Cultura

Estamos frente ao desafio de pensar culturalmente o país, reconhecendo-o como um território de contornos definidos e estáveis, com uma história comum e um poderoso meio de unificação de objetivos, de sonhos, de destinos: a língua portuguesa. E, a partir daí, propor caminhos que permitam o reencontro do Brasil com o espírito criador do seu povo

“A cultura não se reduz à política. Seria um equívoco imaginar que a cultura é mero instrumento da ação política. Mas não há uma política universal que não mobilize valores culturais. A cultura é um momento fundamental da grande política (...)”
Carlos Nelson Coutinho

 

O Brasil se despediu da apatia e da indiferença. Essa será talvez a constatação dos historiadores futuros quando examinarem o que ocorreu no país em 2002. Primeiro, porque se produziu uma impressionante mobilização social e política que resultou na eleição de Lula, depois de três tentativas frustradas. Segundo, porque num país que viveu uma década inteira sem se afastar da pauta estabelecida pelas oscilações da bolsa de valores e das taxas de câmbio, a palavra inaugural do presidente vitorioso aos cidadãos foi para desafiá-los a enfrentar a fome, sintoma mais visível da fratura social que envergonha o país. Uma e outra razão permitem um exercício para identificar modificações no comportamento político-cultural da sociedade brasileira.

Em certos momentos da campanha, o tema cultura chegou a migrar do “Caderno 2” para a página política dos jornais, o que não é usual num país que – à direita e à esquerda – percebe a cultura como ornamento ou como assunto de coluna social. Mais recentemente ensaia uma percepção da cultura como espetáculo e a partir desse entendimento estabelece sua relação com o fazer político. Setores mais especializados – os produtores culturais, os diretores de mar­keting das empresas, os gestores de políticas públicas de cultura e essa criação recente engendrada pela economia neoliberal, os “captadores de recursos” – tratam-na, desde algum tempo, como entretenimento, em sintonia com os padrões da indústria cultural. Mas ainda são raros os casos em que a cultura é compreendida – sem obscurecer sua considerável dimensão econômica e social no mundo contemporâneo – como um processo que, ao trabalhar os valores simbólicos da tradição e da invenção, organiza o imaginário, confere identidade, sentido e perspectiva aos saberes e fazeres de determinada comunidade local ou nacional. Fator constitutivo, portanto, de um novo projeto de país que inclua simultaneamente e de maneira conjugada o equacionamento e a resolução da questão social e da questão democrática no âmbito de um projeto nacional compatível com o século XXI. Durante os anos noventa essa noção de Cultura como processo foi soterrada pela dinâmica da indústria cultural e pela adesão do governo FHC ao ideário que, em última análise, substituiu a idéia de país, de comunidade nacional, pela noção de mercado. No que diz respeito às políticas de cultura, a adesão ficou expressa na cartilha do MinC Cultura é um bom negócio, com que o ministro Weffort iniciou sua gestão em 1995.

Os fios que já tecemos

É necessário trazer de volta à mesa o que acumulamos de reflexão durante os anos oitenta e noventa e o que se organizou em políticas, a partir das experiências administrativas em municípios e estados governados por partidos ou frentes de esquerda. É necessário, mas não é suficiente. São outras as dimensões do desafio. Não me refiro aqui a quantidades. Não basta somarmos e darmos coerência discursiva às experiências locais e regionais para obtermos o desenho adequado ao conjunto de políticas públicas de cultura para o Brasil. Refiro-me ao desafio de pensar culturalmente o país, reconhecendo-o como um território de contornos definidos e estáveis há mais de cem anos (a última modificação territorial deu-se em 1902 com a incorporação do Acre); com uma história comum e com um poderoso meio de unificação de objetivos, de sonhos, de destinos: a língua portuguesa. E, a partir daí, propor caminhos concretos que permitam o reencontro do Brasil com o espírito criador do seu povo.

É preciso desenvolver o debate cultural levando em conta as dimensões social, democrática e nacional do projeto de Brasil expresso no programa que oferecemos à sociedade e que, entre outros fatores, resultou na vitória de 2002.

O país amanhece no século XXI dilacerado pela concentração de renda, pela exclusão social e por uma cultura da violência que se generalizou como método de resolução das graves contradições a que foi conduzido nas duas últimas décadas. A concentração de renda e a exclusão social se exprimem na exclusão cultural de vastas camadas da população entregues ao mercado das grandes cadeias de entretenimento com os níveis de degradação que conhecemos.

A questão democrática permanece como problema: as elites nacionais revelaram-se incapazes de pôr em prática a universalidade da noção e do exercício da cidadania. Proclamamos a República, mas, passado mais de um século, não a construímos inteiramente. Não foi incorporada à cultura política dos brasileiros a idéia republicana que, ao longo de duzentos anos, foi-se materializando em alguns países na garantia universal de educação pública, informação, moradia, transporte, saúde pública, previdência pública e políticas públicas de cultura.

Por imposição das lutas políticas imediatas, durante o último quarto de século as esquerdas brasileiras focaram seu esforço teórico e político nas questões democrática e social. A questão nacional permaneceu na sombra. A partir de 1989, entretanto, ela recupera sua importância na agenda em diferentes países do mundo e desafia com novas faces e dinâmicas o exame e a elaboração crítica das esquerdas. De certa forma reconfigura, empresta novos sentidos às duas questões anteriores ao trazê-las para a mesa do debate contemporâneo.

A discussão ocorre num mundo em que o capital financeiro desconhece as fronteiras nacionais; os imperialismos tradicionais evoluíram para constituir uma formação imperial, unipolar, que não encontra opositores nos campos econômico, tecnológico, político e bélico. Além disso, ela se dá sob bombardeio de saturação dos valores, referências e símbolos do império que vão produzindo em larga escala a dissolução das identidades culturais soterradas pelos escombros das demolições das culturas históricas tradicionais.

No que se refere ao Brasil, o esforço para realizarmos esta discussão, nos remete de modo inevitável para a multiplicidade das raízes étnico-culturais, para uma cultura de colonizados, incontornável numa formação social recente, tributária dos modelos europeus e mais recentemente norte-americanos e, por fim, para a necessidade de produzir uma síntese que preserve nossa fisionomia e nos permita uma inserção autônoma e afirmativa no mundo da cultura contemporânea.

O lugar da cultura no CDES

Governo e sociedade, empenhados na formulação de um novo projeto nacional, devem afastar-se da noção de cultura como ornamento, como espetáculo e partir de uma compreensão contemporânea das potencialidades da produção e difusão cultural no equa­cionamento dos grandes desafios do país. E examiná-las como um mecanismo eficaz, ao lado de outras políticas – particularmente as políticas educacionais e de comunicação –, para enfrentar nossas graves distorções sociais, econômicas, políticas e culturais.

O ponto de partida é distinguirmos a produção cultural capaz de gerar ativos econômicos, independentemente de sua origem, suporte ou escala, da lógica da indústria de entretenimento. A atividade cultural sem compromissos com a escala industrial nem com o patamar de lucros proporcionados pelo mercado é aquela que nasce nas comunidades com as festas populares, nos barracões das escolas de samba do Rio, nos blocos carnavalescos do Recife e de Salvador, no Boi de Parintins ou com o artesanato do Vale do Jequitinhonha, com a renda de bilros e o barro dos anônimos vitalinos do Nordeste, com os brinquedos de miriti de Abaetetuba.

A essas duas vertentes – a indústria de entretenimento e a produção e difusão das festas populares e de objetos artesanais – é que designamos no documento “A imaginação a serviço do Brasil”, debatido durante a campanha presidencial de 2002, como economia da cultura. A definição de um conjunto de políticas públicas de cultura, portanto, deve contemplar as especificidades de cada uma dessas dinâmicas e os impactos econômicos, sociais e culturais que delas resultam. Contemplar a economia da cultura significa para o gestor da política pública sofisticar sua percepção para o fato de que essas culturas exigem reconhecimento das agências de governo, “não apenas como ferramenta de auto-estima ou como símbolo folclórico, mas como alternativa inteligente para gerar bônus econômicos, distribuição de renda e desenvolvimento sustentável” (“A imaginação a serviço do Brasil”, pág. 12).

Levar este debate para o âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social é definir um lugar para dar tratamento dialogado às políticas públicas de cultura no governo. Para além do recorte específico do Ministério da Cultura que, durante o demasiadamente longo período FHC, permaneceu insulado na esplanada e foi incapaz de estabelecer uma sinergia com os demais organismos de governo. Trata-se agora de conferir às políticas públicas de cultura o peso e a densidade que o novo projeto nacional demanda. “Reconhecer esse espaço de ação do Estado é abrir o campo de oportunidades das políticas culturais ao desafio da inversão das prioridades e do enfrentamento à desigualdade social e à concentração de renda, partindo de uma renovação do conceito clássico de cidadania, que opera pela lógica do direito à igualdade, para assegurar a noção contemporânea do direito às diferenças no plano político de ação do Estado” (idem, pág. 13). O processo cultural, portanto, deve ser encarado pelo gestor das políticas econômicas e do planejamento do Estado como um fenômeno cultural/econômico/político complexo e diferenciado das atividades econômicas “normais”. E como tal deve ser tratado no momento das decisões políticas e administrativas, como nas recentes medidas de contingenciamento orçamen­tário que imobilizaram o MinC pela absoluta ausência de recursos. O tratamento diferenciado das políticas públicas de cultura, mais que uma tendência já é prática corriqueira de muitos países desenvolvidos quando se trata de negociações no âmbito da OMC, por meio dos mecanismos de “exceção cultural”.

A educação é o braço organizado da cultura

É pouco provável que venha a vingar um projeto cultural consistente se não formos capazes de articular as políticas públicas de cultura com as políticas educacionais. Para que tal articulação se torne possível cumpre redefinir as responsabilidades do poder público no que diz respeito à informação e formação das novas gerações. Se entendemos a escola como espaço de produção e reprodução do conhecimento acumulado e da pesquisa; dos valores éticos, culturais e históricos de um povo é preciso estabelecermos com coragem uma agenda de debate sobre as políticas educacionais e culturais à luz da idéia republicana e de um novo projeto nacional.

Uma nação que se preza não entrega ao mercado a formação de sua juventude e a transmissão dos seus valores éticos ensinados e aprendidos ao longo da história. Não é aceitável, portanto, que o Estado abdique de suas responsabilidades na coordenação dos processos educacionais e culturais. Traduzindo: se, no governo democrático e popular, o Estado não coordena suas políticas educacionais, culturais, ambientais e de comunicação apontadas para a formação de sua juventude e afirmação do novo projeto nacional, estará se condenando à inépcia e ao conservadorismo. O mercado não fará por ele. Ao mercado, como ficou demonstrado ad nauseam, não interessa a afirmação de projeto nacional algum. Seja novo, seja velho.

Não há dúvida de que a rede de maior capilaridade constituída no país é a rede escolar. Tanto é verdade que o sistema acabou sendo sobrecarregado de atribuições. De abrigo utilizado pela defesa civil até a vacinação de cachorros tudo passa pela escola. O que talvez não seja um mal, desde que ela não perca sua função primeira: produzir e reproduzir o conhecimento. O problema não reside na utilização da escola para a prestação de serviços públicos dessa ou daquela natureza, mas na subtração do espaço escolar compreendido como lugar de ensino e aprendizagem, reduzido a posto de distribuição de merenda, ineficaz para alfabetizar, ensinar noções de geografia e história, atendido por professores desestimulados pelos salários baixos e pela falta de oportunidade de reciclar-se e aprimorar-se.

Quem fala de escola no Brasil não pode deixar de falar de crise da escola. Não haverá espaço aqui para identificar raízes, causas e as múltiplas faces de como ela se expressa, desejo indicar apenas uma que, julgo, poderá ser útil para essa discussão: a escola como espaço de produção e reprodução do conhecimento e dos valores éticos e históricos da sociedade e suas relações com os meios de comunicação de massa. Esse mecanismo dotado de tecnologias modernas de difusão forma valores, juízos e comportamentos, competindo com a escola diante do olhar indiferente de um Estado que se furta a assumir suas responsabilidades como instituição republicana.

É verdade também que se impõe um esforço intelectual e político para desvendar o enorme potencial que a escola abriga para oferecer soluções para as grandes crises que atravessam a sociedade brasileira. Destaco um desses elementos, o mais óbvio: o sistema educacional como lugar privilegiado para dialogar com uma juventude que vive em extensão e intensidade um drama desconhecido pelas gerações precedentes: não encontra seu lugar num país que lhe nega o primeiro emprego; que estimula o consumo, mas lhe retira os meios para realizá-lo; que, no campo, lhe nega a terra e oferece a tropa de choque quando ousa ocupar a terra ocio­sa e, na cidade, ao lhe negar oportunidades de trabalho e realização individual e como cidadãos, acaba por conduzi-la à ante-sala de recrutamento das milí­cias do narcotráfico.

Cumpre reconhecer o jovem como um dos sujeitos das políticas públicas de educação e cultura, interlocutor que perpassa todas elas e, a partir daí, redefinir os termos do diálogo entre ele e o sistema escolar. Haverá muitas portas para abrir este diálogo. Não há dúvida, porém, que uma delas – entre as de alcance mais profundo – será a da cultura. Traduzir esta constatação em programas concretos é o desafio para uma juventude e para um país que têm pressa.

Introduzir o elemento estético da cultura brasileira na corrente sanguínea da transmissão do conhecimento que é a escola. Desencadear um processo que produza o reencontro dos artistas brasileiros com a juventude via circuitos escolares; realizar festivais da juventude que conjuguem arte e pensamento, o espetáculo e a reflexão sobre o país e o mundo de modo a converter a escola num lugar habitável, atraente para jovens e professores. Estabelecer um calendário de metas que o Estado possa cumprir, em parceria com a sociedade, particularmente com as organizações juvenis.

Cultura e comunicação

Somos herdeiros de uma imensa dívida informativo-cultural. O vasto aparato de telecomunicações que herdamos da ditadura militar foi concebido, apoia­do nas tecnologias mais modernas disponíveis na época, como uma eficiente rede de integração nacional e um não menos eficiente sistema de controle social. Não respondeu à formação de cidadãos livres. Não era seu propósito.

Essa matriz evoluiu ganhando complexidade nos anos mais recentes, de um lado pela conjugação das telecomunicações com os meios de comunicação de massas e com a informática, de outro, na dimensão propriamente política: as elites liberais à frente da democracia representativa que entrou em cena com a Nova República apoderaram-se daquele complexo e, sem modificá-lo substancialmente, deram-lhe funcionalidade para a nova etapa de disputas políticas que se abria.

Num país de instituições frágeis e de partidos políticos mais frágeis ainda, o poderoso complexo de comunicação de massas – sobretudo a TV – foi posto em movimento a partir da credibilidade construída diante da sociedade e passou a atuar diariamente não apenas como indutor de hábitos de consumo, mas também como condutor das opções políticas do cidadão.

Um parêntesis. Chama a atenção de quem examina a trajetória das esquerdas brasileiras ao longo dos últimos vinte anos, um aspecto curioso: apesar de terem-se afastado das estratégias de transformação social por meio de rupturas e, em conseqüência, adotado o processo de acumulação de forças combinando lutas sociais e ocupação de espaços institucionais, não agendaram, com o devido relevo, o debate em torno do processo e dos meios para a conquista da hegemonia das idéias na sociedade e o papel que desempenha a elaboração de um projeto cultural nessa disputa.

Não avançaremos sem resgatar aquela dívida informativo-cultural com o nosso povo, sem resolver esse capítulo essencial da crise brasileira: a democratização dos meios de comunicação. Desse modo, para retornar ao desafio de manter a cultura na pauta do país, será útil organizar uma agenda que inclua: a revisão drástica das leis de incentivo fiscal e a transição para novas formas de financiamento via fundos públicos e dotação orçamentária – não tem cabimento o contribuinte financiar a árvore de natal do Bradesco na Lagoa Rodrigo de Freitas, espetáculos da Broadway e construção do Museu Gughenheim no Rio –; trazer a Ancine para o âmbito do Ministério da Cultura, devolvendo à agência sua concepção original, considerando o caráter estratégico da produção e difusão do audiovisual para a formação do imaginário cultural; é bater e aprovar uma legislação contemporânea sobre direito autoral e, além de outras, as questões brevemente aqui exploradas: as relações entre as políticas públicas de cultura e as políticas educacionais e de comunicação.

Recuperar o laço solidário entre os criadores de arte e o povo brasileiro por meio de ações políticas concretas, como articular atividades culturais ao Programa Fome Zero. Inventar outros. Para que possamos construir o lastro necessário para cobrar, como o presidente pediu aos artistas durante a campanha: ou o governo Lula produzirá transformações culturais profundas ou não produzirá transformação alguma.

Pedro Tierra é poeta