Política

Disputa pela hegemonia implica secundarizar as ações demarcatórias e tornar predominantes as que orientem os indivíduos e os grupos sociais com projetos que combatam a incerteza

Quem nasce no mundo, hoje,
compra, sem o querer,
uma pomba.
Com um alfinete feérico
na cabeça
Uma pomba extremamente vizinha
de bomba.
(Cassiano Ricardo, Jeremias sem chorar, poema “Flechas contra o Muro”)

A racionalidade moderna foi construída contra a simplificação obscurantista de que “ver é compreender”1. Na base da ideologia medieval, que resultou na demonização de determinados fenômenos naturais ou psíquicos, estava precisamente a identidade mecânica da percepção sensorial com a sua imediata “classificação”, o que necessariamente tornava o conceito um dogma: “bruxaria”, “possessão”, “exorcismo”, “presença demoníaca”.

Nesta identificação mecânica e sem nenhum método racional havia uma falsa ontologia e uma verdadeira ideologia de caráter naturalista-impressionista. Sua conclusão descartava sempre qualquer hierarquia e qualquer tipo de dúvida para a produção do “conceito”, que era o visto, acolhido sem a mediação teórica.

Hoje, a produção da informação pelos meios televisivos instantâneos ou em tempo real (que se apresenta como uma espécie de “história em marcha”) constrói a simplificação de que o mero “visual” já é a explicação do fato. De certa forma é a volta do “ver é compreender” do medievo: a partir do domínio exercido pela informação visual em seqüência, o acontecimento não tem mais alcance nem conexões com o mundo passado. A sua conexão é com uma cotidianidade que se apresenta como História fixada e se esgota nela mesma, sem qualquer ensinamento para o sujeito e sem qualquer referência que produza conhecimento.

Trata-se, então, de um processo permanente de produção de mentes sem memória histórica, que se alicerçam na falsa ideologia de que a vida é uma espécie de “presente perpétuo”, sempre acompanhada pelo olhar. Nesta perspectiva, ela não é composta por fatos com história, logo com origens e conseqüências, é uma seqüência de momentos sem hierarquia e sem valores. A memória desaparece pelas infinitas superposições de outros novos fatos, igualmente desconectados entre si, igualmente “descartáveis” e vinculados a um só valor: a “estabilidade”. O meu presente é também o meu futuro e é, em conseqüência, a única felicidade verdadeira, que tenho agora e quero tê-la sempre.

O enigma, neste momento em que a revolução tecnológica na produção e na informação destrói cada vez mais as socialidades compostas coletivamente, é se a mera demarcação é capaz de produzir uma política capacitada para enfrentar os efeitos do totalitarismo neoliberal. Há uma grave certeza a ser considerada: no imaginário das pessoas comuns a destruição deste presente é sempre para pior. A destruição sempre atinge o mais caro do nosso “patrimônio” atual, que é o afastamento dos fatos perturbadores que são sempre “vistos” e que são sempre contra a “segurança” e a “estabilidade” que já temos.

Para pensarmos a renovação da política da esquerda, deve-se levar em conta que as fronteiras entre as classes também já não estão mais demarcadas da mesma forma como antigamente, logo a forma de apreensão dos indiví­duos vem de um outro tipo de socialidade. De um lado porque as “não-classes” – da intermitência, da exclusão, da precariedade – são as que mais pesam como formadoras da opinião política; de outro, porque as próprias classes hegemônicas também não estão mais alicerçadas na sua ideologia burguesa “clássica”, com o seu manto fáustico-produtivista: não estão mais voltadas para a implantação da nação, para o progresso material extensivo, para a inserção dos indivíduos em classes definidas, pois sua tradição também é desagregada pelos donos do “capital-dinheiro”.

A ausência de fronteiras nítidas e definidas entre as classes, do ponto de vista cultural e psicológico, não significa porém uma maior proximidade entre elas. Significa uma maior fragmentação na totalidade social, que não só desconstituiu os valores tradicionais que as unificavam e as contrapunham, mas também determinou que, ao invés delas se aproximarem pela contradição negociada ou explosiva, passassem a se afastar pela sua recíproca diluição.

Este contexto também proporcionou o desaparecimento dos cenários burgueses construídos com certa regulação, ordem e previsibilidade, levando ao máximo a degradação da forma pela qual as classes dominantes globais exercem o poder. É o novo cenário onde se inspiram os “jogos” de lazer, o novo “saber” imposto pela nova “indústria cultural” de massas, que faz a permanente estetização do “mal aceitável” e aventureiro, que é, afinal, agradável para ser vivido por todos, pois todos são aparentemente chamados a consumi-lo pela imagem.

A crescente carência material das maiorias e uma maior instabilidade dos dominadores globais é o que também caracteriza este novo universo cultural e político de destruição do moderno. Os donos do mundo já não têm mais qualquer projeto histórico, seu cenário é também sempre o presente, o pesadelo das bolsas, a especulação, a integração do crime com a política e a hiperexploração “informatizada”. O elemento subjetivo fundamental que passa a compor os conflitos dispersos e cada vez mais irracionais é, neste quadro, a incerteza, que passa a ser a nova e central categoria da política.

A incerteza também confere uma instabilidade extraordinária aos setores privilegiados dentro do sistema, associados aos destinos do capital-dinheiro. A ironia é que se eles têm força suficiente para criar as crises que eles mesmos fruem, através das bolsas, eles também têm cada vez menos controle sobre seu destino.

Os projetos do período “clássico” de democratização republicana tradi­cio­nal e os projetos e as práticas políticas de resistência das classes trabalhadoras estão, assim, estruturalmente afetados. Ambos apoiavam-se em identidades hoje desorganizadas pelas mutações econômico-sociais. A sua relação social contraditória é cada vez mais informada apenas pela violência fora da política ou através de negociações corporativas e individualizadas.

Aos trabalhadores e aos excluídos só resta a angústia da insegurança, anestesiada pela ameaça de uma instabilidade que lhes é cada vez mais demolidora: “o trato público com a incerteza converte-se no autêntico conteúdo da política"2. A mera “demarcação” neste contexto só aumenta a incerteza, e mais: a demarcação isolada – como propaganda ou método de combater politicamente – contribui para o reagrupamento da sociedade, mas somente em torno dos valores já hegemônicos, porque os atos demarcatórios só aumentam a insegurança.

A disputa pela hegemonia na so­ciedade, como conseqüência, implica secundarizar as ações demarcatórias e tornar predominantes aquelas que orientem os indivíduos e os grupos sociais, com projetos políticos que combatam a incerteza. O agrupamento em torno de determinadas idéias-força, que tenham mais caráter constitutivo e menos conteúdos demarcatórios, passa a ser fundamental para a produção de um novo imaginário emancipatório.

A reforma radical da democracia não se dará, assim, sem uma alternativa sólida e estável, que mude tanto a economia como o modo de vida. É incrível como Gramsci, à sua época, já rastreava estas questões, ao tratar de uma sociedade já muito mais complexa do que a russa do início do século 20. Ele criticava o denuncismo – forma tradicional de “demarcação” – cuja “atividade crítica reduzia-se a desvendar truques, a suscitar escândalos, a vasculhar a vida privada de homens representativos”, esquecendo uma outra proposição da filosofia da “práxis”, a saber, que as “crenças populares”, ou as crenças do tipo daquelas, têm a validade de forças materiais”3.

Não é gratuito que a imprensa tradicional, com raras exceções, adote um denuncismo generalizado e, ao mesmo tempo, recuse-se sistematicamente a reconhecer a existência de alternativas de fundo ao neoliberalismo. Cumpre, a todos aqueles que não desistiram dos ideais utópicos da igualdade e da liberdade, resgatar a força da política, dando novas energias e nova vitalidade ao processo democrático e às lutas pela igualdade. Isso só pode começar pela atualização do discurso político e do projeto emancipatório.

Demarcação e dissolução dos conflitos

A dissolução daquele conflito linear de classes originário da 2ª revolução industrial, mormente no que refere ao tipo e à intensidade da polarização entre a burguesia industrial e o proletariado da grande indústria, propõe para os socialistas e social-democratas de esquerda a aflitiva questão de como voltar a seduzir pela utopia. Antes de abordá-la, porém, quero colocar três premissas. Elas podem parecer redundantes, mas ajudam a circunscrever o debate, para que os meus eventuais contendores possam precisar as suas divergências.

Primeira premissa: a dissolução do conflito linear de classes não só não “revoga” a luta de classes, mas também não extingue as classes tradicionais do capitalismo industrial. Segunda premissa: o fim daquela linearidade exige que os trabalhadores alterem as formas de luta no atual contexto histórico e também exige novos discursos para a tentativa de universalização dos seus interesses. Terceira premissa: a nova situação reestrutura a vida social objetiva (econômico-material) e subjetiva (cultural-ideológica) daqueles protagonistas sociais, tidos como os “fundamentais” nos conflitos de classe até há trinta anos.

Estas transformações são impostas principalmente pela emergência da força social e política dos setores mais modernos e dinâmicos da produção capitalista “de ponta”. São impostas, portanto, a partir da vanguarda da produção moderna, ali onde o marxismo tradicional buscava os setores mais característicos da classe operária. É um processo que não extingue o mundo operário tradicional, mas reduz gravemente o seu peso político estratégico, já que ele vem sofrendo mudanças radicais na sua vida cultural e também nas suas condições organizativas.

A renovação reacionária do liberalismo (Wallerstein),4 na era digital-informática; a revolução microeletrônica no “capitalismo turbinado”; a revolução das comunicações e da informação; o surgimento de centenas de novas profissões de vanguarda; o novo lazer individualizado nos games; as grandes migrações e viagens e a quebra das identidades nacionais são algumas das mudanças que produzem uma nova e diluída socialidade. Esta é mais visível nos novos fronts da produção de bens de consumo e serviços, nas novas formas adquiridas pelo processo do trabalho e na consolidação de uma subjetividade de massas baseada, segundo Jameson, na sublimação histérica do presente5. Todos estes são fatos históricos de potência universal, que fragmentam as velhas fronteiras de classe e impõem novas e brutais exclusões.

São os excluídos do conhecimento tecnológico revolucionário, os alienados da informação sem um mínimo de hierarquia quanto aos valores humanos, os sem perspectiva de pão, terra, afeto, teto e convívio. São milhões lançados à marginalização, ao desemprego, à horizontalização, à intermitência e à precariedade, dissolvendo os seus padrões éticos e a moral do trabalho que formava a identidade operária. As velhas classes se reformam radicalmente pela nova genética do capital ou se extinguem na lumpenização pós-moderna, desestabilizando os paradigmas teóricos dos dois últimos séculos.

A insegurança social, que se torna um pesadelo cada vez mais dramático para os incluídos, combinada com a insegurança gerada pela miséria material e moral dos excluídos, molda as novas características da subjetividade dos dominados. É a subjetividade construída no imaginário social, oriundo de um modo de vida que combina aquele “histérico sublime”6. Citada por Anderson, a formulação é de Frederic Jameson, um dos marxistas não-dogmáticos mais importantes que realizou estudos abrangentes sobre a “pós-modernidade”. com a sexualização da posse do dinheiro7, integra a imposição da solidão com a instigação do consumismo, reabre permanentemente o delírio da mercantilização da vida8. Nesta sociedade da cultura, da política e da economia neoliberal, a mera “inclusão” social já é a grande conquista do trabalhador descartável contra a insegurança e a precariedade, que abalou tudo que era estável e consolidado.

Estamos, pois, perante um estatuto de dominação muito mais difícil de enfrentar, do ponto de vista da esquerda, do que era a dominação econômica e cultural “simples”, que estava na base dos conflitos de classe da 2ª Revolução Industrial. O atual processo de dominação integra empobrecimento e miséria com a pulsão pelo consumo, consegue fragmentar as inconformidades coletivas e sempre instigar “saídas” puramente individuais. Permite alimentar a ilusão de um falso conforto com o mundo atual, que identifica no isolamento a verdadeira liberdade e na relação coletiva um sinal de servidão.

Contrastes com o velho proletariado

O desenvolvimento do velho proletariado fabril alcançou o seu ápice e a sua crise na década de 70. As políticas reformistas e revolucionárias desenvolvidas com a sua participação (ou em seu nome), seja para almejar o poder, seja para conciliar ou concertar – “linhas” bolchevique e social-democrata, respectivamente – obrigatoriamente demarcavam. Suas demarcações eram fundadas na experiência operária fabril e no modo de vida a ela correlacionado.

Este universo cultural dos trabalhadores, cuja base social era uma forte classe operária incluída, foi construído através de “demarcações” bem claras. As “casamatas” e “fortificações” gramscianas funcionavam tanto do “lado de cá”, através das organizações operárias, como do “lado de lá”, com as estruturas de poder das classes privilegiadas e esclarecidas.

Assim, também as “guerras de posição” dos trabalhadores e seus aliados, tanto no período social-democrata como sob a direção revolucionária marxista-leninista, conformavam uma cultura e uma teoria da política articulada com a vida real dos seus sujeitos-destinatários: os trabalhadores, os que adotavam o “ponto-de-vista” dos trabalhadores, os intelectuais “médios” emancipacionistas, os estudantes rebeldes e generosos. Todos tinham referências sólidas para contrastar a sua “práxis” com um outro lado, visível em seu modo de vida e também no seu exercício coercitivo. Assim, podiam escolher os seus parceiros de luta radical ou reformista, separando-se e demarcando dos seus “oponentes burgueses”, seja para confrontar, seja para dialogar.

O contraste entre os sujeitos do capital e do trabalho não só identificava os negociadores nos acordos classistas conciliatórios, como às vezes permitia a construção de uma identidade subversivo-revolucionária específica. Esta sempre era diferenciada como “con­s­ciência adjudicada” pelo partido revolucionário, na cristalina concepção de Lukács9.

O objetivo do Partido era que esta consciência se tornasse paulatinamente a consciência superior do proletariado real, à medida que este avançasse na ação prática da revolução, sempre através do Partido, detentor da “consciência de classe” verdadeira.

Nos últimos anos, a crescente dissolução da velha sociedade de classes e a organização material e ideológica de uma nova sociedade de classes, ainda mais dura e mais elitizada, alterou as formas de controle social e atingiu os padrões ideológicos e organizativos aparentemente estabilizados. Esta nova sociedade, porém, não é apenas uma mera continuidade da anterior, é, também, uma superação. Ela precisava e manteve-a viva, afirmando alguns dos seus valores e logo rompendo e desmoralizando sua memória rebelde.

O momento mais elevado e complexo da consciência demarcatória no ocidente industrial moderno foi gestado no interior dos movimentos revolucionários de Turim (1920), por meio da proposta dos conselhos. Foi a experiência que um liberal lúcido como Piero Gobetti chegou a designar como “um dos mais nobres esforços de renovação da nossa vida política, a célula primeira da organização econômica e política e (...) exército de frente única de luta no período anterior à conquista do poder"10. Gramsci11 cita que “pela primeira vez na história, verificou-se de fato o caso de um proletariado que emprega a luta pelo controle da produção, sem ser levado a tal ação pela fome ou pelo desemprego. Mais: não foi apenas uma minoria, uma vanguarda da classe operária, mas toda a massa dos trabalhadores de Turim foi a campo e levou a luta até o fim, sem olhar as privações e sacrifícios”. Na verdade, o conselho, como organização diretora da produção e instrumento direto da política de classe, era a demarcação transformada em instituição, que já se pretendia uma nova essência do Estado.

O conselho era legitimado pelo ato de força da revolução. Ele arrastaria – como vanguarda – a sociedade para uma nova ordem. Eis a demarcação de classe mais completa, pois o próprio partido ficaria caudatário da classe, já que por meio do conselho retornaria, “de fora” do proletariado empírico a consciência já não mais economicista da classe operária, mas ações políticas conscientes. Para o leninismo clássico só o Partido era detentor desta sabedoria, que ele “adjudicava” ao proletariado concreto através da “ciência marxista”. Gramsci, então, no particular, supera Lenin: o conselho seria a demarcação absoluta da classe absoluta, já consciente do futuro por meio do “ensaio” de um novo tipo de Estado.

Hoje, a “demarcação” como momento constituinte de uma nova consciência do mundo do trabalho, seja de caráter reformista ou revolucionária, não tem mais qualquer capacidade agregadora ou mobilizadora. A fragmentação das classes trabalhadoras não proporcionou somente uma enorme e ainda indefinida constelação de grupos de interesses dispersos. Também gerou modos de vida fragmentários, culturas guetificadas das mais diversas inspirações, particularismos que reivindicam universalidades totalitárias (punkismo e skinheads) e assim novas formas de diferenciação “intra” e “extra” classe.

Esta consciência fragmentária não se recuperará num sujeito único (partido) dos trabalhadores, nem verá seus interesses materiais e espirituais condensados numa única instituição matricial do Estado (o conselho). Mesmo que a sua recomposição seja proposta por uma instituição estatal que even­tualmente contenha uma nova vida moral – como os conselhos – ou por um partido “puro”, de caráter classista.

A dupla problemática abordada no início deste texto – da informação e da comunicação – já estava na base das insurgências, reformas e revoluções da modernidade, no período em que elas “incluíam” pessoas por meio das conquistas políticas do mundo moderno. Basta lembrar a importância da literatura popular, da imprensa operária, da integração das nações pelo telefone e pelo rádio. Estes mecanismos de comunicação e expressão política permitiam que transitassem, junto às mais amplas camadas da sociedade, a agenda das idéias do desenvolvimento científico, da igualdade formal e da democracia política. Aquela era uma sociedade que crescentemente se tornava mais complexa, mas as idéias de emancipação acompanhavam a sua complexidade.

Naquela etapa, a integração so­cial produzida pelas reformas que “preve­niam” as lutas mais agudas não dissolvia os campos, antes afirmava a especificidade e a identidade das partes “con­tratantes”. Como dizia Gramsci, a adaptação aos novos métodos de trabalho não poderia dar-se somente pela coerção, que deveria “ser sabiamente combinada com a persuasão e o consenso”12.

Os consensos originários deste processo geravam entre as classes acordos que necessitavam de partes legitimadas e identificáveis, pois só assim seria viável uma estabilidade social mínima para a reprodução do capitalismo e da cena pública democrática. O capital necessitava dos pactos de classe para crescer, acumular e prevenir rebeliões e o trabalho precisava firmar seu “campo”, tanto para promover suas lutas reformistas como para tentar a via revolucionária.

É possível dizer que a “demarcação”, neste contexto, não só era uma escolha da revolução ou da reforma, mas também era uma necessidade de ambas as visões. Não importava que tal fato abrisse mais ou menos frestas para as transformações sociais “perigosas”; o fundamental era que a “demarcação” constituía sujeitos identificáveis em ambos os lados. Tanto para a repressão das classes dominantes como para o acordo que gerava consensos, prestigia­va a reforma e a democracia política.

É possível também dizer que a “demarcação” e a diferenciação de idéias-base acompanhou as lutas reformistas e revolucionárias contemporâneas. Era o período em que os confrontos resolviam-se pela revolução (Rússia), pelas reformas (Países Baixos, Inglaterra), ou por ambas (Alemanha): igualdade, desigualdade; autonomia, hierarquia; coletivo, individual; nação, império; solidariedade, individualismo eram as antíteses que unificavam ou confrontavam, mas que, de qualquer forma, “demarcavam” as idéias e a cultura política das classes sociais da sociedade industrial.

O desenvolvimento da produção e do consumo de massas, do novo espaço urbano, das reformas democratizantes do Estado e seus acordos de mudança também afirmavam diferenças e expressavam identidades. A cultura das liberdades democráticas do Iluminismo fundia-se com o reformismo radical ou com a utopia revolucionária.

Muitos militantes, dirigentes ou intelectuais – aqueles que não “curtem” o isolamento como virtude – perguntam-se por que hoje os seus discursos e sua ação sindical, seus textos tão bem formulados – textos de puro “saber” operário alimentado pelo marxismo ou mesmo de sofisticado corte social-democrata –, que em outros tempos mobilizavam centenas de milhares, hoje não têm mais nenhum efeito.

Arrisco dizer que o sentido da história nos “velhos tempos” – de uma história carregada de conflitos com racionalidades contrapostas – podia fazer-se visível em cada embate. Cada episódio compunha no imaginário das classes um passado articulado e um futuro articulável. Seja no acordo estável e consensual da reforma, seja através dos movimentos que tinham suas propostas baseadas no homem coletivo, “pré-visto” no proletariado como “classe-parteira” do bem absoluto. Tudo era produzir o presente com ações coletivas, compreender o passado e experimentar algo do futuro. O mero viver ou o “ver” não era “compreender”, pois o compreender era o transformar, inclusive – do ponto de vista do capital – para conservar.

Os novos trabalhadores “pós-civilização” industrial clássica têm outro modo de vida, têm outros anestésicos para o seu cotidiano alienado. São os que vegetam defronte aos computadores, deliciam-se com os vídeo games baratos e dançam nas barulhentas discotecas de subúrbio. São os que buscam os lugares onde a “fala” não mais existe como mediação do afeto e da amizade e onde o próximo passo, em qualquer desajuste, pode ser sempre a violência irracional. Seja pelo ódio da “torcida organizada” contra o adversário, seja pelo “quebra-quebra” de lojas e ônibus após uma fagulha provocadora ocasional.

A cegueira da vanguarda, porém, vem hoje de um outro tipo de “degenerescência burocrática”. Não mais aquela do burocrata do Estado soviético, que criticava os “desvios” falando em nome de uma classe já supostamente livre mas de fato escravizada na produção exaustiva e maçante da produção taylorista. A cegueira atual vem de um alienado romantismo partidário que fala a partir de um modo de vida que está no seu ocaso, fundado numa cultura operária clássica, que não só é cada vez mais temerosa de mudança – pela precariedade que fatalmente lhe espreita – mas que é, inclusive, cada vez mais egoís­ta em relação aos novos contingentes de explorados e oprimidos que também lhe causam profunda insegurança.

Todo este processo brutal, alienante e opressivo ocorre freneticamente numa sociedade em que a ideologia do fascismo societal13 tem meios materiais e condições subjetivas ótimas14. Trata-se da subjetividade do indivíduo na “sociedade informática” (Schaff) do consumismo alucinado, engendrado pela contra-revolução neoliberal dos últimos trinta anos. Tudo isso demanda reinventarmos as formas políticas e organizativas, através de um novo estatuto democrático, para refazer a força sedutora da política socialista.

Encerrremos com a pérola-síntese da cultura do fascimo societal, agora pedindo o fim da política, quando seus resultados já se tornam insuficientes para que o pacto de poder atual continue preponderante: “Daí o apavorante atrevimento com o qual os homens propõem, discutem e aceitam projetos humanitários que devem ser impostos por meios políticos, isto é, pela força¸sobre um número ilimitado de seres humanos”15. Para o neoliberalismo, agora, a política passa declaradamente a ser apenas a “força” e o mercado o reino do prazer alucinado pelo consumo transformado em ética,16: “Contra os totalitarismos, mas também permanecendo afastado de uma sociedade reduzida a um mercado, é preciso conceber um sujeito humano contra a dupla impersonalidade do poder absoluto e do reino da mercadoria. No Leste europeu só se confia hoje em dia no mercado. Isso se justifica, porque a volta à economia de mercado é indispensável para eliminar a nomenklatura. Contudo, o que elimina o passado não basta para construir um futuro e a fase de confiança absoluta na economia de mercado e na ajuda externa não duraria muito.”

Tarso Genro é secretário especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social