Sociedade

Só a fratria pode enfrentar o tirano. Seja ele o mercado, o capital internacional, o coronelismo local, o crime organizado, a corrupção

Na noite de 27 de outubro, recém-eleito presidente do Brasil com a maior votação da nossa história, Luiz Inácio Lula da Silva falou à multidão reunida na avenida Paulista. Fez um discurso emocionado de agradecimento aos eleitores que revelou, mais uma vez, o traço característico da personalidade deste impressionante e improvável líder brasileiro. Desde os tempos das assembléias operárias no estádio de Vila Eucli­des, em São Bernardo, Lula sempre foi capaz de fazer pronunciamentos empolgantes, em nome próprio, sem recorrer aos lugares comuns da retórica política, mas também sem falar apenas em primeira pessoa. É isso que diferencia seu carisma pessoal dos vícios do personalismo, tão freqüente entre os líderes políticos mais populares da história brasileira. Nas falas de Lula, o “eu” autoral é um “nós”. Antes de prometer qualquer coisa à multidão em festa, antes de se oferecer aos aplausos e às saudações de seu aniversário, Lula nomeou e agradeceu a todos os seus companheiros de percurso, vivos e mortos. Finalizou citando os colaboradores da atual campanha e nomeando os principais setores sociais que o elegeram: trabalhadores da cidade e do campo, membros da Igreja, professores, sindicalistas, estudantes. No lugar de “eu fiz, eu venci, eu cheguei lá”, Lula consagrou um “nós vencemos” a que o povo brasileiro não está acostumado. Em vez de se apresentar como um indivíduo privilegiado e iluminado, objeto de adoração e inveja das massas em função de sua excepcional trajetória de ascensão social, Lula fez de sua vitória a consagração do “povo unido” que há várias décadas já não acreditava que jamais seria vencido.

O discurso da Paulista pode ter sido o começo da (re)educação político/sentimental da sociedade brasileira. Nossa tradição política é a do autoritarismo, em suas várias versões. Tivemos a versão hardcore dos militares, que dominaram pela intimidação e pela repressão – o “prendo e arrebento”, de famigerada memória. Tivemos também as várias versões soft do paternalismo e do populismo, segundo as quais o político popular sustenta sua autoridade e autoriza seu arbítrio ao se apresentar como uma espécie de pai severo e bondoso, protetor pessoal dos oprimidos, objeto de amor e submissão filiais das massas. O paternalismo infantiliza a sociedade e desmobiliza a participação popular. Faz da relação da massa com seu líder uma relação de gozo, uma “servidão voluntária”, na expressão de Étiènne de La Boétie. É a forma mais eficiente de dominação, porque conta com a alegre adesão das massas: uma sociedade habituada ao paternalismo pede paternalismo, ama o paternalismo. Se os oito anos de governo FHC representaram algum avanço para a sociedade brasileira, este se deu em conseqüência do traço mais detestável do ex-presidente: seu autoritarismo moderno e globalizado. Fernando Henrique, decididamente, não era paternalista. Muito menos populista. Seu discurso não mascarava os compromissos de classe, nacionais e internacionais, de seu governo. Neste sentido, fez um grande favor à sociedade.

Na via da relação das massas com os governantes, estamos completamente embebidos de cordialidade. Que um governante seja simpático e tenha “boa aparência”, que se ofereça à projeção de figuras familiares, que chore em público, que peça “mais uma chance” a seu eleitorado quando pego em flagrante de corrupção, tudo isto parecem ser condições “naturais” da vida política – como se a política pudesse ser tomada como um evento da natureza – aos olhos de grande parte dos brasileiros. Ao mesmo tempo, a prática da demagogia corrompe a sociedade inteira; corrompe e desnorteia. A demagogia substitui a esperança depositada na relação entre a palavra e a verdade pela receptividade cínica de quem aprende a desesperar, já que a palavra empenhada não tem nenhum valor. “Todo governante eleito pode prometer e não cumprir”, disse Lula à multidão. “Eu não tenho este direito”. De fato, a ascensão do líder sindical à Presidência da República, depois de três derrotas sucessivas, representa o coroamento de um projeto de toda a esquerda brasileira: um projeto de longo curso, gestado e desenvolvido há mais de vinte anos nos mais diversos setores da sociedade organizada. Lula sabe que deve muito a todos eles. Mais do que gratidão e reconhecimento, trata-se aqui de um compromisso de quem sabe que sua liderança é fruto de um projeto construído a muitas mãos – um processo longo e coletivo.

Ao final de seu discurso, o presidente eleito se debruçou do palanque e prometeu prestar contas de seus acertos e erros aos eleitores. Não eram as palavras vazias da demagogia – eram palavras de um compromisso antigo, cuja credibilidade é legitimada pela trajetória pública do sujeito desta enunciação. Quanto ao endereçamento desse discurso, é importante observar a diferença entre o “vocês” da fala de Lula e o “povo brasileiro”, conjunto genérico e vazio que sempre abriu os discursos oficiais dos governantes anteriores. Pois Lula tinha acabado de reconhecer e de qualificar o coletivo que compõe este “vocês”. Embora se apresente – e não poderia fazer de outra forma – como presidente de todos os brasileiros, o “povo” a quem endereça seu discurso tem um perfil diversificado mas definido, cobre um campo de identificações construído pela sociedade civil. O “vocês” da fala de Lula é o conjunto de forças constitutivas da democracia participativa no Brasil.

Por isso mesmo, a fala deste novo presidente tem o poder de unificar simbolicamente o país. O endereçamento de Lula é o primeiro fator de inclusão social, antes mesmo da posse, muito antes que qualquer política de erradicação da miséria – ou seja, de inclusão material – possa se efetivar. Um discurso como este pode ter um efeito pacificador da violência social brasileira; não vai pacificar, evidentemente, a violência do tráfico e do crime organizado. Mas a violência gratuita, os pequenos atos de delinqüência banal que são frutos da desmoralização do espaço público, do extremo individualismo que contaminou o laço social nesses tempos neoliberais, certamente pode ser pacificada a partir da convocação política dirigida por Lula aos brasileiros para que venham participar da tarefa coletiva de reconstrução da sociedade.

O líder e a imagem

Mas não só de carisma e compromissos sinceros teceu-se a vitória de Lula. A peça mais importante de sua campanha, admitamos, foi a publicidade. Sobretudo a campanha feita para a televisão, na qual o marqueteiro Duda Mendonça trabalhou para projetar uma imagem do candidato à altura da lógica do espetáculo. Nas imagens de Duda, Lula virou ídolo pop, virou chique, virou figura messiânica, virou santo, virou pai. Sorriu muito e disse pouco, chorou quando convinha chorar, fez muito charme para a câmera, associou-se a outras imagens genéricas e palatáveis: flores, estrelas, criancinhas, culminando com a cena kitch das dezenas de mulheres grávidas vestidas de branco descendo uma colina verde ao som do Bolero de Ravel. O apelo sentimental de imagens como esta, durante a campanha, foi quase indecoroso. Deve ter feito muita, muita gente esquecer a política. Às vezes, parece que é isto o que o brasileiro mais deseja: esquecer a política.

Não dava para ganhar as eleições sem fazer o jogo da publicidade – que no Brasil semi-analfabeto, domesticado pela televisão, passa necessariamente pela linguagem comercial desenvolvida para e pelo veículo. É verdade que alguma coisa foi dita sobre o programa de governo do PT e a trajetória política do candidato, mas grande parte da campanha que conduziu Lula à vitória foi feita de imagens vazias, capazes de mobilizar muito mais os afetos e as fantasias do que a crítica e o pensamento. E como a linguagem é a mesma e a lógica televisiva é implacável, as eventuais diferenças entre as campanhas dos quatro candidatos principais diziam mais respeito às diferenças de competência entre os publicitários do que entre as propostas políticas.

Quanto à cobertura dos telejornais, temia-se que a Globo repetisse, diante de uma provável vitória de Lula, o mesmo comportamento antiético que decidiu a eleição de 1989 a favor de Fernando Collor de Melo. Não foi o que aconteceu. A televisão – sobretudo a rede Globo – tratou o favorito nas pesquisas com o mesmo respeito e seriedade que todos os outros candidatos. Depois vieram as celebrações. E de repente, na primeira semana da transição para o novo poder, foi como se Luiz Inácio Lula da Silva tivesse sido contratado pela Globo. Sua vida foi tema do Fantástico levado ao ar na noite da vitória. No dia seguinte, foi convidado de honra do Jornal Nacional, permanecendo no estúdio enquanto William Bonner e Fátima Bernardes apresentavam imagens de sua trajetória política e fami­liar, entremeadas de conversas ao vivo com o presidente. Na sexta-feira foi a vez do Globo Repórter editar imagens do passado, depoimentos de parentes e entrevistar Lula ao vivo, com direito a lágrimas e risos, algumas informações relevantes e muito, mas muito charme. Vitorioso, feliz, Lula não estava só mais carismático. Estava muito mais sedutor.

É natural – mais uma vez esta palavra, antítese da política – que a emissora que fez a melhor cobertura jornalística do processo eleitoral tivesse o direito de explorar (êpa!) a popularidade do presidente eleito em benefício próprio. É “natural” que Lula aceitasse a superexposição televisiva que, no período de transição, faria consolidar ainda mais esta mesma popularidade. Só que a maior rede de televisão do Brasil, que há quase quarenta anos vem construindo e consolidando uma linguagem, um estilo, um modo de penetração no imaginário popular baseado justamente na comunicação pela via da imagem, à qual são subordinados a palavra e o pensamento, rapidamente enquadrou o presidente Lula nos termos da lógica do espetá­culo. O efeito dessa estratégia é carregado de ambigüidade. Se por um lado torna o líder de esquerda mais aceitável para uma parcela amedrontada do eleitorado conservador, por outro, pode transformá-lo em um personagem inofensivo. Se consolida o aspecto imaginário de sua popularidade, pode contribuir para enfraquecer seu perfil político e a força de sua palavra – a mesma palavra que, no discurso da avenida Paulista, revelava sua potência mobilizadora, seu caráter diferenciado em relação à tradição dos discursos da elite, sua capacidade de produzir um enquadre simbólico para as forças so­ciais desorganizadas e desperdiçadas desse país.

A superexposição televisiva, a ênfase sentimental sobre os fatos da vida privada de Lula em detrimento de sua história pública, a transformação do personagem político em personagem de melodrama podem funcionar – independentemente da intenção da direção da emissora – para neutralizar a força de sua liderança. A privatização da história de vida do presidente eleito pode fazer dele um fenômeno exótico – o operário que “chegou lá”, compatível com a lógica competitiva da cultura do individualismo – na mesma medida em que o popularizam como objeto de gozo e consumo para as massas. O gozo, como sabemos, é o que torna dispensáveis o pensamento e essa chatice necessária à vida política que se chama consciência crítica. Diante de um objeto de gozo, tudo o mais – a reflexão, o trabalho, a capacidade de adiar gratificações, os compromissos e as responsabilidades – se torna supérfluo. Diante de um objeto de gozo só queremos gozar mais. Que a televisão tente fazer de Luiz Inácio Lula da Silva um objeto de consumo, e de sua imagem um meio de gozo para as massas de telespectadores, é meio caminho para o enfraquecimento da diferença radical que seu estilo de liderança representa em relação à tradição política das elites brasileiras. Cordialidade, sentimentalidade, projeções de representações familiares, mobilização de fantasias – se esta versão do presidente predominar sobre o poder de sua palavra, estará abortado o longo e difícil processo de educação político sentimental da sociedade, inaugurado brilhantemente na noite de 27 de outubro. A televisão brasileira parece ter entendido, em 2002, sua responsabilidade na construção permanente da democracia. Mas entendeu também, há muito mais tempo, seu compromisso com a elite e com a manutenção de um certo “jeitinho brasileiro” de dominação que, afinal de contas, vem dando certo desde a colonização.

O corpo do presidente

A posse do presidente Lula em Brasília foi um dos fenômenos de massa mais impressionantes que a sociedade brasileira já assistiu e promoveu. A multidão que esperou a passagem do carro do presidente eleito diante do Congresso manifestou uma alegria e um entu­siasmo contagiantes até para quem só acompanhou a festa pela televisão. Os jornais e a tevê rapidamente transformaram em jargão o “estilo Lula” de se relacionar com as multidões. Não vamos nos iludir: a mídia está confeccionando o personalismo do novo presidente – quer ele queira, quer não. Algumas das maiores qualidades da personalidade de Lula podem oferecer elementos preciosos para a construção de um perfil personalista. O presidente, cuja trajetória política foi toda construída em meio a grandes manifestações de massa, está acostumado àquilo que o general Figueiredo chamava, com asco, de “cheiro de povo”. Lula despreza a proteção dos seguranças; deixa-se agarrar, abraçar e acarinhar alegremente pelos eleitores mais ousados. Parece acreditar que a popularidade mantém seu corpo fechado contra eventuais tentativas de agressão.

No primeiro mês do novo governo o presidente inaugurou sua equipe levando um grupo de ministros a uma excursão inédita pela miséria brasileira. Naquela primeira viagem ao Brasil da Fome, Lula levou o governo, na forma das pessoas físicas do presidente e seus ministros, para dentro do Brasil profundo, dos flagelos climáticos e políticos, do desamparo, da carência crônica e da desesperança. Fez com que todos os jornais e redes de televisão exibissem, em cadeia nacional, esses pedaços esquecidos do país que ele agora governa. Alguns ministros pare­ciam terrivelmente constrangidos, fotografados no meio dos brasileiros carentes e desdentados. Lula, não: estava em casa. Estava se comprometendo pes­soalmente com os brasileiros que o elegeram. De corpo presente, estava redesenhando o mapa do Brasil de modo a incluir nele os milhões de excluídos da sociedade. Foi além da inclusão simbólica que promoveu nos discursos da vitória e da posse. A presença física do presidente, neste caso, teve o sentido de antecipar o que deve vir a ser a presença do poder público, que há décadas vinha se omitindo escandalosamente de suas verdadeiras responsabilidades.

A equipe do novo governo andou por palafitas e vielas estreitas, entrou em barracos escuros e apertados, espremeu-se no meio da multidão em Recife, no Piauí e no vale do Jequitinhonha. O que teria representado Lula no imaginário popular, naquele dia? Seria um santo milagreiro descido dos céus do poder para acabar de uma vez com a fome do Nordeste? Um padre Cícero ressuscitado? Como Lula fará para impedir que o carisma despolitize o sentido de sua liderança? O povo sabe que Lula é “um deles”. Sabe que foi flagelado, que foi retirante, que passou fome como tantos brasileiros. A própria televisão contribuiu para divulgar esta informação. Pela primeira vez o Brasil tem um presidente que não só nasceu entre o povo mais pobre como também – o que é mais importante – construiu sua carreira política representando as classes populares. O povo ama Lula justamente por isso.

Mas temo que as pessoas que adoram Lula esperem de seu carisma o mesmo paternalismo de sempre, esperem os gestos populistas e as palavras demagógicas a que estão habituadas, só que com resultados concretos imediatos. Como se fosse possível ser demagogo e populista e, ao mesmo tempo, falar a verdade e cumprir com a palavra. O que fazer dian­te dessa tremenda ambigüidade da expectativa popular? A tarefa de estender a presença do poder público entre os muitos setores que os governos anteriores abandonaram tem um preço político. Exige um estabelecimento claro de prioridades. Exige enfrentamentos políticos pesados. Outros setores sociais terão que perder privilégios.

O presidente provavelmente calcula a magnitude das esperanças e das “forças adormecidas”, na expressão do professor Antonio Candido, que sua eleição traz à tona. Mas deve saber que o clima de otimismo não pode se alimentar só da presença física do presidente e de suas palavras (sinceras) de carinho. Deve conhecer os riscos políticos e sociais que a frustração da esperança implicaria.

Além da alegria popular, o novo presidente conta com uma força ainda maior: conta com o amor do povo. Nisto reside a maior força legitimadora de seu governo, e também a maior armadilha para o exercício político de sua liderança. O amor tem um forte componente fantasioso. Do ser amado, espera-se sempre demais; espera-se compreensão, proteção contra o desamparo, espera-se a satisfação das necessidades, espera-se prazer. O amor é feito para decepcionar. Para permanecer amado, um governante teria que fazer muito mais do que um bom governo: teria que construir em torno de sua pessoa uma espécie de marca de fantasia capaz de satisfazer as demandas amorosas de seus eleitores. Teria que ser demagogo. Teria que substituir a política pelo espetáculo do poder.

O amor também se alimenta das identificações, é narcisista: ama, antes de mais nada, o próprio espelho. Se o povo ama Lula porque é “um de nós”, vai se decepcionar quando, no exercício do poder, o presidente for obrigado a se diferenciar da massa que governa. Lula é, sim, o nordestino sofrido, de origem humilde, que conhece a pobreza e o trabalho duro. Mas é também tudo o que ele construiu na vida pública depois daqueles anos difíceis. Hoje, é um homem da elite, ainda que não se identifique com ela e não governe (esperamos!) para manter seus privilégios. É uma figura de projeção internacional, embora nem fale inglês. É um representante do povo mas governa também para os grandes detentores do capital financeiro nacional e internacional. É simpático ao MST mas também governa para os latifundiários. Tem que costurar os interesses dos trabalhadores, do empresariado nacional e desta entidade fantasmagórica que se chama “mercado”. As primeiras medidas de sua equipe econômica, tremendamente impopulares, demonstram que, no papel de presidente, Luiz Inácio Lula da Silva bem depressa deixou de ser “um de nós”. Talvez por isso, no mês de fevereiro, Lula tenha se retirado um pouco da mídia. Os ministros falaram e apareceram mais do que o presidente.

Parece que o presidente Lula tem pela frente a difícil tarefa de mudar seu discurso ajustando-o à nova realidade, sem perder de vista os compromissos que assumiu com o povo durante a campanha e nos dias da vitória e da posse. Não vai dar para continuar sendo adorado por “todos os brasileiros”. Não vai dar nem para ser tão adorado quanto nos primeiros dias – o que, afinal, pode representar um avanço na tal educação político-sentimental que ele tem o dever de implementar em sua relação com a sociedade. Um líder político não tem que ser amado: tem que ser respeitado. Não tem que realizar fantasias do eleitorado: tem que, necessariamente, frustrá-las para colocar em prática a dimensão política de sua ação.

É verdade que o carisma de Lula faz parte de seu capital político. Sua personalidade espontânea e afetuosa, seu senso de humor, seu jogo de cintura, sua capacidade de comunicação não deveriam ser inibidas diante da complexidade das negociações políticas que o novo presidente terá que fazer. O que ele disse na Alemanha – que um governante deve pensar antes de falar e, algumas vezes, silenciar o que pensa – é sábio; mas não pode prevalecer sobre o poder da palavra forte, plena, não demagógica, que sempre caracterizou sua liderança.

Só que as palavras de Lula não precisam, nem podem, agradar a todos. A “marca de fantasia” que a televisão e a imprensa construíram em torno de sua imagem simpática tem que ser desconstruída para que sua ação política se torne transparente para a sociedade. Quando Lula prometeu, no dia da vitória, “eu vou prestar contas a vocês”, não estava prometendo agradar a todos o tempo todo: estava prometendo governar com transparência. Quando convocou todos os setores sociais que lutaram por sua vitória para governar com ele, não estava usando a sociedade como massa de manobra: queremos acreditar que estava pretendendo criar canais de comunicação com as forças sociais, que possibilitassem ao povo acompanhar e compreender as decisões do governo. Só assim é possível que os brasileiros colaborem ativamente com o governo do PT.

Nossa reeducação sentimental mal começou, e vai exigir que as expectativas infantis da sociedade em relação ao líder amoroso e paternal sejam frustradas. Lula não tem perfil de pai; quando muito, seria um irmão mais velho que tenta promover a unidade da fratria, com a participação de todos, na tarefa de construção de um espaço coletivo mais digno. Um governante irmão é muito mais progressista, muito mais democrático e moderno do que um pai. Só a fratria – nos moldes da amizade “contra o Um” do já citado Discurso da Servidão Voluntária de la Boétie – pode enfrentar o tirano. Seja ele o mercado, o capital internacional, o coronelismo local, o crime organizado, a corrupção. Só a fratria, liderada por um irmão cuja palavra não serve para encobrir o poder e sim para desnudá-lo, colocando seus mecanismos ao alcance de todos, é capaz de eman­cipar os brasileiros do desejo de servidão, tão arraigado depois de séculos de dominação autoritária e paternalista.

Maria Rita Kehl é psicanalista