Economia

A proposta de independência ou autonomia do Banco central faz sentido para quem crê que os mercados se auto-regulam da melhor maneira possível e, mais que tudo, para os que acreditam que a política econômica deve ser “despolitizada”

A proposta de independência ou de autonomia dos bancos centrais tem sido, nos últimos anos, uma das favoritas dos mercados financeiros, da imprensa econômica liberal e dos economistas ortodoxos. Alguns bancos centrais, como o FED dos EUA, já têm (formalmente – a realidade é bastante distinta) bastante independência há vários anos; outros a receberam recentemente. No Brasil, esta proposta começou a ser encaminhada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e ganhou impulso ao ser incluída como um dos objetivos do governo brasileiro no texto do acordo em vigor com o FMI.

O PT e a CUT sempre se posicionaram enfaticamente contra esta proposta. O governo Lula, no entanto, tem anunciado a intenção de levar à prática alguma forma de “autonomia opera­cional”. O que se divulga é que ela incluiria mandatos fixos e longos para o presidente e os diretores do BC, além de autonomia na definição das medidas necessárias para cumprir metas de inflação definidas pelo Ministério da Fazenda. Embora esta moldura possa vir a constituir uma forma de autonomia mais branda do que a vigente em outros países, ela iria claramente na mesma direção. Seu resultado seria essencialmente o mesmo: o Banco Central seria mais autônomo com relação ao governo eleito; este teria dificuldades muito maiores para substituir sua diretoria (isto só poderia ser feito em casos muito especiais) e portanto para forçar uma alteração da atuação do organismo, se assim o desejasse.

As justificativas mais comuns da proposta são a necessidade de proteger o BC de interferências políticas indevidas (com o que se faz uma clara homenagem ao senso comum mais rasteiro) ou de dar maior estabilidade, previsibilidade e confiabilidade à sua política (este é o ângulo privilegiado pelos teóricos da ortodoxia das “expectativas racionais”). O pressuposto maior de uma discussão nesses moldes é a crença, extremamente questionável, no caráter “técnico” do BC.

Uma dúvida óbvia, e nunca respondida de forma minimamente satisfatória pelos partidários da proposta, é se a autonomia do Banco Central não seria inaceitável de um ponto de vista democrático (já que o objetivo explícito da proposta é reduzir a influência do governo eleito, e tornar a atuação do BC menos influenciada pelos resultados eleitorais). Outra objeção de monta é a questão: um Banco Central mais independente do governo não se tornaria ainda mais dependente do mercado financeiro e de instituições como o FMI? No caso brasileiro, diversos analistas chamam ainda a atenção para o fato de o BC ter mais poderes do que seus congêneres em outros países, o que torna sua possível autonomia ainda mais perigosa.

Estes argumentos críticos são muito relevantes. No entanto, privilegiaremos aqui uma abordagem mais geral: o significado histórico, teórico e, sobretudo, político-ideológico da proposta de independência ou autonomia do BC. A partir daí, procuraremos mostrar que sua eventual adoção representaria uma brutal incoerência com os objetivos pelos quais o governo Lula foi eleito.

O argumento geral deste artigo é que esta proposta faz parte de um movimento político-econômico cujo grande objetivo é derrotar, e se possível eliminar, as concepções keynesianas muito influentes até os anos 70 e restaurar as condições para fazer política econômica que vigoravam no fim do século XIX e no início do século XX, antes da Primeira Guerra. Ou pelo menos chegar perto delas, já que a história não permite uma volta atrás completa. (Este movimento antikeynesiano pelo regresso é o que costuma ser chamado de neoliberalismo.)

Os bons tempos de outrora para o liberalismo

Antes da Primeira Guerra já havia alguma ampliação dos espaços democráticos nos países capitalistas centrais e em parte dos países dependentes; alguns grandes partidos operários já tinham força eleitoral. No entanto, estes partidos continuavam basicamente exteriores ao poder de Estado. Não se pensava, em geral, que a política econômica devesse almejar “objetivos sociais”. O desemprego ou a má-distribuição de renda, por exemplo, não eram considerados de responsabilidade do Estado; eram tratados pela visão dominante como problemas privados e, no limite, individuais. Eram associados à pre­guiça ou ao banditismo. Para a defesa desta visão, a teoria econômica neoclássica, que estava se tornando hegemônica, ajudava muito.

Naturalmente, o movimento operário recusava esta visão, mas o fazia no bojo de uma rejeição completa da sociedade capitalista. No lugar de cobrar do Estado então existente sua responsabilidade social, defendia uma revolução social. Os socialistas não se imiscuíam nos debates de política econômica da época.

As equipes econômicas dos governos ficavam livres para tratar apenas dos problemas que interessavam às classes dominantes: cuidar das reservas de ouro de modo a manter a conversibilidade das moedas, defender o sistema bancário, regular as taxas de juros de acordo com estes objetivos, garantir a solvência dos Estados, praticar a disciplina fiscal.

A desconsideração de objetivos sociais por parte da política econômica era referendada pela teoria neoclássica, a ortodoxia de então. Para exemplificá-lo com um dos temas mais importantes: esta teoria afirmava que todo o desemprego existente era voluntário (isto é, os desempregados estavam nesta situação porque preferiam não trabalhar pelo salário que lhes era oferecido no mercado; ou tinham escolhido individualmente o desemprego, ou foram obrigados a isto por seus sindicatos).

Admitia-se, é certo, a possibilidade do desemprego friccional, isto é, do caso de pessoas que estavam em trânsito entre um posto de trabalho e outro, que ainda não haviam encontrado a vaga que esperava por elas, desde que aceitassem o salário devido. Mas esta era uma situação meramente transitória, e portanto pouco importante. O Estado poderia fazer alguma coisa para reduzi-la – por exemplo, contribuir para melhorar a comunicação entre empregadores e trabalhadores –, mas isto não se tratava propriamente de política econômica.

Esta visão idealizada do mercado de trabalho era parte da concepção geral liberal de que os mercados se auto-regulam da melhor maneira: a oferta cria, no global, sua própria demanda (lei de Say), e o equilíbrio atingido a partir do mercado garante a maior satisfação social possível (este é o chamado ótimo de Pareto, que supõe, entre outras coisas, que a distribuição de riqueza é dada – dizia-se que não cabia à ciência econômica questionar esta distribuição). O Estado não precisava – de fato, não devia – preocupar-se com problemas so­ciais. Assim, não havia risco de que os governos violassem os interesses dominantes. A política econômica era domínio exclusivo de banqueiros e congêneres (entre estes, já na época os especuladores tinham um lugar de destaque).

O desafio keynesiano

A descrição acima, embora bastante simplificada, é suficiente para caracterizar o clima geral da teoria e da política econômicas que prevalecia antes da Primeira Guerra. Era a belle époque do liberalismo econômico. Mas a grande depressão dos anos 30 e, principalmente, a publicação em 1936 da Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, por John Maynard Keynes, acabaram com ela.

Keynes percebeu que a teoria dominante levava a conclusões absurdas e procurou mostrar que suas bases eram falsas. Atacou, em particular, a lei de Say, a idéia da neutralidade da moeda (de que a moeda não tem influência sobre a economia real) e a visão do funcionamento do mercado de trabalho resumida acima. Fez uma reconstrução teórica de enormes implicações políticas práticas. Fundamentou a visão de que o Estado precisa intervir para corrigir o funcionamento dos mercados, e especialmente para minorar “os dois principais defeitos do mundo econômico em que vivemos”: “a sua incapacidade para garantir o pleno-emprego e a sua arbitrária e desigual distribuição da riqueza e dos rendimentos” (Keynes, Teoria Geral; Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1970, p. 351). Recomendou uma intervenção regular dos governos para sustentar a demanda agregada, com políticas fiscais e monetárias, bem como para melhorar a distribuição da renda. Defendeu especialmente um esforço permanente para manter baixas as taxas de juros; isto contribuiria tanto para ampliar o emprego quanto para reduzir a remuneração dos capitais, e portanto para reduzir as excessivas desigualdades de renda e de riqueza.

Esta mensagem se beneficiou das condições político-sociais vigentes durante a Grande Depressão e depois da Segunda Guerra, e teve um imenso impacto (embora não tenha sido inteiramente assimilada pelos meios econômicos dominantes – longe disso). Para o argumento que desenvolvemos, sua principal conseqüência foi a incorporação de objetivos sociais ao escopo da política econômica dos países capitalistas. A política econômica se politizou, portanto; passou a ser debatida por exemplo por sindicatos, deixou de ser assunto apenas de banqueiros e especuladores. É evidente que, desta forma, os interesses destes senhores poderiam ser, eventualmente, contrariados.

Seria um grande exagero dizer que as classes dominantes foram em geral prejudicadas pela política econômica de inspiração keynesiana posta em prática nos países capitalistas depois da Segunda Guerra. Elas se beneficiaram – mas não o fizeram sozinhas. Com o grande progresso tecnológico de então, nos trinta anos que se seguiram a 1945, os assalariados e as camadas populares também ganharam alguma coisa nos países capitalistas centrais e em boa parte dos dependentes.

Esta mudança nunca foi aceita pelos saudosistas da velha ordem e da velha ortodoxia. Durante anos, os (neo)­li­be­­­rais foram extremamente minoritá­rios; mas a crise inflacionária da década de 70 devolveu-lhes credibilidade e influência. Desde os anos 80 tornaram-se dominantes nos países capitalistas; a derrocada da URSS e de seu campo reforçou-os ainda mais.

O novo liberalismo

Não é possível tratar em detalhe os argumentos teóricos esgrimidos desde os anos 60 por Milton Friedman e outros liberais obstinados. Para os objetivos deste artigo, o mais importante deles é a afirmação de que a capacidade de intervenção do Estado em questões como o volume global de emprego se restringiria apenas ao curto prazo. Ou seja: o governo só poderia fazer a economia se desviar de sua trajetória de longo prazo provisoriamente, e com custos severos. Por exemplo, é possível conter o desemprego abaixo de sua taxa natural (o conceito de taxa natural de desemprego é uma contribuição teórica chave de Friedman) por algum tempo, mas o custo disto seria uma aceleração inflacionária. A tentativa de reduzir artificialmente o desemprego terminaria frustrada, e a desorganização resultante da escalada inflacionária prejudicaria a trajetória de longo prazo da economia.

Embora o argumento da ineficácia do governo para influenciar variáveis reais no longo prazo seja mais geral, ele foi aplicado com mais ênfase por Friedman e seus correligionários à política monetária, recuperando a velha idéia da neutralidade da moeda.

A partir da década de 70, sob a liderança de Robert Lucas, “nova economia clássica”, formada a partir da idéia das “expectativas racionais”, reforçou o campo liberal (“economia clássica” era como Keynes chamava a economia ortodoxa de seu tempo; Lucas e seus correligionários pretenderam explicitamente voltar a esta ortodoxia). Esta escola adotou a taxa natural de desemprego e radicalizou as concepções friedmanianas. Com base na hipótese de que os mercados se equilibram todo o tempo (o que dá à sua argumentação um caráter bastante tautológico: para provar que os mercados funcionam melhor do que os governos, supõe-se que os mercados funcionam de modo perfeito!), ela afirma que o governo só pode influenciar a economia real, mesmo no curto prazo, se surpreender os agentes econômicos. O efeito disto, no entanto, seria ainda pior do que na análise de Friedman: ao retorno da economia à sua trajetória natural somar-se-ia a questão-chave da perda de credibilidade das autoridades econômicas. Apesar disto, afirma-se que os governos tentarão fazer coisas deste tipo, uma vez que, pressionados por horizontes eleitorais de curto prazo, estarão dispostos a sacrificar o futuro para ganhar dividendos no presente.

Por razões que é impossível comentar neste espaço, as concepções de Fried­­man e Lucas tornaram-se dominantes entre os macroeconomistas ortodoxos. Sem pretender debatê-las a fundo aqui, é útil assinalar que o conceito de taxa natural de desemprego é muito problemático. Em primeiro lugar, para que fosse empírica e praticamente significativa, a taxa deveria ter certa estabilidade. Mas a “taxa de desemprego que não acelera a inflação” (versão mais moderna do conceito) tem variado de forma muito acentuada em todos os países, sem que haja em geral boas explicações para isto. Além disso, com ela voltamos à teoria implausível de que o desemprego é voluntário: na definição de Friedman, a taxa natural de desemprego é aquela em que há equilíbrio entre oferta e demanda de mão-de-obra (com os trabalhadores avaliando corretamente seus salários reais).

Problemas teóricos e empíricos à parte, a conveniência deste conceito (e da decorrência de que o melhor é deixar que o mercado regule a economia) para uma visão liberal é muito clara. Ele afirma que o governo não pode melhorar a economia real buscando acelerar o crescimento e reduzir o desemprego. Se, estendendo esta visão, aceitarmos também que em geral é ruim o governo tentar mudar a distribuição de renda e de riqueza existentes, estaremos praticamente de volta à belle époque do liberalismo econômico. De novo, viva o mercado!

A proposta de autonomia do BC

A conclusão destes raciocínios é que é preciso reduzir as possibilidades de fazer política econômica do governo. Friedman propôs “amarrar as mãos” do Banco Central, estabelecendo regras rígidas para a sua atuação; isto o impediria de tentar influenciar a economia real. Defendeu uma regra aparentemente simples: uma expansão regular e pré-definida do estoque de moeda da economia. Alguns países tentaram levar esta proposição à prática, mas enfrentaram problemas tão grandes que já em meados dos anos 80 muito poucos ainda a defendiam a sério.

Verificada a inviabilidade de alguma regra à la Friedman, o que se poderia fazer para impedir o governo de tentar, por exemplo, reduzir o desemprego?

A proposta que ganhou o favor dos teóricos liberais desde o fim dos anos 80 é a da independência (ou autonomia) dos bancos centrais. A idéia agora não é mais amarrar os banqueiros centrais, mas sim libertá-los da influência negativa dos governos. Conquistando sua independência, eles estariam livres para buscar seu objetivo supostamente “natural”, a estabilidade de preços. A versão mais recente desta proposta a reforça com a definição de metas de inflação, que balizariam a atuação dos BCs. Seu significado, portanto, é o de reduzir a capacidade do governo de fazer política macroeconômica (retirando o BC de sua área de influência direta), e assim o de reforçar a livre atuação dos mercados.

Esta proposta faz sentido para quem crê que os mercados se auto-regulam da melhor maneira possível e que os governos não devem tentar influenciar as variáveis econômicas reais (a não ser criando um bom ambiente para os capitais privados); para quem crê que não cabe ao governo tentar estimular o crescimento econômico ou contribuir para melhorar a distribuição de renda por meio da política monetária (por exemplo, mantendo taxas de juros baixas, como defendia Keynes); para quem crê que o desemprego é voluntário. Mais que tudo, faz sentido para os que acreditam que a política econômica deve ser “despolitizada”, que o povo não deve se imiscuir nela, que ela deve ficar a cargo de banqueiros e congêneres.

Não faz sentido, portanto, para um governo do PT, que prometeu nas eleições uma política econômica mais popular e, em particular, obstinação na criação de empregos.

João Machado é economista, professor na PUC-SP