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O debate previdenciário não se coloca apenas em termos fiscais, muito menos atende a interesses financeiros privatistas. Trata-se de dar um tratamento democrático e social ao processo de alocação dos restritos recursos orçamentários, quando 40 milhões de pessoas economicamente ativas estão excluídas da proteção previdenciária

reforma da previdência social é um compromisso de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uma exigência do país. A prioridade deste governo é garantir que mais brasileiros possam ter acesso, no futuro, a pelo menos um salário mínimo, cujo valor é sempre alvo de críticas mas nem todos a ele têm direito. Por isso, precisamos trabalhar para que os regimes previdenciários existentes hoje no Brasil observem regras mais adequadas, primem pela justiça social e tenham sustentabilidade orçamentária.

Desde o dia 2 de janeiro, quando assumi o Ministério da Previdência Social, destinei minha agenda de trabalho quase integralmente ao debate sobre a reforma. Recebi mais de 150 entidades de classe em meu gabinete. Discuti o assunto com sindicalistas em São Paulo, em Belo Horizonte, na Bahia e no Rio Grande do Sul. Fui a audiências no Congresso Nacional e no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Discuti o tema com 27 governadores e com mais de mil prefeitos em Brasília. Em resumo, venho fazendo o que na militância de esquerda sempre fiz: não fugir ao debate, ao contrário, utilizá-lo como único método de realização da democracia.

Por debate, entendo o confronto franco, honesto e comprometido de idéias, números e fatos. Coisa que parte dos interlocutores, minoritária é verdade, tem se recusado a fazer. Preferem esconder-se atrás de velhos chavões, como o que sustenta que a reforma é exigência do FMI ou de banqueiros nacionais e internacionais. A reforma é, sim, uma exigência, mas da população mais carente do país, que não tem acesso a políticas públicas do Estado porque o orçamento público está comprometido com outros tipos de despesa. Para entender esse desequilíbrio, é importante conhecer melhor os dois sistemas previdenciários obrigatórios existentes no país. Repito aqui o que tenho defendido em audiências públicas.

No Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), trabalhadores e empregadores pagam 81% das despesas com aposentadorias e pensões. Aqui estão trabalhadores do setor privado, de empresas públicas e de parcela dos municípios. Além deles, também pertencem a este sistema trabalhadores autônomos, empregados rurais e domésticos, muitos dos quais, devido a seus baixos rendimentos, se aposentam com um salário mínimo, normalmente após atingirem a idade necessária para a obtenção do benefício. Ao garantir o pagamento de um salário mínimo a esses trabalhadores, que representam quase dois terços dos beneficiários desse sistema, o Regime Geral de Previdência Social pode ser visto como o maior programa de redistribuição de renda do país.

Já no setor público, as contribuições dos trabalhadores contratados pelo regime estatutário e de seus empregadores, cuja cota é paga ainda que não seja discriminada no Orçamento, cobrem apenas 36% das despesas com aposentadorias e pensões. Aqui estão todos os funcionários públicos, civis e militares, dos três Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, que pertencem ao Regime Próprio de Previdência dos Servidores.

Neste sistema, as regras são diferentes não só em relação aos trabalhadores vinculados ao INSS mas também entre as diferentes categorias de trabalhadores do setor público.

Se as contribuições de cada sistema previdenciário não são capazes de cobrir integralmente as despesas com benefícios, a sociedade brasileira, por meio de impostos pagos ao Estado, é chamada a cobrir a diferença. Em 2002, as despesas com aposentadorias e pensões no INSS exigiram R$ 17 bilhões dos cofres públicos. Esse dinheiro serviu para complementar as despesas de 19 milhões de benefícios.

Também por meio de impostos pagos ao Estado, a sociedade destinou R$ 39 bilhões em 2002 para as despesas com aposentadorias e pensões do setor público, mais que o dobro do destinado ao regime do INSS. Só que no caso da previdência do setor público, esse dinheiro serviu para complementar os gastos com apenas 3,2 milhões de benefícios de servidores da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Os dois sistemas, portanto, são subsidiados de forma desigual por toda a sociedade brasileira. No INSS, os recursos tributários arrecadados de toda a população para complementar o pagamento de aposentadorias e pensões representaram, em 2002, R$ 69 por mês para cada um desses beneficiários.

Já nos regimes próprios de previdência dos servidores, os recursos tributários arrecadados de toda a população para complementar o pagamento de aposentadorias e pensões representaram, também em 2002, R$ 938 por mês para cada um desses beneficiários.

Ou seja, as diferenças de regras entre os dois sistemas previdenciários oneram de maneira desigual os recursos do Orçamento. Também é possível concluir que a existência dos dois sistemas previdenciários agrava ainda mais a desigualdade social no Brasil.

Mesmo apontando essas discrepâncias, o governo Lula não pretende aderir ao discurso perigoso, estimulado nos últimos anos, que busca degradar os funcionários públicos, fragilizar o Estado e, com isso, reduzir sua competência e seu raio de ação. O servidor público não tem culpa por haver prestado concurso público, ter sido selecionado e tido acesso a um determinado conjunto de regras previdenciárias. Ainda que se diga que parte dessas regras carregue injustiças sociais e seja financeiramente insustentável, a responsabilidade política pela existência desse regime não deve recair jamais sobre os servidores públicos, que durante anos doam ao Estado seus melhores esforços e energias para a construção de um Brasil melhor. Essa responsabilidade é da classe política, que produziu regras desiguais na previdência e agora tem a oportunidade de recolocá-las em patamares semelhantes.

Com essas mudanças, a sociedade brasileira terá a oportunidade de reduzir a desigualdade social e acelerar a retomada do crescimento econômico. Primeiro, porque passará a tratar com maior igualdade os trabalhadores do setor público e do setor privado. Segundo, porque a reforma permitirá à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios destinar, já a partir de 2004, mais recursos a investimentos nas áreas sociais e de infra-estrutura, transformando em realidade a esperança que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Portanto, o debate previdenciário nem se coloca apenas em termos fiscais, muito menos atende a interesses financeiros privatistas. Trata-se de dar um tratamento democrático e com visão claramente social ao processo de alocação dos restritos recursos orçamentários, em um país em que 40 milhões de brasileiros e brasileiras economicamente ativos estão excluídos de qualquer proteção previdenciária, bem como grande parte não recebe do Estado os direitos sociais básicos de saúde, educação e moradia, por exemplo.

Uma visão de esquerda na previdência não significa defender situações preestabelecidas, mas, ao contrário, enfrentar os desafios de construir o justo e o sustentável e liberar recursos públicos para que possamos construir um orçamento igualmente justo, para com os que estão hoje fora dos princípios básicos de cidadania e participação.

Ricardo Berzoini é ministro da Previdência Social. Em 2002, foi reeleito deputado federal pelo PT-SP