Economia

Pela primeira vez parece se esboçar um pacto federativo que se confirmará na aprovação, no Congresso, de mudanças que buscam a correção de distorções tributárias acumuladas nos últimos quinze anos

No Brasil, o termo “reforma tributária” sempre suscitou a fantasia de que é possível modernizar o sistema, reduzir o número de impostos, equilibrar a federação, diminuir a carga tributária e promover o ajuste fiscal, tudo isso de forma independente do maior ou menor dinamismo da economia brasileira

A análise das tentativas de reforma realizadas na última década desfaz rapidamente essa ilusão. Ao dar prioridade ao aumento da carga tributária em nome do ajuste fiscal, deixaram-se de lado a coerência do sistema, a boa técnica tributária, o equilíbrio federativo e a busca de progressividade na tributação.

A elevação de 8% do PIB na carga tributária nos governos de FHC deveu-se em grande medida à am­pliação das contribuições sobre o faturamento1, que, cobradas de forma cumulativa ao longo da cadeia produtiva, oneram pesadamente os consumidores finais e as exportações, além de prejudicar a produção interna em relação aos produtos importados, não submetidos, nos países de origem, à tributação em cascata.

Na segunda metade dos anos 1990, a ampliação da receita de contribuições sociais não partilhadas com os demais níveis de governo permitiu à União neutralizar em grande parte a descentralização tributária ordenada pela Constituição de 1988 e, ao mesmo tempo, exercer forte influência na substituição de projetos de reforma estrutural esboçados no Congresso Nacional, por remendos tributários de circunstância.

Chegamos a 2003 com uma carga tributária total de 36%, comparável aos países do Primeiro Mundo, sem apresentar entretanto a mesma contrapartida de benefícios e serviços financiados pela receita pública. A impossibilidade de definição coesa da federação sobre níveis e distribuição de receitas e encargos de governo dificulta a prática de políticas públicas que reflitam as prioridades dos cidadãos, contrapartida direta ou indireta do pagamento de impostos.

Essa situação desmobiliza a cidadania quanto ao cumprimento de suas obrigações tributárias e esgarça a tênue solidariedade social, já enfraquecida pela desigualdade e fragmentação do quadro econômico e social do país.

Também não ajuda o equilíbrio federativo a atuação dos governos estaduais na última década. O fortalecimento de sua base tributária resultou em enorme distorção do principal imposto estadual, o ICMS, que apresenta grande variação e diversificação de alíquotas, sendo também instrumento da guerra fiscal travada pelos estados na disputa de novos investimentos.

A complexidade e a heterogeneidade do sistema tributário dificultam sua harmonização, condição necessária à ampliação das transações entre blocos de comércio. O ICMS, por exemplo, responsável por aproximadamente um quarto da arrecadação nacional, apresenta 27 leis e 44 alíquotas, espelhando a complexidade do sistema. Mais ainda, a autonomia dos estados na cobrança do ICMS acabou gerando distorção alocativa, dada a predatória guerra fiscal que as unidades federadas travam em busca de investimentos. Da mesma forma, municípios disputam entre si a alocação de empresas de prestação de serviços em suas jurisdições.

Nos governos locais, a dependência municipal de transferências constitucionais dos Fundos de Participação2, típica dos pequenos municípios, se combina com o esforço fiscal e a dependência de sua própria arrecadação, nas cidades de porte médio e grande. Por conta dos critérios populacionais dessas transferências, que privilegiam as cidades de pequeno porte, o número de municípios brasileiros elevou-se de 3.300 em 1967 para cerca de 5.600 em 2002, sobretudo na faixa até 10 mil habitantes, gerando fragmentação territorial e dependência financeira.

A diversidade de situações observadas explica a dificuldade de estabelecer regras de partilha com capacidade de resposta às necessidades municipais e à descentralização de políticas seto­riais mais complexas, como a saúde e o saneamento básico. Para tanto contribui também a questão dos municípios das capitais e das regiões metropolitanas, onde vivem mais de 35% da população brasileira, com coeficientes muito menores de transferências per capita e problemas urbanos de extrema complexidade.

A polaridade entre os interesses assinalados virtualmente paralisou as decisões do Legislativo sobre matéria tributária, dando margem a incriminações recíprocas entre instâncias da federação, cada uma responsabilizando as demais pela incapacidade comum, e a reclamos do empresariado sobre o excesso de impostos. Isso sem levar em conta o principal: a incidência tributária sobre a renda disponível da população, a quem tem cabido pagar a conta da perversa evolução do sistema tributário nacional.

Salta aos olhos a injustiça da imposição tributária sobre os mais pobres. Tal é o peso dos impostos indiretos, sejam eles sobre valor adicionado ou em cascata, que os que ganham até dois salários mínimos, embora isentos do imposto de renda, pagam 26% de sua renda em impostos embutidos nos bens e serviços consumidos, além de 2% em impostos diretos. Na outra ponta da escala, os que ganham mais de trinta salários mínimos pagam apenas 8% de sua renda em impostos indiretos, aos quais se somam 10% de impostos diretos.

O sistema tributário brasileiro vigente é, portanto, marcado pela cumulatividade, regressividade e pelo desrespeito à federação. A maior parte das receitas é oriunda de impostos indiretos, sem alíquotas seletivas associadas à essencialidade dos bens. A participação das contribuições sociais, na verdade impostos disfarçados, é excessiva, além de divergente do padrão internacional baseado em contribuição social sobre a folha de salários.

Ao mesmo tempo, verifica-se a estreiteza da base de arrecadação direta, corroída por renúncia de arrecadação regressiva ou ineficiente. A tributação de bens de capital desestimula o investimento, enquanto distorções alocativas e o estímulo à evasão fiscal tornam nosso sistema tributário antagônico ao desenvolvimento.

A receita pública, cada vez mais centralizada na União, é distribuída por critérios parcialmente inadequados aos governos municipais e não considera devidamente a necessidade de autonomia e de recomposição da capacidade de gasto dos governos estaduais, a despeito de sua enorme importância na regulação de políticas públicas com aspectos territoriais relevantes.

Os temas da reforma

A proposta de reforma tributária do governo Lula está obrigada a enfrentar tais distorções, com reduzido grau de liberdade na definição de sua agenda própria. Nesse marco de referência, a Proposta de Emenda Constitucional da Reforma Tributária (PEC 41) anuncia, entretanto, um processo amplo de mudança do quadro tributário, do qual a dimensão constitucional é apenas um ponto de partida político-estratégico.

Pela primeira vez em muitos anos parece esboçar-se um pacto federativo que se confirmará na aprovação das mudanças propostas ao Congresso Nacional. Tais mudanças buscam a correção de distorções tributárias acumuladas nos últimos quinze anos na perspectiva da justiça social e da harmonização federativa, centrando-se em poucos pontos de maior consenso para romper as resistências à reforma estrutural.

-A reforma do ICMS: nacionalização sem federalização.

O ponto central da reforma é sem dúvida a criação da legislação nacional do ICMS, em substituição às atuais 27 legislações estaduais, aliada à simplificação de sua estrutura de alíquotas para apenas cinco. Nessa perspectiva, o Brasil se aproxima do paradigma europeu de tributação indireta, encaminhando-se para repetir o processo verificado na União Européia, onde os impostos específicos sobre bens foram progressivamente substi­tuídos por impostos gerais sobre o valor adicionado, culminando, nos anos 1990, com a harmonização dos princípios e práticas tributários na área dos impostos sobre bens e serviços.

Se, a exemplo da União Européia, pudermos aliar a introdução da legislação nacional do imposto à seletividade das alíquotas, muito se avançará no aumento da progres­sividade da tributação indireta. Mesmo sem consolidar em um único imposto a tributação sobre o valor adicionado,3, a proposta de reforma implica acordo com os estados para cessão de parte de sua autonomia4, visando dar maior racionalidade à legislação e gestão do ICMS.

Os pontos problemáticos e as soluções parciais implícitas no projeto da reforma não tiram a importância da rota de mudanças estabelecida. Mas é bom lembrar que a decisão de cobrar o ICMS na origem, que consta da emenda constitucional, cria problemas para a contabilização e o controle dos débitos e créditos nas operações interestaduais do imposto, ao mesmo tempo que requer a implantação de sistema de informação integrado entre estados. Isso implica graves problemas operacionais e de recursos humanos, sobre os quais há que se dar resposta concomitante à implementação da nova sistemática.

Também é verdade que a grande alteração pretendida em projetos anteriores de reforma, que implica substituir a tributação do ICMS segundo o princípio da origem pela tributação segundo o princípio do destino5, foi deixada à lei complementar e à competência constitucional do Senado. A natureza conflitiva do tema, que opõe os interesses dos estados exportadores e importadores líquidos quanto às perdas e ganhos da mudança, justifica, na reforma, o reconhecimento da necessidade desse espaço de negociação para a decantação de soluções e compensações, como o fundo de compensação aos estados.

-A mitigação da cumulatividade das contribuições sociais.

A maioria das distorções do sistema tributário deve-se ao grande número de contribuições sociais e à cumulatividade das que incidem sobre o faturamento. A análise mais elementar aponta para a semelhança das bases de incidência da Cofins e do PIS/Pasep – faturamento e receita operacional bruta –, que implica superposição de suas alíquotas. Outro aspecto negativo dessas contribuições sociais é o fato de incidirem sobre todas as fases do processo produtivo, fazendo com que o “efeito cascata” tenha importantes impactos indiretos sobre o preço do bem final (e o bolso do contribuinte) e sobre a competitividade dos produtos brasileiros submetidos a esse regime tributário.

Ainda no governo de transição6, foi iniciada a mitigação da cumulatividade das contribuições sociais sobre faturamento e lucro, por solução infraconstitucional de reforma do PIS/Pasep, a ser estendida à Cofins após um intervalo temporal, para teste da nova sistemática adotada,7.

Os resultados positivos da mudança sobre a receita do PIS viabilizam a extensão da sistemática à Cofins, até porque a emenda da reforma tributária consagra o princípio da não-cumulatividade nas contribuições. Note-se, entretanto, que a solução encaminhada não leva ao limite a simplificação das contribuições sociais, mantendo a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e a CPMF.

Temos esperanças de que, como marca distintiva de sua gestão, o atual governo possa efetivamente dispor das contribuições sociais para as finalidades que justificaram sua criação. Com isso superaria o cacoete que, desde os anos 1970, associou, no discurso, a cria­ção do PIS/Pasep, do Finsocial (hoje Cofins) e da CPMF a gastos essenciais na área social, facilitando sua aprovação e posterior sustentação no Congresso Nacional, a despeito dos sucessivos desvios de finalidade observados.

A respeito, a extensão da desvinculação de receitas pela União (DRU),8, até 2007, também faz parte da Proposta de Emenda Constitucional da Reforma Tributária, ora em tramitação no Congresso Nacional. Se já existem sérias objeções a esse desvio de receita vinculada a gastos sociais na esfera federal, que dizer da tentativa em curso de desvinculação de receita estadual? É preciso lembrar que os governos locais têm vinculações constitucionais a cumprir no campo da saúde e da educação, e que a desvinculação de receita romperia com os princípios fundamentais da descentralização dessas políticas sociais,9.

-A desoneração da folha de salários e a formalização do emprego.
A proposta de reforma trata da desoneração parcial ou total da folha de salários do empregador, e sua substituição pelo valor adicionado ou pela receita bruta, para estimular a formalização do emprego em setores intensivos em mão-de-obra. Nessa perspectiva, a flexibilização dos contratos de trabalho se associa ao custo tributário da mão-de-obra; se este for reduzido, haverá automaticamente a reversão do quadro. Na verdade, o custo do trabalho no Brasil é muito baixo10, comparativamente ao padrão internacional, o que dilui o peso dos encargos sobre a folha, incidentes sobre a massa salarial, pondo em dúvida o impacto da desoneração da folha sobre o custo das empresas e a formalização do emprego, sem contar com o caráter permanente de algumas mudanças, de natureza tecnológica, que geraram a terceirização.

Acentuar esse processo de forma irrestrita significa diluir a solidariedade entre empregado e empregador em torno da mesma base contributiva, quando é desta solidariedade que depende o compromisso mútuo com o sistema público de previdência e com o programa de proteção social por ele financiado.

A desoneração teria sentido, se associada à revisão do regime tributário das micro e pequenas empresas, exatamente por seu potencial de geração de emprego, relativamente aos demais setores da economia. Se limitada a esse segmento e articulada à contrapartida de geração de emprego, poderia efetivamente influir de forma positiva na formalização da mão-de-obra.

-A construção da progressividade. Embora não tenham sido destacados pela mídia, o projeto de reforma e as ações recentes do governo em matéria tributária dão consistência ao tratamento de questões associadas à justiça na tributação.

Desde logo, há que se recordar a seletividade proposta para o ICMS, centrada nos bens essenciais, bem como a mitigação da cumulatividade da tributação indireta que incide pesadamente sobre os mais pobres.

Na área do imposto de renda, a experiência internacional mostra que a progressividade depende muito mais da eqüidade horizontal – todas as formas de renda são submetidas ao mesmo tratamento tributário, com redução significativa da renúncia fiscal – do que da eqüidade vertical, associada à variação de alíquotas nominais. A carga tributária real depende das alíquotas efetivas, e não das alíquotas nominais, muito apregoadas no debate e pouco eficazes na solução desejada.

Nesse sentido, a progressividade da tributação direta no Brasil é bastante limitada, dada a estreiteza da base do imposto de renda das pessoas físicas. A recomendação de criação de novas alíquotas sem ampliação da abrangência da base termina por onerar mais pesadamente os salários médios e altos do setor público e os salários médios do setor privado, que não se beneficiam de fronteiras difusas entre salários diretos e indiretos, rendimentos do trabalho e do capital, ou entre pessoas físicas e jurídicas.

Em medida recente de natureza infraconstitucional, o governo promoveu a maior abrangência horizontal do imposto de renda, coibindo a elisão fiscal por meio da ampliação da tributação direta de pessoas físicas travestidas de pessoas jurídicas, buscando a isonomia entre esses contribuintes, os trabalhadores autônomos com livro-caixa e os rendimentos do trabalho assalariado. Além disso, ampliou a tributação pela Cofins dos resultados dos bancos, reforçada pela intenção constitucional de fixar alíquotas mínimas para a tributação do setor, com o mesmo sentido de eqüidade horizontal.

A opção pela progressividade não se limita às mudanças infraconsti­tu­cionais referidas, uma vez que a reforma cria, no plano constitucional, as pre­condições legais de geração de maior progressividade nos impostos sobre propriedade (IPTU, ITR e IGF) e de sua transmissão (heranças e doações). Com isso, além de reconhecer que as diferenças de renda se forjam nas diferenças patrimoniais, dá-se um importante passo no sentido de destacar o potencial de arrecadação da tributação sobre o patrimônio.

O projeto de reforma tributária tem a modéstia de alongar no tempo o amadurecimento de alternativas para a formação de um novo sistema tributário nacional, em que interesses contraditórios, territórios fragmentados e situações sociais e econômicas heterogê­neas possam encontrar seus caminhos democráticos de convergência. Nesse sentido, a emenda constitucional é um bom começo.

Sulamis Dain é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), especialista em finanças públicas ([email protected])