Internacional

Entrevista com Marco Aurélio Garcia

 O assessor especial de Relações Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, foi considerado por setores da oposição venezuelana persona non grata quando da sua estada naquele país. Estes mesmos setores chegaram a realizar manifestações frente à Embaixada do Brasil em Caracas, acusando nosso país de ingerência indevida em assuntos internos da Venezuela e de favorecimento ao governo Chávez. Nesta entrevista, Marco Aurélio nos conta o que viu naquele país e qual a política do governo brasileiro frente à crise política venezuelana.

Você esteve na Venezuela em dezembro, qual foi o quadro político que encontrou?
Em primeiro lugar, é importante sublinhar que a minha ida à Venezuela foi uma decisão do então presidente eleito Lula. Eu encontrei um nível muito grande de enfrentamento. Havia uma greve geral que tinha um objetivo muito claro: o afastamento do presidente Hugo Chávez do poder. A situação parecia mais grave ainda se levarmos em conta a retórica extremamente exacerbada de ambas as partes, porque as críticas eram muito fortes com relação ao governo e este por sua vez reagia de forma muito dura em relação à oposição.

Naquele momento, a nossa preocupação era com a possibilidade de um golpe de Estado, ou de uma insurreição, e ao mesmo tempo de uma resposta muito violenta por parte do governo. Por essa razão, realizamos uma série de contatos. Meu mandato inicial era para contatar o governo. Estive com o mi­nistro das Relações Exteriores, Roy ­Chaderton, com o vice-presidente, José Vicente Rangel, e depois, por duas vezes, com o presidente Chávez e também com o então presidente da Assembléia Legislativa, William Lara. Mas estando lá me dei conta de que era importante também manter conversações com setores da oposição.

E quais foram esses setores?
Há várias expressões da oposição. Havia o grupo de representantes da oposição que estava reunido na mesa negociadora que naquele momento estava funcionando sob a coordenação do secretário-geral da OEA, com quem eu estive também, o César Gavíria.

Nesse momento, por sugestão do próprio embaixador do Brasil, Rui Nogueira, que faz um trabalho muito bom lá, pedi uma conversa com setores da oposição. Tive oportunidade de conversar com três parlamentares, dirigentes da Ação Democrática, que foi no passado um partido muito relevante, embora hoje tenha peso menor, e também encontrei o jornalista Teodoro Petkoff, que foi dirigente do MAS (Movimento al Socialismo), ministro da Economia do último governo Caldera, e que, tendo uma posição crítica em relação ao presidente Chávez, representava um tipo de oposição mais moderada, com enormes preo­cupações com o exacerbação da situação do país. Ele mesmo, inclusive, tinha restrições quanto à estratégia dos setores mais ativos da oposição, particularmente dos presidentes da Fedecámaras (federação de empresários) e da Central de Trabalhadores Venezuelanos.

Nessa ocasião, formalizou-se o pedido do governo venezuelano para que o Brasil enviasse um navio com gasolina, porque havia um desabastecimento muito agudo. A minha opinião foi que deveríamos atender o pedido, no suposto de que isso contribuiria para minorar a crise de desabastecimento. Era um momento em que, por falta de gasolina ou de qualquer outro produto essencial, poderia se repetir o levante que houve em 1989, quando o governo de Carlos Andrés Perez tomou medidas extremamente impopulares relacionadas ao preço da gasolina. Essa era inclusive a opinião que o secretário-geral da OEA tinha me transmitido. Então, havia o temor de que a falta de produtos básicos poderia levar setores da população a buscá-los onde achassem que esses produtos se encontrassem. Nesse contexto, achei que o atendimento à solicitação do governo venezuelano era uma medida correta. Havia sido formulado um pedido ao governo Fernando Henrique, que disse em princípio que atenderia, mas nós tínhamos nos dado conta de que a tramitação desse pedido estava um pouco lenta, razão pela qual insistimos com o governo para que isso fosse feito. Quando voltei ao Brasil, entrevistado pela imprensa brasileira me perguntaram o que aconteceria se o governo Fernando Henrique não atendesse o pedido, respondi que o governo Lula o faria.

Qual a repercussão que esta atitude teve junto à oposição?
A decisão foi muito polêmica, porque muitos nos acusaram de estar intervindo no processo interno da Venezuela. é evidente que estaríamos intervindo de qualquer maneira: se tivéssemos aceitado o pedido – como o fizemos; e se não tivéssemos aceitado, também, porque estaríamos atendendo à oposição. Houve uma tentativa de procurar caracterizar minha presença lá como um reforço à posição do governo e que eu estaria desqualificando a oposição. Eu não fiz isso. Nossa posição é bem clara: nós nos relacionamos com um governo constitucional, não existe uma situação de beligerância na Venezuela que nos autorize a tratar de forma equânime as partes. Há um governo constitucional, mas ao mesmo tempo não desconhecemos que este governo está sendo fortemente questionado e que deveríamos também estabelecer algum tipo de ponte com setores da oposição. O próprio Chávez naquele momento tinha aberto essa possibilidade.

É aí que entra a idéia da formação do Grupo de Amigos da Venezuela?
A idéia do Grupo de Amigos já veio antes do primeiro de janeiro. A composição do grupo desagradou a alguns, inclusive ao próprio Hugo Chávez, tanto que ele veio uma vez ao Brasil discutir a proposta com o presidente Lula. Ao Fidel Castro também desagradou. O Brasil procurou, quando montou o Grupo de Amigos, incluir setores que inclusive tinham aparecido publicamente comprometidos no apoio ao golpe de abril.

Qual é a composição do Grupo de Amigos da Venezuela? 
É Brasil, Chile, Portugal, Espanha, Estados Unidos e México. Espanha e México também eram identificados com a posição dos Estados Unidos no caso venezuelano. O presidente Chávez disse que, apesar de estar disposto a lutar pela ampliação do Grupo de Amigos, de qualquer maneira ele via com bons olhos a sua formação, e por aí fomos. O Grupo de Amigos teve uma função importante, porque num determinado momento havia um grupo de países de peso com opiniões diferenciadas sobre a crise na Venezuela. O Grupo de Amigos teve num primeiro momento uma função simbólica muito importante que ajudou, e o próprio presidente Chávez reconheceu isso. Daqui para adiante o Grupo de Amigos pode ser uma instância de recursos à qual as partes recorram num determinado momento. Ele hoje não tem uma função mediadora, quando muito ele pode se somar um pouco à função facilitadora que o secretário da OEA vem desempenhando. Só poderá ter uma função mediadora se for investido dessa prerrogativa.

Você vê perspectivas de solução a curto prazo para a crise?
A crise da Venezuela pode durar muito tempo, porque ela tem raízes muito profundas. Todo o sistema político venezuelano, que se baseava em dois partidos de massa fortíssimos – o Copei, de inspiração democrata-cristã, e a Ação Democrática, que representava um populismo social-democrata sui generis na América Latina –, ruiu.

A Venezuela sempre foi um país fortemente dependente dos ingressos de petróleo. Ela viveu períodos de auge, como foram os anos 70, depois um pe­ríodo de retração com a crise do petróleo. Havia de um lado uma sociedade moderna, uma elite que vivia seguramente em padrões norte-americanos das classes altas, com uma universidade pletórica que pagava regiamente seus professores e concedia milhares de bolsas de estudo no exterior. E, ao mesmo tempo, camadas da população que não se beneficiavam. Essa situação se tornou dramática no final dos anos 80 com o ajuste neoliberal na América Latina.

Estudos mostram que neste momento houve um decréscimo da participação das camadas populares na renda do país. Diante desse quadro, aquele sistema político que antes funcionava muito bem numa economia petroleira afluente, se esboroou. O impeachment do Carlos Andrés Perez, da Ação Democrática, e a eleição do Rafael Caldera já como um candidato outsider, fora do esquema tradicional, ele que tinha sido uma liderança tradicional do Copei, não são mais que manifestações desse processo de decomposição. Então, evidentemente, recompactuar o país não é fácil!

Qual é o significado do governo Chávez?
O governo tem, sem dúvida nenhuma – está presente nos dois resultados eleitorais –, uma enorme confiança das camadas populares. Mas o governo Chávez talvez não tenha tido a capacidade de realizar um movimento em direção a importantes setores das classes médias.

Por outro lado, ele optou por uma retórica muito forte, que assustou esses setores. Um dos bordões fundamentais da oposição ao Chávez é que ele quer criar um regime castro-comunista na Venezuela. Ora, as reformas que o governo realizou até agora são extremamente moderadas. A exacerbação da oposição se alimenta muito mais da retórica do governo do que da sua ação propriamente dita, e isso cria uma certa situação de ingovernabilidade em determinados momentos.

O Teodoro Petkoff usa uma frase que reflete um pouco isso. Ele diz: “o Chávez não fez uma revolução na Venezuela, não chegou nem mesmo a fazer uma reforma, mas criou uma contra-revolução”. Não quero fazer minhas as palavras dele, mas acho que a frase alude concretamente aos problemas.

A impressão é que Chávez tem grande apoio popular desorganizado, mas que a sociedade civil organizada, na sua maioria, está na oposição, inclusive a Central de Trabalhadores.
Sim, a tentativa de Chávez, num determinado momento, de disputar a direção da central sindical foi desastrada. É verdade que há uma parte do movimento sindical que o apóia, mas é uma parte minoritária. Por outro lado, esse apoio difuso que o Chávez tem hoje se dá mais em função da sua própria pessoa.

A oposição, por exemplo, bate muito na tecla de que os Círculos Bolivarianos de apoio ao governo são no fundo uma repetição dos CDRs cubanos. A grande verdade é que há muitos setores da opinião pública que são chavistas porque reconhecem no governo aquilo que são conquistas, a meu juízo, não só mate­riais, mas conquistas simbólicas. Há evidentemente conquistas materiais, como os programas habitacionais, que são importantes. Mas Chávez é um homem do povo, com estilo do homem do povo, sem muitas sutilezas. Isso cria uma oposição. Uma parte dela eu caracterizo como uma oposição estética ao chavismo, que não tolera o que o Chávez representa enquanto proposta plebéia. Não estou com isso dizendo que não existam demandas legítimas, de caráter democrático.

Nós dois vivemos o Chile de Allende. Acho que, em alguns aspectos, há semelhanças. As classes médias na oposição, a atuação direta dos EUA apoiando uma tentativa de golpe, como em abril do ano passado.
Acho muito diferente a situação. Em primeiro lugar, o contexto internacional é outro. É bem verdade que houve uma tentativa de golpe, mas uma das razões do seu fracasso, sem dúvida nenhuma, foi a reação internacional, apesar da ação titubeante dos EUA, que teve de fazer inclusive uma espécie de autocrítica da posição que assumiu. A cláusula democrática, no caso do golpe da Venezuela funcionou muito, não tanto como no caso do Paraguai, mas funcionou. Hoje há um repúdio interna­cional para soluções desse tipo, que eu espero dure eternamente.

Em segundo lugar, o governo Allende tinha um apoio orgânico, se estruturava em torno de um conjunto de partidos que apresentou um programa de governo radicalíssimo. Não há nenhuma experiência eleitoral que tenha apresentado um projeto tão radical quanto o do Allende. Era um programa bem mais à esquerda que o Programa Comum da França, bem mais à esquerda que os programas social-democratas na Europa do pós-guerra, que foram muito radicais, como o inglês, do Partido Trabalhista. Bem mais radical ainda se levarmos em conta que ele estava num quadro de economia dependente.

A sociedade chilena estava cindida, é verdade. Mas as classes médias, no entanto, não estavam igualmente distri­buídas, havia uma parte das classes médias que apoiava o governo Allende. E tanto isso é verdade que a ditadura no Chile, para se impor, foi obrigada a realizar um banho de sangue que só não foi maior porque a capacidade de reação do governo foi pequena. Mas havia uma energia represada na sociedade, que se o Allende (não estou dizendo que ele devesse ter feito isso) tivesse conclamado a população a resistir, poderíamos ter tido um cenário tipo Guerra Civil Espanhola. E o governo do Allende era muito mais radical que o governo republicano espanhol. Paradoxalmente, há um aspecto em que talvez o Chávez tenha vantagem sobre o Allende; o Chávez tinha e tem apoio das Forças Armadas, ou pelo menos da maior parte delas.

Mas além desse paradoxo, você disse que o programa de Chávez é algo muito aquém do que foi o governo Allende. Trata-se de algumas reformas. Ao mesmo tempo ele perdeu o apoio das classes médias; isso não é um paradoxo?
É, mas eu acho que isto está um pouco ligado à questão da condução política. Na Venezuela hoje não há partidos interlocutores.

Houve uma greve geral muito forte contra o governo, que chegou a durar 63 dias, de novembro a janeiro, e acabou derrotada. Na seqüência, Chávez, ao invés de fazer um gesto de conciliação, tentando dividir a oposição, isolar os setores golpistas, bateu forte na oposição como um todo. Que perspectivas você vê de evolução para o confronto?
A situação venezuelana exigirá muito diálogo. O interesse do governo brasileiro é de termos uma zona de tranqüilidade democrática na América Latina, de democracia econômica, política e so­cial. O que o Brasil quer para o continente é o mesmo que estamos desejando para o nosso país. Estamos fazendo um governo de princípios, de posições, de políticas, mas de entendimento. Isso significa levar às últimas conseqüências a capacidade de negociação com forças que pensam distintamente de nós, porque consideramos que isso é um elemento central para lograr um certo tipo de estabilidade, que é fundamental para que as grandes reformas se façam. Elas não poderão ser feitas com 50% mais um.Não queremos intervir na vida interna dos outros países, mas queremos que eles tenham um tipo de evolução compatível com o que consideramos ser um entendimento em torno de novas posições.

Mas numa situação tensa como a venezuelana, em torno de que pontos seria possível esse entendimento?
Eu diria que num primeiro momento é necessário haver uma definição de um quadro institucional mais preciso. A oposição quer derrotar o governo Chávez; ela perdeu o primeiro round, que era a tentativa de derrubá-lo pela pressão das ruas. Isso preocupava a todos na América Latina. O que lhe resta são duas possibilidades: a primeira é, no marco da Constituição atual, obter o referendo revogatório que está previsto para agosto ou eventualmente uma reforma constitucional, que a essa altura levaria tanto tempo quanto o prazo do referendo revogatório. Ou a outra possibilidade: ela precisa esperar até que haja eleições em 2007.

Em qualquer um dos casos, mas sobretudo na hipótese de um referendo, há uma série de desafios que precisam ser vencidos. Um deles é como se organizar o processo eleitoral na Venezuela. Não há estruturas, não há uma justiça eleitoral à brasileira. Então, a constituição de um Comitê Nacional Eleitoral é um elemento fundamental que só poderá ser resolvido consensualmente. Não há nenhuma possibilidade de que uma parte imponha à outra. Vai ser um trabalho de artesanato político, no qual os dois lados têm que estar engajados. É possível que isso ocorra; há disposição, há recursos na sociedade venezuelana e nas instituições. Outro problema de uma futura agenda eleitoral é como ficam os meios de comunicação, que são muito parciais. Enfim, todas essas questões têm que ser resolvidas no âmbito da negociação. Se elas não forem resolvidas dessa forma, o que pode acontecer é que uma das partes, valendo-se de uma situação de momento, pode tentar derrotar a outra. No entanto, com o nível de divisão que a Venezuela tem hoje, essa imposição seria dada ao fracasso, pelo menos no médio ou longo prazos. Um enorme conflito se geraria.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate