Política

Um projeto de país se constrói governando. Um partido de oposição quando chega ao poder pode, na melhor das hipóteses, fazer um bom diagnóstico.

Um projeto de país é o esforço articulado pelo Estado em melhorar sua posição relativa na hierarquia mundial, estruturada em torno dos eixos poder e dinheiro. O Estado articula esse esforço, numa combinação muito variável de protagonista e mediador, por meio da mobilização orquestrada dos chamados sistemas estatais, quais sejam: 1) o sistema de crédito, que inclui os subsistemas monetário (fiduciário), bancário, da dívida pública, acionário e o previdenciário, quando regido pelo regime de capitalização; 2) o sistema de inovação tecnológica, que inclui as agências estatais de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico, particularmente na área militar e em outras áreas estratégicas, os órgãos de fomento à atividade científica, os departamentos de pesquisa e desenvolvimento das empresas, as universidades públicas e privadas, o regime de patentes etc.; 3 ) o sistema orçamentário, que, de um lado, estabelece regras sobre o volume mínimo e o modo de utilização de recursos públicos em áreas consideradas prioritárias como saúde, educação, segurança, infra-estrutura e assistência social, o que inclui o sistema previdenciário público, quando regido pelo regime de repartição etc., e que formam importantes subsistemas, como o subsistema de saúde, o de ensino, o de segurança, o de infra-estrutura, o de seguridade social etc., e, de outro lado, estabelece regras sobre a constituição do fundo público, as competências dos entes da federação, a matriz tributária de estímulos e desestímulos cruzados etc.; 4) o sistema político, que estabelece regras de acesso à soberania e compreende a organização de partidos e associações da sociedade civil, a liberdade e o acesso à informação, inclusive o sistema de concessões de rádios e TVs etc.; 5) o sistema judiciário, que estabelece regras de acesso à Justiça, o que inclui as regras de acesso à propriedade fundiária, rural e urbana, e intelectual, o combate à impunidade dos de cima e proteção aos direitos dos de baixo, o acesso ao Poder Judiciário e seu alcance em normatizar a relação entre privados quanto a conflitos distributivos etc.; 6) o sistema de segurança social, que estabelece regras de acesso à cidadania, como acesso aos bens primários, proteção ao trabalho, promoção do negro, defesa dos direitos da mulher, da criança e do adolescente, dos deficientes etc.; 7) outros. Todos esses sistemas estão necessariamente inter-relacionados. Contudo, dada a relativa independência de uns para com outros, eles funcionam como vetores que podem ou não apontar para a mesma direção. Quando apontam para a mesma direção, pode-se dizer que um projeto de país está em curso.

Como se define o caráter de um projeto de país?

Um projeto de país deve ser enfocado em três dimensões: econômica, social e política. Ele pode ser progressivo em uma dessas dimensões e regressivo nas demais. Desenvolvimentista, autoritário e anti-social, por exemplo. Autoritário, igualitário e economicamente despretensioso. Politicamente “inclusivo” e economicamente ambi­cioso, mas socialmente retrógrado. A variedade é grande. Rigorosamente, o dia­g­nóstico de época da história de um país, ou mesmo de um governo, exige que cada um daqueles sistemas nacionais seja analisado nas três dimensões mencionadas para que um quadro preciso de seu significado possa ser desenhado. Dificuldade maior é a consideração sobre o que poderia ser chamado de “a questão externa”. Como já sublinhado, um projeto de país é o esforço em galgar posições na hierarquia mundial, que se estrutura em torno de poder e dinheiro. Pois bem, o poder dos demais países e o chamado “capital circulante” (aqui se está falando de Weber, e não de Marx) funcionam como balizas que circunscrevem as possibilidades da ação articuladora de determinado Estado. Cabe observar, contudo, que a análise desse constrangimento, que difere de país para país, é, ela mesma, parte do projeto. A autocontenção, pela assimilação de uma visão de mundo que é parte do projeto de outro país, tem sido a marca de muitos governos. A auto-subordinação, de outros. Na história das nações não tem faltado pretexto para subserviência. Nem para aventura, deve-se reconhecer.

O governo FHC tinha um projeto de país?

Sim. Todos os sistemas estatais, com poucas exceções, foram orientados na mesma direção. Enganam-se aqueles que pensam que a adoção apressada, entre nós, de muitos dos termos do chamado Consenso de Washington tenha sido mera reação pavloviana de superar nosso “atraso” em relação ao resto da América Latina, uma espécie sui generis de catch-up em querer ser o primeiro aluno de uma classe de idiotas. Lembremo-nos, em primeiro lugar, de que a idéia de que o Brasil carecia de um choque de capitalismo é tucana, datada de 1989, anterior ao documento formulado por Williamson; daí o impulso de participar do governo Collor. O mais importante, contudo, é reconhecer que por trás desse movimento havia um cálculo: o governo FHC acreditava piamente que aquela agenda poderia não servir a ninguém, mas, dadas as especificidades locais (tamanho do mercado, infra-estrutura, matriz produtiva, quadro institucional, riquezas naturais, mão-de-obra barata etc.), certamente serviria ao Brasil. Para o tucanato, em geral, e FHC, em particular, aquele conjunto de especificidades fazia o Brasil distanciar-se, em termos de vantagens competitivas, dos demais países latino-americanos e dos países do Leste europeu, sendo que uma dessas especificidades, o quadro institucional, diferenciava o Brasil inclusive de Rússia e China, países continentais como o nosso, nos quais a propriedade privada e o contrato, contudo, não gozavam de prestígio e tradição. Adicione-se a todas essas vantagens doses maciças de desregulação e privatização, e estaria pronto o ambiente do grande salto para a frente. Não se tratava, como se vê, de um novo renascimento, mas do nosso renascimento. Nem de neoliberalismo dogmático, mas de neoliberalismo “by virtue of the circumstances”. Nesse contexto, explica-se facilmente a total insensibilidade frente à polêmica, vista como mesquinha, em relação à sobrevalorização cambial. Imaginar que uns poucos meses de prudência no manejo do câmbio, exigida ademais pela então recente e provisória vitória contra a hiperinflação, pudessem aumentar demasiadamente nossa vulnerabilidade externa era uma hipótese que conflitava com as premissas do cálculo. Afora o achado Franco-“marxista” dos ganhos diferenciais de produtividade. Tudo somado, sobrevalorização cambial, estabilidade monetária, desregulação financeira, privatização, absorção de poupança externa, abertura econômica, ganhos de produtividade, e assim por diante, transformaria o Brasil numa Espanha em dezesseis anos, com taxas de crescimento de até 9% ao ano.

O governo Lula tem um projeto de país?

Não, nem poderia. Um projeto de país se constrói no governo, durante o governo, governando. Um partido político de oposição que chega ao poder pode, na melhor das hipóteses, fazer um bom diagnóstico da situação encontrada. Pode até ter um plano, com premissas genéricas, como a idéia petista de promover o desenvolvimento econômico, partindo da distribuição de renda, ou de radicalizar a democracia, republicanizando o Estado. Contudo, se só se mede a força dos constrangimentos externos – o poder dos demais países e do capital circulante – no exercício do poder, o mesmo se aplica à questão dos constrangimentos sociais, que são internos ao país, mas externos ao Estado, determinados pela correlação de forças entre classes e grupos, e à questão dos constrangimentos internos ao próprio Estado, em cujas estruturas também estão sedimentadas e cristalizadas relações de classe já parcialmente superadas (refiro-me ao malufismo na máquina pública paulistana, ao pefelismo na máquina pública federal etc.). Uma vez no poder, a percepção da força e do alcance desses constrangimentos so­ciais e internos exige que se estabeleça aquele grau mínimo de tensão que permita mensurá-los, sem o que seria impossível estabelecer aquele grau de tensão suficiente para superá-los. Num extremo, na revolução, há total coincidência entre esses dois momentos. No outro extremo, na conservação, medir forças já é ofensa que justifica a deslegitimação, a conspiração e, no limite, o golpe. Quanto menos amadurecido o país, menos distantes estão esses extremos um do outro, estreitando-se o caminho da transformação democrática.

Quais as chances de o governo Lula formular um projeto de país?

O que vai definir o destino do país no próximo período é a qualidade da política. Todos os que compõem o “núcleo duro” do governo Lula sabem que o projeto de país do governo FHC naufragou. Comandam um Estado que recorreu três vezes ao FMI nos últimos cinco anos. Quanto mais simples o cidadão, quem sabe se por desespero, menos ele acredita que esse governo assimilou a ideologia do governo anterior. Um governo que dobrou, é bom lembrar, a taxa de desemprego e a relação dívida–PIB, o que, em tempos de keynesianismo clássico, dava cadeia por crime de lesa-pátria. A única razão (razão orientada pelo interesse, e não razão de Estado) que poderia fazer o atual governo definir-se pelo modelo do governo anterior seria, portanto, menos a crença naquele fracassado projeto de país do que a crença num bem-sucedido projeto de poder: um projeto de dominação voltado exclusivamente para dentro, sem pretensão de modificar as relações do Estado com seu entorno, nem com seus constituintes. O governo Lula poderia sentir-se compelido a se transformar, pelo que há de perverso na reprodução de nossa peculiar democracia, numa espécie de governo FHC “competente quanto aos meios” (já que “competente quanto aos fins” parece ser, a esta altura, uma impossibilidade histórica), forçado por circunstâncias que ele não ousa desafiar politicamente. Um governo que simplesmente entrega (deliver) as reformas que o governo FHC foi incapaz de aprovar. Como nunca foram muito baixos os índices de popularidade do ex-presidente, estariam dadas as condições do que é uma obsessão de quem detém o poder no Brasil, a estabilidade política, o que, somado ao caráter patrimonial do Estado brasileiro, resulta em “hegemonia”. Com mais apoio popular, acrescente-se, e quem sabe, internacional. Contudo, essa aparente reprodução amplia­da do governo FHC já não teria o mesmo significado social. A história fatalmente repetiria como farsa o que foi um equívoco trágico. É justamente essa a crítica à esquerda que se faz ao governo Lula.

Só há uma forma de responder a essa crítica. E essa resposta é prática. Caberia ao governo Lula mapear as muitas propostas e iniciativas que vão surgindo nos ministérios, analisar sua consistência interna e sua compatibilidade com as premissas genéricas do social-desenvolvimentismo petista e apresentar ao país uma composição que crie as condições objetivas e subjetivas para que as energias do Estado e da sociedade confluam no sentido da (trans)formação nacional. Isso só é possível a partir de um procedimento matricial que permita, num primeiro momento, a visualização dos sistemas estatais para, em seguida, orientá-los na mesma direção. Se essa direção for a da emancipação política, econômica e social, ou seja, se o projeto de país que se desenha for progressivo nas três dimensões mencionadas, pode-se engendrar, no limite, um autêntico projeto de Nação, em que o foco não seja propriamente a jurisdição, o território, mas o povo; em que não é o Estado que se emancipa, mas a comunidade política.

Fernando Haddad é professor de ciência política na Universidade de São Paulo e assessor especial do ministro do Planejamento