Economia

Entrevista com ministro do Planejamento Guido Mantega

Durante a campanha eleitoral do ano passado, o economista e então professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo Guido Mantega foi um dos primeiros – senão o primeiro – petistas a defender a tese da autonomia do Banco Central. Agora ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, nesta entrevista Mantega explica com clareza sua posição

Há muita confusão na discussão sobre a questão da independência e/ou da autonomia do Banco Central; para você esses dois conceitos são a mesma coisa?

Não. No mundo há bancos centrais que possuem independência e, portanto, decidem a política monetária e a sua implementação, como é o caso do Federal Reserve Bank, o FED dos Estados Unidos, e do Banco Central Europeu, e existem casos de autonomia operacional do banco central, cujo exemplo maior é o do Banco da Inglaterra. A diferença entre as duas concepções é que, na de independência do banco central, por exemplo no caso do FED, é o Allan Greenspan, seu presidente, quem decide qual política monetária vai ser aplicada, se vai combater mais ou menos a inflação, se a economia está aquecida ou não, sem nenhuma interferência do governo central. Ele decide a política e decide os instrumentos de política: os fins e os meios. Quando o banco central só tem autonomia operacional, ele não decide os fins, as metas, os objetivos a serem alcançados; que são definidos pelo governo central. O BC tem autonomia apenas para alcançar aquelas metas, usando seus instrumentos. Na Inglaterra é o governo central quem diz: o Banco Central tem que atingir uma meta de inflação de X %. Essa decisão vai implicar uma política monetária mais restritiva ou menos restritiva. Se o governo decidir por uma meta de inflação de 2%, que é muito baixa, significa que, para atingi-la, o Banco Central vai ter que usar taxas de juros elevadas, vai fazer uma política monetária restritiva. Essa é a diferença. O presidente dos EUA não pode ligar para o Greenspan e dizer que quer que baixe a taxa de juros, que afrouxe a política monetária e persiga uma inflação maior. Ele não tem autoridade para isso. O FED deve explicações só ao Senado. Uma vez a cada seis meses o presidente do Banco Central tem que ir ao Senado e fazer um relatório, prestar esclarecimentos sobre a política que está implementando. Esse é o modelo.

Quem nomeia a diretoria do FED?

O presidente tem essa prerrogativa, com a aprovação do Senado. A única autoridade que o presidente da República tem é a de indicar, a cada quatro anos, o presidente do FED, num mandato cruzado com o seu, ou seja, no segundo ano de mandato o presidente da República indica o presidente do Banco Central. No caso dos EUA, é nítido que é Wall Street quem indica. Em geral, o presidente do FED é alguém que tenha a confiança de Wall Street, porque o presidente da República não quer que os mercados fiquem ansiosos, que a bolsa caia. Depois de nomeado, mesmo que o presidente do Banco Central cometa algum ato que contrarie o presidente da República, ele não pode ser mandado embora. É isso que dá independência. O Bush pai assumiu em 1988, se não me engano, a economia norte-americana estava em dificuldades e aí começou essa guerra desastrada que o filho quer fazer de novo. Havia uma pressão inflacionária naquele momento e o Greenspan resolveu subir as taxas de juros provocando uma recessão. O Bush pai perdeu a reeleição por causa do mau desempenho econômico e ele não pôde fazer nada. Isso é independência do Banco Central. Não é o que está se propondo no Brasil.

O que está se propondo?

É um modelo mais semelhante ao do Banco da Inglaterra, que concede ao BC uma autonomia operacional. O governo central continua determinando a política monetária. Existe um órgão acima do BC, o Conselho Monetário Nacio­nal, que é a quem cabe, por determinação constitucional, definir a política monetária. É quem define a meta de inflação, se a política vai ser mais expansionista ou não etc. O CMN hoje é composto por três membros: o ministro do Planejamento, o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central. É um órgão em que o Banco Central tem assento, mas em que a maio­ria é do Executivo. Cabe ao conselho definir as metas de inflação que serão perseguidas pelo Banco Central e isso vai implicar uma política monetária mais frouxa ou mais rigorosa, mais restritiva ou mais liberal. Por exemplo, o Conselho Monetário Nacional pode fixar que o Brasil vai perseguir uma taxa de inflação para 2004 de 20%. É uma taxa generosa, uma inflação elevada, isso significa que para persegui-la o BC, que tem os seus modelos econômicos, vai baixar as taxas de juros e a sua autonomia se restringe aos instrumentos que ele vai usar para atingir aquele objetivo determinado pelo CMN. Então existe uma autonomia mas é restrita. Na verdade, o Banco Central estaria enquadrado pelo CMN.

E mais, cada banco central tem um estatuto diferente do outro. No modelo que estou propondo, embora a diretoria do Banco Central e seu presidente tenham um mandato fixo – que é o que lhe dá autonomia –, eles são demissíveis pelo presidente da República no caso em que as metas e os objetivos estabelecidos não estejam sendo cumpridos. A qualquer momento, portanto.

As metas do Banco Central dizem respeito somente a controle da inflação e fixação da taxa de juros?

Não é só uma meta de inflação, os objetivos são mais amplos. Devem-se estabelecer pelo menos três objetivos: manter a inflação sob controle, no caso do Brasil, que adotou metas de inflação, perseguir uma meta e, além disso, permitir um crescimento sustentado da economia e perseguir o pleno emprego. Então são outros objetivos que devem ser atribuídos para o Banco Central. Uns ortodoxos podem achar que isso não cabe. Cabe sim. Inclusive isso está no estatuto do FED, o Banco Central norte-americano. Lá diz que o banco tem que perseguir o equilíbrio monetário, ou seja, uma inflação baixa, manter a moeda valorizada, mas tem que perseguir também o crescimento sustentado e o pleno emprego. Só que como o banco é independente, é ele que interpreta como vai perseguir essas metas. No nosso caso já é um pouco diferente, porque ao estabelecer essa meta, o governo está fazendo um contrato com o Banco Central; se ele não conseguir cumprir alguns desses itens, a proposta é de que haja uma cláusula em que o presidente da República possa demitir a diretoria. Existem situações de crise em que é necessário ter um instrumento de demissão rápida. Por exemplo: recentemente, na Argentina, ainda na época do Cavallo no Ministério da Fazenda, o presidente do Banco Central era um sujeito chamado Pedro Pou. Surgiram denúncias de que estaria havendo lavagem de dinheiro a partir de um banco privado e de que o presidente do BC estaria envolvido. Como ele tinha estabilidade e não podia ser demitido, o Congresso teve que analisar o caso e o sujeito ficou três meses no cargo, o que aprofundou uma crise que já era grave, porque já existia uma situação em que o presidente do Banco Central não se entendia com o ministro da Fazenda e, além de tudo, era suspeito de estar envolvido em operações ilícitas. Então é necessário ter instrumentos de modo que o presidente da República possa superar rapidamente uma crise dessa natureza demitindo a diretoria do BC. Seria necessário definir situações muito precisas nas quais ela possa ser demitida, é claro que também com a concordância do Senado, que é a instância que confirma ou não a indicação do presidente da República.

O Banco Central brasileiro tem duas funções: de um lado, aquilo que caracteriza o Banco Central clássico, ou seja, a supervisão da política monetária e cambial do país; e de outro, a função de fiscalização do sistema financeiro nacional. Você acha que a autonomia deve ser igual para o cumprimento de ambas as funções?

Existe uma discussão sobre se a fiscalização deveria permanecer no Banco Central ou deveria ser atribuída a outra agência; eu prefiro que fique no BC, porque ele possui mais recursos para fazer uma boa fiscalização, ele tem equipe, tem controle das operações diárias de todos os bancos. Isso não quer dizer que ele sempre tenha feito isso com a eficácia devida no passado. Recentemente vimos vários escândalos no setor bancário brasileiro que poderiam ter sido evitados se o BC fosse mais eficiente – essas histórias do Bamerindus, do Banco Nacional, do Banco Econômico, nas quais o BC estava fazendo vistas grossas para desvio de recursos, para irregularidades que, quando foram constatadas, causaram prejuízo para o poder público e, portanto, para a população. Nós estamos pagando uma conta salgada do Proer que podia ter sido evitada. O Banco Central, assim que detectou as irregularidades, deveria ter tomado medidas, tinha que fechar logo esses bancos. Mas foi um erro das pessoas que lá estavam e não cumpriram as suas funções.

Há uma certa percepção da sociedade de que o Banco Central vem tendo autonomia demais para socorrer o sistema financeiro. Na sua visão, como esse problema é enfrentado?

De fato o governo Cardoso deu uma autonomia informal ao Banco Central que quase o leva à condição de independência, tanto que no final do governo FHC o ministro da Fazenda nem aparecia mais: Quem falava de política econômica era o presidente do BC. O Conselho Monetário Nacional não existia, não se ouvia falar, porque tudo era decidido pela diretoria do BC: as metas a serem atingidas, a modalidade etc. Isso tem que ser mudado, fortalecendo o CMN, dando a ele a atribuição de definir a política monetária. Então esse modelo significa uma mudança em relação àquilo que foi praticado nos oito anos do governo Cardoso. Nós tivemos um presidente do Banco Central, o Gustavo Franco, que ditava a política econômica, a política cambial, falava contra as câmaras setoriais, era um pequeno imperador dentro de um governo fraco. O ministro da Fazenda preferia ficar low profile e provavelmente foi isso que lhe garantiu uma sobrevivência mais prolongada. Nós queremos mudar esse estado de coisas: o presidente do Banco Central hoje não fala de política econômica, não fala de política fiscal, ele está subordinado ao governo central e ao CMN. Friso isso na condição de membro do Conselho Monetário Nacio­nal exercendo os meus direitos e deveres plenamente.

Na sua visão, o Banco Central deveria ter uma autonomia orçamentária?

A autonomia orçamentária não é muito importante. O BC vem perdendo funções. Ele, por exemplo, não emite mais títulos. Essa função passou para o Tesouro; a gestão da rolagem das dívidas é cada vez mais puxada para o Tesouro. O que o BC faz hoje é a rolagem dos títulos cambiais e da dívida externa, mas mesmo os títulos cambiais, no meu ponto de vista, já poderiam passar para as mãos da Secretaria do Tesouro. Ela tem condições de fazer a rolagem, ela tem estrutura para isso. Na verdade, o BC deve ficar restrito à política cambial, que não é pouco, evidentemente, mas que também é definida no Conselho Monetário Nacional. Repito: é o CMN que decide isso e a política de juros.

Como você encara as críticas que estão aparecendo dentro do PT e também na imprensa de que a visão de autonomia leva a perder os instrumentos para desenvolver uma política econômica de crescimento e distribuição de renda?

Acho até que essas críticas não são infundadas porque faltou discussão, nós discutimos pouco dentro do partido, então os companheiros têm razão de se preocupar, porque tradicionalmente autonomia ou independência do Banco Central significou dar todo o poder aos banqueiros, tornar a política monetária independente da política fiscal e do governo central. Se fosse isso eles teriam razão, de fato a preocupação tem fundamento, porém no modelo que está se propondo isso não vai acontecer. Insisto: a ação dele é limitada e é preciso que haja uma cláusula de demissão da diretoria do Banco Central, embora ela tenha um mandato fixo, no caso em que houver negligência, um descumprimento das metas e dos objetivos que foram estabelecidos pelo governo.

Qual é o encaminhamento que esse processo vai ter?

Institucionalmente, é a discussão pelo Congresso do artigo 192, que rege a organização do sistema financeiro nacional. Esse artigo foi votado na Constituição de 88 e deveria ter sido regulamentado por lei complementar. Como ele envolvia muitos assuntos, nunca foi possível fazer essa regulamentação. O artigo diz: uma lei complementar vai regularizar o tabelamento de juros na economia brasileira, a prerrogativa do presidente da República permitir ou não a entrada de bancos estrangeiros, o papel e as prerrogativas do Banco Central. É um artigo tão extenso que nunca foi possível regulamentá-lo. A proposta que existe é de que se mude esse artigo dizendo que “o artigo será regulamentado por leis complementares”. Aí se poderá votar um aspecto, não votar outro, e aí se discutiria a questão da autonomia operacional do Banco Central. O outro passo seria que o governo tivesse clareza em relação ao modelo que pretende implantar para o BC; e isto vai depender de uma série de discussões que não foram feitas no período da campanha. Eu sei que há companheiros que estão completamente contra essa idéia, que acham que é fazer uma concessão neoliberal. Dependendo do modelo até pode ser, mas o que se propõe não é evidentemente isso. Eu quero lembrar que hoje praticamente não existe no mundo um Banco Central subordinado ao Executivo, a maioria dos países – França, Itália, Alemanha, por exemplo – já optou por um sistema com algum grau de autonomia.

Quais são as vantagens e desvantagens quando você dá algum grau de autonomia para o Banco Central?

Na autonomia há uma perda de comando, uma diminuição do grau de ingerência do Executivo sobre o BC e, portanto, sobre a política monetária. A vantagem é que ela dá ao mercado uma perspectiva de que a inflação será mais baixa, e isso é considerado pelos agentes de mercado como uma garantia para que a inflação tenda a ser mais baixa, porque não pode acontecer a situação do presidente da República pegar o telefone, ligar para o Banco Central e dizer “nós estamos com a inflação subindo, mas eu não quero nem saber, eu tenho eleição no ano que vem, abaixa as taxas de juros, não importa que tenha mais inflação, eu quero crescimento já, aumento de emprego já”. Isso supostamente alimentaria um processo inflacionário já em curso. Do ponto de vista das expectativas do mercado, e infelizmente elas existem e são um fator que cumpre um papel, quando o BC tem maior grau de autonomia, existem menos chances da inflação ser alimentada, porque ele vai zelar para que ela não volte. A economia capitalista é curiosa porque expectativas fazem com que a realidade se mova, infelizmente é assim. Expectativas pessimistas podem levar a um quadro pessimista, ou expectativas positivas podem levar a um quadro melhor. Por exemplo, o governo Lula assumiu dentro de expectativas positivas. Então, a sociedade acha que a economia vai voltar a crescer em breve, que os problemas econômicos serão superados, o setor empresarial está mais predisposto a investir do que estaria se a expectativa fosse negativa. Nesse caso, o sujeito não investiria e a recessão viria mesmo.

A economia capitalista funciona assim, metade é a realidade, as condições objetivas, e a outra metade são as condições subjetivas, que contam também para definir um determinado cenário. Voltando então ao Banco Central, com algum grau de autonomia, acalma-se as expectativas.

Então essa é a grande vantagem?

Essa é a grande vantagem: alimentar a tendência a não deixar a inflação voltar; e nós sabemos que ela é um problema que atinge todo mundo; que prejudica os trabalhadores. O governo tem que colocar como uma das suas prioridades o combate à inflação; por outro lado ele também não pode cair na armadilha do governo anterior, que só olhava para isso e fazia uma política errada de combate à inflação e acabava comprometendo o crescimento. Mas é importante que ela esteja sob controle, não uma inflação de 2% para o Brasil, porque aí sim não iríamos crescer, porque para tentar atingir essa meta você teria que pôr os juros lá em cima. Não dá para falar em inflação de 2 nem de 3, mas 5 ou 6% de inflação é uma meta mais realista, digamos.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate