente?
A ineficiência sistêmica ocorre quando se tem um país que não consegue ter crescimento com taxas razoáveis, taxas de investimento relativamente altas, crescimento sustentável da produtividade, dinamismo no progresso técnico e geração de emprego. Aí não há como ter um processo de transferência e absorção de tecnologia e de desenvolvimento do sistema nacional de inovações. A ineficiência sistêmica está, freqüentemente, associada com a desestabilização macroeconômica crônica.

Na economia brasileira, ao longo do governo FHC, pode se observar essa desestabilização macroeconômica: finanças públicas quebradas, baixo investimento, alto desemprego, baixo crescimento e alta vulnerabilidade externa. Isso significa que o lado real da economia fica capenga, se arrastando. Em cima de uma estrutura produtiva que fica fragilizada, não há como promover uma melhoria do padrão de comércio internacional, independentemente das condições de taxas de câmbio, de promoção comercial ou de como anda a demanda no mundo.

O nosso problema, do ponto de vista da exportação, não é o mundo, mas nós mesmos, porque nossa estrutura produtiva é marcada pela ineficiência. Não há evidência de que o mundo ficou “mais malvado” com relação aos exportadores brasileiros. Tanto é assim que quando se fez uma brutal desvalorização do câmbio, as exportações não reagiram significativamente. A desvalorização e os incentivos fiscais podem até ter um efeito negativo sobre a receita em dólares da exportação, pois os exportadores brasileiros tendem a baixar os seus preços em dólares. Se as quantidades de produtos exportados não reagirem na mesma proporção, há uma queda da receita de exportação em dólares. Parece que isso já está ocorrendo com as commodities brasileiras. Assim, aumenta o custo social do dólar, pois transfere-se renda do conjunto da socie­dade para os exportadores e não se obtém resultados favoráveis.

Isso coloca um problema também de critérios de avaliação. A política econômica nos últimos dez anos se baseou na idéia de uma inserção crescente da economia brasileira no mercado mundial, a partir daí esses critérios são redefinidos.
Na realidade, o projeto neoliberal do FHC fracassou porque envolvia uma inserção passiva no cenário internacio­nal, uma abertura da economia brasileira rápida, abrangente e profunda como nunca ocorrera. Esse grau de abertura é incompatível com a realidade econômica nacional, que não é a da Suíça, dos Estados Unidos ou da França.

FHC fez uma abertura nas esferas comercial, tecnológica, financeira, monetária, cambial e na produtiva real. Essa última refere-se à entrada das empresas estrangeiras. Essa abertura se deu em todas as esferas das relações internacionais do país. Então, a economia brasileira ficou ainda mais vulnerável. Observando a sua história, vemos que ela se abria porque a conjuntura internacional era favorável e porque as elites pressionavam; mas, ela abria-se numa área e fechava-se em outra. Por exemplo, o Geisel fechou na esfera do comércio, mas abriu na área financeira, o que acarretou a tragédia da dívida externa. Já o Juscelino fechou na área comercial, mas abriu na produtiva, com as empresas multinacionais, o que comprometeu a capacidade de crescimento determinado por fatores endógenos.

As relações econômicas interna­cionais operam via quatro mecanismos básicos: tecnologia, comércio, as empresas e a área monetário-financeira e cambial. O Fernando Henrique abriu nas quatro áreas. Houve um salto quântico de vulnerabilidade externa. O país deixou de ter capacidade de resistir a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. Então, qualquer problema em Cingapura, na Tailândia, na Argentina ou no México reflete no Brasil. Para se colocar o país de volta nos trilhos, é preciso reduzir essa vulnerabilidade. É preciso haver um combate total e frontal ao modelo neoliberal. O que na prática significa reverter a abertura.

Não é só um problema na área comercial, via promoção de exportação e substituição de importações. Essa área é a menos relevante. As questões monetário-financeira, cambial e das empresas transnacionais são centrais. O Brasil tem uma das economias mais internacionalizadas do mundo do ponto de vista produtivo real. Se observarmos o núcleo duro do capitalismo brasileiro, mais da metade da produção ou dos ativos estão nas mãos das empresas transnacionais, que controlam 40% da indústria do país e 30% do agronegócio. O país deve ser o sexto no mundo entre os que têm a maior presença de empresas transnacionais na sua estrutura produtiva. O Brasil é um vagão descarrilado na economia mundial.

Como colocá-lo de novo nos trilhos?
Para voltar para os trilhos é necessário a reversão da liberalização e da desregulamentação nas esferas comercial, produtiva, tecnológica, monetária e financeira.

O Brasil precisa sair desse modelo de inserção passiva na economia internacional e entrar num modelo de inserção ativa. E nada nos impede de fazer isso. Depende de vontade política. O Brasil precisa ter uma conexão qualificada. O maior indicador de que o país é desqualificado do ponto de vista do cenário internacional é que o Brasil tem uma das maiores taxas de risco do mundo. E para revertermos esta situação precisamos ter alterações não só na esfera da economia, mas também na política internacional. A condição necessária é a reversão dos processos de liberalização e de desregulamentação realizados por FHC.

Eu queria que você analisasse melhor a política econômica externa do governo FHC.A política externa brasileira foi muito medíocre. O Brasil tem uma economia extremamente internacionalizada, em todos os sentidos. Entretanto, nem tudo está perdido. O país é um comerciante global, um global trader. Não está como outros países, que têm um grau de dependência muito grande com relação a determinado mercado, por exemplo, o norte-americano. O país tem uma base de recursos humanos e de instituições que permite reconstruí-lo, inclusive o sistema nacional de inovações. Na questão do investimento externo direto, a presença do capital estrangeiro é muito forte, mas o país precisa também diversificar, em termos de origem de capital, e ter instituições políticas que levem as empresas transnacionais a terem uma conduta não dada pelos seus interesses específicos segundo a dinâmica do mercado e a lógica do capital, mas por uma diretriz que leve a resultados de maior benefício para o país. O Brasil precisa de uma agência de regulação do capital estrangeiro. Na área monetária, financeira e cambial, o governo FHC fez uma série de aberturas que acarretou uma vulnerabilidade grande. É preciso reintroduzir controles.

É possível reverter esta política a curto prazo?
Na questão do desenvolvimento tecnológico e na do capital estrangeiro produtivo, todas políticas possíveis terão um impacto mais de médio e de longo prazos. Na área monetário-financeira e cambial é possível ter impactos a curto prazo. Na área comercial, as políticas podem ter impacto a curto prazo, mas elas tendem a ter impacto a mais médio e longo prazos. Por exemplo, a promoção de exportações não tende a ter impacto a curto prazo. Já as medidas protecionistas, que restringem as importações, têm impacto a curto prazo (inclusive, inflação). A substituição de importações, por sua vez, tem impacto de mais médio prazo. Então, para cada uma dessas esferas é preciso ter estratégias políticas e instituições que vão ter resultados com dimensões temporais diferenciadas. E isso é de fundamental importância. Em outras palavras, uma política econômica externa de um governo democrático-popular tem de enfrentar de forma abrangente essas quatro dimensões, levando em conta que cada uma delas tem institucionalidades e temporalidades diferentes. Isso é fundamental do ponto de vista da tecnicalidade do problema, independentemente do rumo que se vai dar para a inserção ativa internacional.

No cenário internacional regressivo dos últimos vinte anos, a economia brasileira foi a única que, apesar do crescimento das vulnerabilidades, sobreviveu preservando um parque industrial e a capacidade de seguir outros rumos. A economia mexicana foi anexada aos EUA, a Argentina foi destruída, os países asiáticos têm uma economia profundamente internacionalizada como plataforma de exportação. A economia brasileira é a única ainda com possibilidade de se desenvolver com base num mercado interno. Esse diagnóstico é correto?
Tenho uma visão um tanto cética com relação a isso. Na rea­lidade, houve um desmantelamento do aparelho produtivo. O melhor indicador disso é o nível medíocre de crescimento da produção e também da taxa de investimento da economia brasileira, bem como o desmonte do sistema nacional de inovações. Outros exemplos são o desemprego estrutural e o avanço profundo de desnacionalização da economia.

Não há dúvida que é preciso pensar em soluções de curto e médio prazos. Um diagnóstico otimista diz que o lado real da economia brasileira vai responder, seja para exportar, seja para substituir exportações, seja para fornecer bens e serviços básicos para o consumo de massas. Outra visão, a meu ver mais correta, identifica um desmonte efetivo da estrutura produtiva brasileira e, portanto, há pouca margem de manobra no curto prazo. É bem verdade que em alguns setores houve uma modernização, mas houve também um enxugamento do aparelho produtivo, a ponto de vários setores passarem a ter grandes buracos na matriz de insumo-produto. Os gargalos na estrutura produtiva são muito maiores do que eram dez anos atrás. Hoje 2/3 da oferta de produtos da indústria eletroeletrônica é proveniente do exterior. Não vejo como haverá substituição de importações, nem promoção de exportações, com impacto significativo no curto prazo. Penso que o Brasil precisa de pelo menos uns dois anos para fazer ajustes estruturais importantes e somente depois é que podemos pensar em uma trajetória de crescimento dinâmica.

Nessa área, o efeito de uma política de substituição de importações poderia ser ativa?
O problema é a dimensão temporal. Pensar em remontar estruturas que foram comprimidas, como a eletroeletrônica e a mecânica, de um dia para o outro, não é possível. O grande empresário brasileiro vendeu a empresa e foi viver de renda no exterior. É preciso um novo empresariado que se proponha a substituir importações. Aposto numa reconfiguração organizacional-empresarial orientada para os pequeno e médio empresários. É fundamental, ainda, uma política de investimento público, uma vez que temos um grande mercado potencial e grandes carências. Isso tudo leva tempo.

A estrutura produtiva brasileira tem gargalos sérios, um exemplo é o setor de energia elétrica. É preciso que haja uma calibragem muito firme do ponto de vista da expansão da demanda, porque há dificuldade de resposta da oferta no curto prazo. Ninguém monta uma fábrica de componentes em doze meses. Do ponto de vista de planejamento, estratégia e política, é recomendável uma visão cautelosa quanto à capacidade de resposta do aparelho produtivo brasileiro. Esse tema é discutido em maiores detalhes no meu livro O Vagão Descarrilhado.

Esse cenário aponta uma série de problemas para o governo Lula: pressões inflacionárias, do endividamento, na área da balança de pagamentos. Como visualizar a gestão dessas pressões? Qual o rumo político geral, o eixo de enfrentamento dessas questões?
Há duas áreas em que se pode tomar medidas importantes de impacto a curto prazo. A primeira é a monetário-financeira e cambial, com todos os problemas de fluxos financeiros internacio­nais. Boa parte das medidas nessa área exige, além da vontade política, folha de papel formato A4. Isso quer dizer que existem resoluções do Conselho Monetário Nacional, cartas circulares do Banco Central, portarias da Secretaria da Receita Federal, do Ministério da Fazenda que devem ser alteradas. São medidas que podem ser tomadas de imediato e terão impacto imediato. O foco de curtíssimo prazo é a área financeira, cambial e monetária das nossas relações internacionais, na direção de uma reversão da liberalização e da desregulamentação. Insisto, o Brasil não pode ter o grau de liberalização e de desregulamentação na área monetário-financeira e cambial que os países desenvolvidos têm.

A segunda área de efeito imediato é a comercial, mais especificamente as importações de bens e serviços. Já com relação às exportações pode-se tomar medidas imediatas mas levando em conta que elas não terão impacto a curto prazo. Por exemplo, é preciso fazer uma reforma institucional, porque a diplomacia econômica brasileira é muito ruim. O Itamarati, além de arrogância e despreparo, é de uma ineficácia extraordinária. Talvez deixar o Itamarati com a área das relações políticas internacionais e colocar toda a parte econômica internacional, que envolve comércio, bens e serviços, fluxo de capital, investimento e tecnologia, numa agência à parte, vinculada à Presidência da República.

Nas outras áreas, como no caso do investimento, o Brasil precisa criar uma agência reguladora do capital estrangeiro, que seria um órgão não só de análise e deliberação, mas de negociação com as empresas transnacionais que atuam no país para que elas tenham um desempenho mais favorável aos interesses nacionais. Isso leva tempo, porque se trata de uma montagem institucional complexa. Como queremos o máximo de benefício com o mínimo de custo, essa agência faria a avaliação dos balanços econômico, financeiro, social, tecnológico, ambiental e das relações internacionais (balanço de pagamentos) das empresas transnacionais e negociaria critérios de desempenho. Nessa área, o impac­to seria mais de médio e longo prazo.

Na área tecnológica, a mesma coisa, ainda que no curto prazo possa haver maior regulamentação dos contratos de transferência de tecnologia que o Brasil mudou com portarias ministeriais. É preciso reconfigurar, fortalecer e dar maior poder para o Inpi.

Então, nas quatro áreas básicas pode-se ter um conjunto de medidas de curto, médio e longo prazos. Medidas simples que envolvem folhas de papel A4 e medidas complexas que envolvem reformas institucionais. Há, também, necessidade de se construir capacitação técnica de negociação, que o Brasil vai necessitar para passar a ter uma política externa mais ativa, uma inserção internacional mais favorável.

Esse conjunto pressupõe uma política industrial capaz de suprir todos esses gargalos que foram abertos nos últimos anos?
Políticas tecnológica, industrial, agrícola, agrária, salarial, creditícia... Cada uma dessas tem uma dinâmica independente mas que deve convergir para a montagem de uma estrutura produtiva, de uma institucionalidade, de uma estratégia e de políticas de inserção internacional. Tudo isso envolve políticas complementares que vão reforçar esse tipo de estratégia de mudanças na área internacional.

Que tipo de resistências haveria?
Haverá grande resistência. A economia tem uma regra fundamental: não há benefício sem custo. Espera-se muita resistência porque serão atingidos interesses fortes da elite econômica brasileira. As principais resistências não serão externas, mas internas, serão de grupos econômicos residentes no país. O Brasil representa menos de 1% do PIB mundial, menos de 1% do comércio mundial.

É um processo de negociação. No curto prazo pode ser um jogo de soma zero, onde alguns ganham e outros perdem, mas no médio e longo prazos todo mundo pode ganhar. O melhor exemplo nesse sentido é a substituição de importações, que tem o efeito positivo de gerar produção, renda, emprego, receita fiscal, economizar divisas, mas que por outro lado tem um efeito negativo, porque transfere renda do consumidor para o produtor, do conjunto da sociedade para as multinacionais, para os grupos econômicos brasileiros, além de gerar inflação. É preciso convencer a sociedade de que ela está transferindo sua renda para os capitalistas, que isso a curto prazo é um custo mas pode ser bom no médio e longo prazos. Por outro lado, o Estado pode aumentar a carga tributária dos produtores nacionais que passaram a obter lucros anormais com a substituição de importações. A elite econômica brasileira tem que perder determinados privilégios no curto prazo como, por exemplo, as facilidades de movimento internacional de capitais.

O eixo seria restabelecer um mercado interno dinâmico com altas taxas de crescimento?
Exatamente. A redução da vulnerabilidade externa é um meio para se atingir o dinamismo do mercado interno de bens e serviços básicos. Estamos tratando na esfera de relações econômicas internacionais, mas o objetivo é fazer a economia crescer a taxas elevadas com distribuição de riqueza e renda, o que significa que precisamos de políticas complementares à política externa. As políticas comercial, cambial, tecnológica e de investimento externo precisam ser associadas a políticas em outras esferas, principalmente macroeconômicas. As políticas fiscal, monetária e cambial são fundamentais pelos seus efeitos de curto prazo e devem ser complementares e convergentes às políticas de redução da vulnerabilidade externa.

Trata-se de consistência macroeconômica. A natureza, a direção e o ritmo com que essas políticas serão implementadas têm que mostrar consistência com a estratégia básica de redução da vulnerabilidade externa e de expansão do mercado interno de consumo de massas. Por exemplo, o Brasil precisa de juros baixos e dólar caro. É perfeitamente factível um mix de políticas que atinjam essas metas no curto prazo. Essas metas, por sua vez, exigem maior controle direto sobre os fluxos internacionais de capitais. Não vejo outra saída.


Que implica redistribuição de renda, política salarial, políticas fiscais, capacidade do Estado de sustentar investimentos, redução do déficit público e do endividamento. Isso nos remete para outra arena de confrontos, que tem de ser manejada ao mesmo tempo que essa relação com o setor externo...
A inserção internacional ativa deve ser acompanhada de uma política de estabilização macroeconômica que tem quatro políticas básicas: monetária, fiscal, cambial e de controles diretos sobre a atividade econômica. Tendo em vista que um dos componentes da herança trágica do Fernando Henrique é a dívida pública, precisamos urgentemente reduzir a taxa de juros. Essa é a única maneira pela qual conseguiremos recursos públicos suficientes para fazer os investimentos necessários que vão funcionar como motor de arranque. Para isso é preciso reduzir o grau de mobilidade internacional de capitais na economia brasileira. Mantida a atual liberdade de entrada e saída não há como reduzir a taxa de juros para níveis reais compatíveis com um crescimento razoável. É preciso reduzir a taxa de juros no curtíssimo prazo.

Se o Estado é o maior tomador de recursos do mercado financeiro, portanto, ele é um lado do mercado. Ele tem um grande poder de atuação do ponto de vista da formação do preço-chave do capital, que é a taxa de juros. O Estado pode autonomamente definir uma taxa de juros baixa. Levando em conta os fluxos financeiros internacionais, quanto mais aberta for a economia menor o poder de atuação do Estado. A taxa de juros fica dependendo da expectativa dos agentes econômicos internacionais. Então, para se ter uma taxa de juros baixa, determinada autonomamente pelo próprio Banco Central, é necessário um filtro forte do ponto de vista da mobilidade do capital internacional. Para ser mais objetivo, é preciso é um forte controle do movimento internacional de capitais. Quem descobrir uma fórmula diferente dessa, pode até ganhar o prêmio Nobel de Literatura, mas jamais de Economia.

Isso enfrentaria uma forte resistência tanto internacional quanto no setor bancário.
Internacional nem tanto, mas certamente enfrentaria resistências da elite econômica brasileira, que quer ter o privilégio de tirar e colocar dinheiro a qualquer hora. As classes média e pobre não se beneficiam disso. Quem se beneficia dessa mobilidade internacional dos capitais é 1% da população, é quem tem conta no exterior.

Ainda na área monetária há a questão de expansão do crédito. Não tem sentido se expandir crédito para a classe média se empanturrar de bens e serviços supérfluos. Tem de haver uma expansão ultra-seletiva de crédito orientada para expandir a oferta agrícola, de bens e serviços básicos. A ênfase deve ser a expansão da oferta, seguida de uma calibragem do crescimento da demanda por bens e serviços básicos.

Do ponto de vista fiscal, o Brasil precisa ter um aumento da carga tributária. O país hoje tem uma carga tributária de 34%, a França tem 40%. Não vejo por que o Brasil não possa ter uma carga tributária como a da França. A pergunta óbvia: quem vai pagar os 6% a mais? Claro, vai pagar quem pode pagar, a elite econômica. E aí, temos um problema, porque não se taxa lucro e capital na devida proporção. Obviamente, por trás disso estaria a idéia de desonerar o setor produtivo, desonerar a exportação, reduzir os impostos indiretos, mas aumentando os impostos diretos sobre a renda e riqueza dos mais ricos. É a única maneira de se ter recursos públicos para o crescimento dos investimentos. O Brasil precisa não de um ajuste fiscal, mas de um choque fiscal. Para começar, o imposto de solidariedade, que é uma taxação uma vez por todas sobre o estoque de riqueza dos grupos mais ricos da sociedade. Em seguida, há o imposto anual sobre grandes fortunas, o aumento das alíquotas de imposto das rendas mais altas, e mais taxação sobre o capital e sobre suas rendas.

Com menor restrição orçamentária, redução da taxas de juros, diminuição do serviço da dívida, redução da transferência de renda para os rentistas é possível enfrentar o outro eixo estruturante do programa de um partido democrático e popular, que é o combate frontal à exclusão social. É preciso recursos públicos e focar investimentos em infra-estrutura e combate à exclusão social.

Na área cambial tem de haver um regime de câmbio administrado. É estratégico que o governo mantenha um nível elevado de reservas internacionais. As reservas internacionais têm dois conceitos técnicos importantes, um que é o nível ótimo de reservas, acima disso não vale a pena, pois se paga para manter reservas desnecessárias. Outro conceito é o do nível crítico de reservas. Se o país atingir um nível crítico de reservas há o risco de ter um ataque especulativo contra a moeda nacio­nal e, portanto, uma crise cambial com todas as conseqüências econômicas, sociais e institucionais. Tem de haver um nível de reservas estratégicas que fique entre o crítico (piso) e o ótimo (teto), para enfrentar as turbulências, a volatilidade, a instabilidade da economia internacional e da própria economia brasileira. Isso significa que, dependendo do nível de reservas internacionais herdado, a situação poderá ser favorável ou extremamente desfavorável. O fato, todavia, é o seguinte: o Brasil precisa trabalhar com níveis relativamente altos de reservas internacionais e, para isso, o Banco Central tem que intervir ativamente no mercado cambial, como comprador. Naturalmente, a tendência é de encarecimento do dólar.

Como você vê a importância da participação ativa do país no Mercosul?
A política externa brasileira, do ponto de vista econômico, deve ser assentada no fato de que o Brasil é um país vulnerável, pequeno do ponto de vista internacional. Imaginar que, por ter porte continental, 170 milhões de habitantes, o 12º PIB do mundo, não é vulnerável, é mera ilusão. Há países menores e menos vulneráveis. Também é ilusão achar que esses atributos exigem um menor esforço para se reduzir a vulnerabilidade externa do país. Quanto à política externa, deve-se ter em mente que o Brasil não tem a menor influência em qualquer fórum internacional relevante, seja no sistema monetário (FMI), no sistema financeiro (Banco Mundial) ou no sistema comercial (OMC). Sabemos que o Banco Mundial é um instrumento de política econômica externa norte-americana; o FMI é um instrumento de política econômica externa do Tesouro norte-americano; e na OMC quem toma decisão é a Comunidade Econômica Européia com os norte-americanos.

Hoje o problema do Brasil são os fóruns ou arranjos plurilaterais, que são esses arranjos como o Mercosul, a Alca, o Acordo Mercosul-União Européia etc. Esses acordos e projetos plurilaterais são orientados para aumentar a liberalização e a desregulamentação no âmbito regional ou no âmbito do arranjo institucional específico. Isso é incompatível com a diretriz básica de reduzir a vulnerabilidade externa brasileira. Portanto, qualquer esquema plurilateral deve ser evitado, seja no caso em que o Brasil não tem força, como nos projetos da Alca ou da União Européia, seja no caso em que o país tem força (Mercosul). No caso do Mercosul, deve-se ressaltar que esse esquema reduz o grau de liberdade do país quanto a políticas comerciais, financeiras, cambiais, tecnológicas e de investimento contrárias à desregulamentação e à liberalização. Qualquer acordo plurilateral é desvantajoso para o Brasil.

Mesmo o Mercosul?
Mesmo o Mercosul. O Brasil deve, em primeiro lugar, rejeitar a Alca; em segundo, com relação ao Mercosul, minha idéia é de um desengajamento gradual enquanto um acordo comercial. O Brasil precisa ter grau de liberdade na sua política comercial e o Mercosul atrapalha. Isso não quer dizer que não tenhamos de ter relações comerciais específicas com Argentina, Uruguai ou Paraguai. O nosso foco de política econômica externa tem de ser o de esquemas bilaterais específicos, que não sejam desvantajosos, com relação a produtos e serviços.

Se vamos discutir com a Argentina, não precisamos tratar da questão tecnológica, financeira, da monetária, ou fiscal; discute-se, simplesmente, comércio. Com meia dúzia de protocolos bilaterais e setoriais resolvemos nossos problemas com a Argentina. Cada relação bilateral é um processo de negociação que vai ter uma agenda de natureza diferente, e isso dá maior liberdade de atuação.

A pressão especificamente pela implementação da Alca vai ser muito forte...
Penso que a Alca não é prioridade na agenda norte-americana. Sorte nossa. E mais, no cenário em que estamos, temos de considerar inclusive a possibilidade de desistência do projeto por parte dos norte-americanos. Como ocorreu com a Iniciativa das Américas. Se a agenda econômica internacional dos norte-americanos ficar muito pressionada ou convulsionada com o Oriente Médio e a Ásia, a Alca é jogada para a rabeira da lista de prioridades.

Ademais, se houver uma rodada de negociações multilaterais no âmbito da OMC que avance muito, a Alca perde importância. Acredito que a maior resistência a rejeitar a Alca será interna. É o exportador que quer vender no mercado norte-americano; é o empresário brasileiro que quer um acordo de proteção ao investimento para que sua empresa passe a ter um preço mais alto e possa ser vendida aos norte-americanos; é o pessoal do latifúndio improdutivo que quer o valor da sua terra aumentado, para que ele a venda a uma multinacional do agronegócio, que será protegida pelo acordo jurídico institucional via Alca. São os meios de comunicação quebrados, que com o acordo de serviços vão se sentir mais protegidos, portanto o preço de participação para a venda das suas ações para o capital estrangeiro aumenta. A maior resistência à rejeição da Alca será da elite econômica brasileira, dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais operando no Brasil. Porém, não há outra saída: o Brasil precisa rejeitar o projeto da Alca. Não há meio termo, não há negociação. A Alca é o certificado de óbito de um projeto minimamente independente de desenvolvimento orientado para o aprofundamento da democracia, o combate à exclusão social e à desigualdade, e a redução da vulnerabilidade externa.

José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.