Cultura

Nos últimos anos a produção cinematográfica da Argentina tem se imposto pela qualidade e pelas propostas arrojadas

Nos últimos anos, o cinema argentino vem se impondo de tal maneira que nem mesmo as graves e sucessivas crises que abalam o país parecem ter força suficiente para comprometer a quantidade de produções ou o arrojo das propostas. É um conjunto de filmes heterogêneos que, somadas as conquistas, alcançam repercussão tanto entre o público argentino quanto entre a crítica européia, marcam terreno no mercado internacional ganhando prêmio em festivais de prestígio e disputando na arena mercantil do Oscar.

Não deixa de ser irônico – e muito elucidativo – que, enquanto o país quebra por levar à risca o modelo neoliberal das privatizações, a produção cinematográfica se mantenha e se fortaleça graças ao apoio estatal do Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA). Desde 1994, o INCAA vem desenvolvendo uma política de fomento que levanta recursos por meio de taxas sobre a venda de ingressos no cinema, sobre o aluguel e venda nas locadoras e sobre a arrecadação das emissoras de televisão. Não é pouco – que o digam os realizadores brasileiros, que reivindicam, até agora em vão, estratégias semelhantes.

É impossível escapar à comparação. Tão tradicional quanto a rivalidade no futebol é encontrar, na história do cinema brasileiro, comparações entre a produção nacional e a argentina. Nos anos 1940, quando o cinema argentino se exibia em pleno apogeu do sistema de estúdio, exportando comédias e melodramas, a imprensa especializada brasileira se perguntava por que não conseguíamos seguir o exemplo do vizinho e concretizar o sempre acalentado sonho de uma indústria cinematográfica nacional.

No começo da década de 1960, o projeto é distinto. Sai a indústria e toma a dianteira o cinema de autor. Nem por isso a produção argentina – o “novo cinema argentinoo” da época, que viria a formar a “Geração dos 600” – deixa de ser termo de comparação. O Cinema Novo nem sequer havia sido batizado quando, em 1961, os jovens diretores Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cesar Saraceni e Gustavo Dahl participaram do Festival de Santa Margherita, na Itália, e se surpreenderam ao tomar contato com os novos realizadores argentinos e seus filmes, que iriam levar quase todos os prêmios do festival – Saraceni ganhou prêmio de melhor curta, com Arraial do Cabo, mas ainda assim dividido com o argentino Bazan. Depois de assistir aos filmes e participar das discussões, Dahl escreve para O Estado de S. Paulo (21.out.1961): “Os argentinos têm um cinema digno [...] eles possuíam com seus problemas uma intimidade muito maior que nós com os nossos [...] Sua grande preocupação não eram as co-produções e o lançamento no mercado mun­dial. Era a realidade do próprio país, sobre a qual não se faziam ilusões, e o processo de integração do cinema no complexo sociocultural desta realidade”. Joaquim Pedro, por sua vez, ponderava em carta a Glauber Rocha: “Os argentinos são ótimos, mas tematicamente formaram um caminho menos bom que o nosso”Cf. Rocha, Glauber. Cartas ao Mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.155..

Agora, quando o cinema argentino volta a surpreender, a comparação continua inevitável. O crítico e escritor Jean-Claude Bernardet publicou artigo em que já no título resume suas impressões: “Os argentinos dão um banho nos brasileiros” (Revista de Cinema, nº 34, fev. 2003). A propósito de Esperando o Messias (Daniel Burman, 2000), e citando outros filmes como Nove Rainhas (Fabián Bielinsky, 2000) e O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 2001), comenta a vivacidade e inteligência da produção média argentina, em contraposição a certos filmes brasileiros (Abril Despedaçado, Através da Janela), belos e mortos em suas elaborações formais e narrativas enrijecidas.

Entre tantos méritos, a recente produção argentina alcançou mais este: ter conquistado a crítica e o público brasileiros. Mas ainda é pouco. Onde está o tão celebrado “novo cinema argentino”? Mal aportou no circuito comercial brasileiro. Apenas em festivais ou mostras é que foram exibidos alguns dos principais títulos dessa nova geração de realizadores que vem revitalizando o cinema argentino. É uma geração que já tem sua história e seus marcos históricos. Boa parte dos diretores se formou nas escolas de cinema e começou no curta-metragem.

E foram os curtas que anunciaram a “nova onda”, com o lançamento em 1995 de Historias Breves, reunindo nove filmes premiados pelo INCAA. Dois anos depois, a expectativa se confirmava com Pizza, Birra, Faso, de Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, um divisor de águas no cinema argentino, que abriu terreno para a produção independente, marcada por um olhar comprometido tanto com a realidade do país quanto com as questões de linguagem.

Caetano e Stagnaro estavam entre os curta-metragistas de Historias Breves, assim como Pablo Trapero e Lucrecia Martel, os nomes mais reconhecidos da nova geração. Trapero, que estreou com Mundo Grúa (1999), percorreu festivais e agradou à crítica, já lançou seu segundo filme, El Bonaerense (2002). Enquanto isso, aguarda-se o próximo de Lucrecia Martel, diretora de La Ciénaga (2001), que ganhou prêmio de melhor filme de estréia no Festival de Berlim e já se firmou como a obra de maturidade do novo cinema argentino.

Com exceção de Daniel Burman (também ele revelado em Historias Breves), de Esperando o Messias, o circuito comercial brasi­leiro tem ignorado a produção independente dos novos realizadores. Os filmes argentinos estreados aqui são em geral as produções comerciais, que se alinham a um projeto de cinema mais convencional. No entanto, mesmo esses trazem olhares vigorosos sobre a realidade argentina, conjugando tramas particulares e questões públicas, procedimentos do cinema de gênero e desenvoltura no trato com as questões do momento. É o caso de Nove Rainhas, impecável na sua construção de thriller e implacável no diagnóstico de um corpus social movediço, que se define pela trapaça, pelos jogos de aparência. E, nesse universo, toda a esperteza das ruas não é páreo diante da grande trapaça institucionalizada, que encontra sua síntese na “participação espe­cial” do sistema bancário na trama.

A realidade bate à porta também do melodrama. O Filho da Noiva (que disputou o Oscar de filme estrangeiro) está aí de prova, com seu cinema de lágrimas que se alimenta de falências econômicas e reinvestimentos afetivos. Vale observar como alguns filmes atuais reequacionam o que talvez seja a mais funda tradição do cinema argentino, o melodrama. Os tempos são outros, mas a atração que o gênero exerce não se mostra nem um pouco abalada. É preciso apenas alguns ajustes, um ligeiro deslocamento de perspectiva. E o deslocamento mais eficiente, mais estrutural, não é tanto a incorporação do humor ou de acontecimentos contemporâneos.

E, sim, a mudança de foco que deixa de privilegiar a figura feminina – a mulher sofredora ou demoníaca dos antigos melodramas – para se instalar no território da família. É assim em O Filho da Noiva e também em Kamchatka (Marcelo Piñeyro, 2002), ambientado no período da ditadura militar. Os valores familiares ordenam e conduzem a narrativa, garantem a sobrevivência e atualização do melodrama. Mais que isso, parecem surgir como a ordenação possível, indispensável, para garantir a sobrevivência nos tempos atuais.

Como contraponto à idealização dos valores familiares, Lucrecia Martel expõe em La Ciénaga o universo da classe média à semelhança de um pântano, onde todos os movimentos para escapar têm o efeito oposto, o de fazer afundar cada vez mais. A diretora trabalha as fissuras da unidade familiar e também da narrativa, por meio de elipses e estranhamentos injetados no código do “bem narrar”. É cinema moderno, e nesse sentido remete a uma outra tradição do cinema argentino, o da “Geração dos 600”, afinada com os cinemas novos da época.

Retomando tradições e investindo em olhares revigorantes, o cinema argentino escapa da maldição do pântano. Quanto mais se movimenta e produz, mais consolida o caminho por onde passa.

Luciana Corrêa de Araújo é professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Multimeios, da Unicamp