Economia

Entrevista com o presidente do Ipea, Glauco Arbix

Glauco Arbix, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, diz-se otimista em relação à condução da política econômica pelo governo, ainda que “as condições e as escolhas sejam dificílimas”

Passados os primeiros meses de governo, qual é o balanço que você faz da política econômica?
Considero extremamente positivo o controle da economia brasileira realizado pela equipe econômica. O primeiro aspecto a realçar é que muitas previsões feitas ao longo da campanha eleitoral caíram por terra, a começar pela idéia de que o PT seria incompetente para governar a economia com estabilidade. O país hoje tem uma economia sob controle, houve uma redução grande do risco Brasil e o processo de desvalorização cambial foi sustado. Isso nos dá fôlego para navegar nas águas da transição, preparando o país para um novo ciclo de crescimento. Em outras palavras, o Brasil não se transformou numa Argentina ou Venezuela, como prenunciaram adversários políticos e mesmo gente muito próxima do PT. Ou seja, quem pensou que o partido estava blefando, quando lançou suas propostas para a economia durante o processo eleitoral, errou redondamente. Noto que a possibilidade de ser governo levou o PT a formular uma política que se mantém hoje em dia. A questão-chave é produzir políticas que possam ser implementadas, assim como criar as condições para tornar efetivas muitas de nossas idéias que, sem uma preparação político-institucional, tornam-se apenas vulgarização doutrinária. Recebemos o país em uma situação pré-falimentar. Para além dos discursos de ocasião, de tipo jornalístico ou da fácil oposição, o desafio é formular políticas que dêem conta de um processo de trânsito. O PT alertou a todos que não haveria milagre. Pois bem, não há milagres. Isto é, ou o partido encara seriamente que precisa envolver o conjunto da sociedade para tirar o país da lama, ou continua­remos pagando um preço enorme para mantê-lo tal como está. Só que agora uma parte significativa dessa conta política, que sofreu um pequeno – porém relevante – acréscimo, está sendo enviada para nosso endereço. Lembre-se, o PT é governo, mesmo que muitos não se sintam à vontade com essa realidade.

A que preço você está se referindo?
O país está há décadas sem crescer. Há desemprego e a desigualdade continua brutal. A instabilidade da economia mundial e o palavrório eleitoral colocaram o país numa zona crítica. Os gastos públicos vivem fortes constrangimentos, o superávit primário é alto, a inflação continua batendo à porta, provocando a elevação da taxa de juros, o que acaba funcionando como um constritor do próprio crescimento econômico. É possível superar esse quadro. Mas o esforço é considerável e passa necessariamente pela afirmação da capacidade do PT de ser governo. O que uma parte considerável do partido menosprezava. Para estes, digo: bem-vindos ao mundo real. Este é o mundo em que as palavras, as idéias, os artigos de jornais e revistas, a fala inflamada, se não possuem a virtude da práxis, da transformação em matéria de interesse público, com impacto sobre a vida de milhões de pessoas, contam apenas para a balança política. É importante? Claro, porque o debate democrático é o único a permitir que se desenhe uma saída para as águas da transição, que, antes de mais nada, são turbulentas por natureza. Se lembrarmos que são raras as experiências que podem servir-nos de inspiração, nossa responsabilidade será ainda maior. Aqui reside um dos maiores problemas das críticas virulentas que estão sendo feitas no campo petista. Primeiramente, como se fosse possível operar esse trânsito com base apenas na vontade; em segundo lugar, como se fosse desimportante a batalha pela manutenção do quadro de estabilidade, de controle de gastos, de contenção do processo inflacionário; em terceiro, como se os oito anos de governo FHC tivessem criado as condições políticas para a aplicação pura e simples do ideário petista. Disse ideário porque, se o PT sempre se orgulhou de seu compromisso com a mudança, nem sempre conseguiu formular projetos de mudança. Essa é a diferença entre ser governo e imaginar-se governo. Por isso, creio, o debate de hoje no campo petista precisa dar conta de algumas questões muito simples. Por exemplo, o que precisa ser mudado? O que pode ser modificado? Tem alguém no PT em princípio contra a redução da taxa de juros? Ou a necessidade de investimento no social? Ou a redução das desigualdades? A retomada do crescimento? A questão-chave que precisa ser respondida é se é possível qualquer processo de alteração do quadro social brasileiro, de desigualdade e pobreza, sem a estabilidade econômica, sem controlar e reorientar os gastos públicos. Sem começar colocando em questão o imenso aparelho que põe e repõe as desigualdades, que penaliza os que nada têm e pede do Estado cada vez mais para os que têm. Veja o debate sobre a Previdência. Parece até que nós passamos a vida defendendo esse Estado Frankenstein, que suga o dinheiro público e orienta seus recursos para os que estão em melhores condições que a imensa maioria. Desse ponto de vista, acredito que o ministro Antonio Palocci está atuando com competência e flexibilidade. Ele está demonstrando que é possível reorganizar a economia, transmitir confiança e preparar o país para mudar de rumo.

Você concorda que a racionalidade no enfrentamento da política econômica é a mesma do governo Fernando Henrique?
Se você olhar com os olhos do monetarista, pode ser que a resposta seja sim. A pobreza do debate da oposição se revela hoje quando tudo parece se resumir à continuidade pura e simples. Se a situação é de trânsito, teremos elementos contraditórios de persistência e mudança ao mesmo tempo. O debate precisa sair dessa chave simplificadora. Muitas vezes parece que o pensamento de esquerda passou a depender de uma única bandeira: redução da taxa de juros. Apenas para lembrar, em vários momentos do governo FHC o Brasil teve juros muito mais baixos que os de hoje, mas nem por isso o país cresceu. Por favor, retomemos uma ótica mais abrangente, sejamos menos monetaristas. Se não for importante controlar a inflação, podemos partir imediatamente para outra política de juros. Aliás, é o que querem muitos empresários da Fiesp e da CNI. Pergunte a eles se deixarão de aumentar seus preços quando os juros caírem. Essas são questões preliminares que temos de vencer. Fala-se em “mesma racionalidade” apenas para dar relevo à dimensão da continuidade. No fundo, porém, o que se cobra do governo é a aplicação de uma política sem substrato de realidade. Podemos comparar Palocci com Malan? Se pudermos comparar Lula com FHC, a resposta é sim. Mas, se olharmos para os últimos oito anos, vamos ver que Malan foi insistentemente contra a aplicação de qualquer política de desenvolvimento, de interferência do Estado na economia, de seleção e definição de prioridades para o uso de recursos públicos. Lula e Palocci buscam e patrocinam avidamente os dispositivos de aplicação de políticas de incentivo à exportação, de políticas sociais, de desenvolvimento tecnológico e científico. No nível atual do debate, todo o processo de preparação das condições para a implementação de outra política de governo, globalizante, no plano do combate à pobreza, da saúde, da educação, da economia, está sendo deixado de lado. Muitas vezes parece que tudo se reduz a uma afirmação totêmica: “Ah, mas a economia é igual à do Malan”.

Onde está o nó da crise econômica brasileira? Ele está na questão da dívida pública ou na vulnerabilidade externa?
Todos os documentos do PT apontam a vulnerabilidade externa como a questão-chave a ser superada. Isso não significa dizer que o ajuste fiscal não seja necessário. Os documentos que o PT divulgou durante o processo eleitoral deixavam claro que, no governo, o partido buscaria reduzir a dependência externa e o peso da dívida pública nas costas da economia e da população. Ninguém colocou isso em questão. Nem Palocci, nem ninguém.

Nem o documento do Palocci “Política Econômica e Reformas Estruturais”?
Esse documento não é do Palocci, é um documento de governo, assinado pelo Ministério da Fazenda. É certo que dá ênfase um pouco exagerada à questão do ajuste fiscal. Mas não vi no documento nada que justificasse o carnaval feito em torno da idéia de que o governo estaria jogando por terra a questão da vulnerabilidade externa. Acredito que o ajuste fiscal é uma política de longo prazo, necessária, e que deve ser aprofundado no bojo de uma política de crescimento econômico. Desse ponto de vista, eu poderia fazer um reparo ao documento. Mas não há oposição irredutível entre o ajuste fiscal e a questão da vulnerabilidade externa. Tanto é assim que o Ipea está trabalhando documentos e projetos para combater a vulnerabilidade externa, de desenvolvimento de políticas industriais, de estímulo à exportação, à geração de empregos, por demanda direta do Ministério da Fazenda. No Ipea estamos desenvolvendo esses programas em sintonia com o ministério, porque todos partem do pressuposto de que a vulnerabilidade externa é o grande estrangulamento do país e que a questão do ajuste fiscal é um processo de longuíssimo prazo.

Como enfrentar a questão da vulnerabilidade externa?
Não há varinha de condão. O primeiro ponto é incentivar e estimular ao máximo o processo produtivo e, em especial, aumentar o volume das exportações. Em segundo lugar, é preciso impulsionar os ganhos de produtividade e facilitar os processos de aprendizagem tecnológica. Pelas dimensões de nosso país e por nossa capacidade produtiva, o mercado interno é extremamente significativo. Portanto, é fundamental a ampliação do mercado interno de consumo de massas ao mesmo tempo que se procura estimular uma política de exportação mais agressiva. Não se trata apenas de otimizar e ampliar a atual pauta de exportações, mas também trabalhar com a idéia de que o Brasil pode ser um grande exportador de produtos com alto valor agregado. Temos de investir em pesquisa, em tecnologia, em inovação, e isso só será feito se o Estado interferir no processo produtivo, realizando escolhas, negociando, estabelecendo prioridades, hierarquizando, portanto, os investimentos disponíveis. Se o governo conseguir criar condições para desenvolver essa política, com certeza daremos um passo à frente muito grande.

Você está falando principalmente de commodities ou de produtos industriais?
Dos dois. Em primeiro lugar, acredito que o Brasil não pode ficar restrito a ser um grande exportador de commodities, que são produtos já à disposição do mercado internacional, com uma tecnologia madura. É extremamente importante para o país exportar tecidos, alimentos, grãos, porque isso afeta positivamente sua balança comercial. Todo o estímulo deve ser feito para que se amplie a capacidade exportadora. Temos de trabalhar no sentido de ampliar a pauta de exportação, capacitar e qualificar o Brasil para controlar processos tecnológicos que não dominamos hoje. Ou seja, temos de ter capacidade de produzir aquilo que uma parte do mundo precisa ou está querendo comprar. Isso significa que podemos entrar em áreas – em alguns casos podem ser nichos e em outros podem ser áreas um pouco maiores – de setores como biotecnologia, TV digital etc. Caso contrário não teremos futuro.

A discussão hoje mostra, por exemplo, que mesmo no interior de um processo exportador de commodities existem vantagens competitivas que têm de ser prezadas e intensificadas. A soja brasileira, por exemplo, ganha fatias significativas do mercado mundial não apenas porque o Brasil teve deprimida sua capacidade exportadora em certo momento e hoje volta a ser um grande exportador de grãos. Desse ponto de vista seria uma commodity como qualquer outra? Não. O Brasil tem vantagens competitivas adquiridas no próprio processo de produção; vantagens em relação aos norte-americanos, à Argentina, que vêm da incorporação de tecnologias ao processo de produção da soja – e, quando falo de tecnologia, falo do ponto de vista do maquinário e também da adoção de instrumentos mais sofisticados, como a capacidade organizacional da produção no processo contínuo. Essas vantagens deram e continuam nos dando a possibilidade de exportar commodities melhor que os outros. Estamos conseguindo exportar porque inserimos no processo de produção técnicas que não são secundárias; ao contrário, têm de ser muito valorizadas e podem ser estendidas a outros setores produtivos.

Esse é o caminho asiático?
Há várias experiências na Ásia e também fora dessa região. Vários países avançados seguiram esse mesmo caminho, mas a experiência sul-coreana é muito forte e pode servir de inspiração para uma série de iniciativas aqui no Brasil. Sempre lembrando, é claro, que nós prezamos a democracia.

A experiência coreana reservou um lugar especial ao Estado; que foi mais que um observador, ou um facilitador, ou um regulador. O Estado interferiu fortemente na economia. Não exatamente como ocorreu com nosso velho desenvolvimentismo. O programa do PT é claro: não é possível e não é desejável a volta do velho desenvolvimentismo. Lembre-se de que nós criamos um parque produtivo extremamente complexo e integrado, excepcional em vários aspectos, mas, ao mesmo tempo, criamos um país extremamente desigual, com uma miséria bastante grande. A experiência que tem de ser buscada é de um Estado que não seja passivo diante dos processos produtivos. Essa é a primeira lição da experiência coreana. O Estado foi estimulador, subven­cionador e preparador, do ponto de vista técnico, de crédito e de financiamento. Um Estado que ajudou as empresas a se capacitar, a prospectar o mercado mundial para encontrar seu lugar.

Por suas características, que não são as mesmas do Estado brasileiro, os coreanos desenvolveram sinergias – estou usando um termo bastante benevolente – entre o público e o setor privado. Foi a partir dessas atividades que se criaram os grandes conglomerados que recebem o nome de chaebols, tipo Sam­sung, LG, Hyundai, Daewoo, que são multifocados, ou seja, interferem em várias áreas da produção, e cuja atuação muitas vezes é difícil de ser separada da atuação do Estado. A desvantagem está exatamente em que não se distingue com clareza o que é público do que é privado. Isso pode ser visto na questão do endividamento, na das licenças, no enriquecimento de algumas famílias, de alguns setores em detrimento de outros. Mas também traz algumas vantagens, porque criou grandes conglomerados que conseguiram construir marcas, penetrar em mercados, desenvolver tecnologia e capacidade de crédito e hoje se configuram como grandes pólos exportadores, produtores e geradores de novas tecnologias e novos conhecimentos.

Nos anos 1960 a economia brasileira era mais integrada e mais complexa que a coreana. O salto dado pela Coréia do Sul foi muito grande. É certo que eles investiram em educação, que tiveram uma poupança mais significativa que a nossa, dadas as características mais homogêneas da sociedade coreana – e essa é uma distinção bastante grande em relação ao Brasil, que é uma sociedade heterogênea e contrastada –, mas o fundamental diz respeito à atuação do Estado e a seu relacionamento com o setor produtivo. Essa é a questão relevante e diferenciadora. Desse ponto de vista, acredito que há lições fortes a ser tiradas do modelo coreano. Não há transplante, porque as condições são diferentes. Mas temos de olhar para os países que deram certo. É claro que nem tudo o que foi feito na Coréia deu certo. Mas é relevante perceber que houve no país uma das mais velozes transformações da história da humanidade. Basta ver que mesmo em condições adversas, como a crise de 1997-1998, dadas as características da sociedade e da economia, assim como da atuação do Estado, a Coréia conseguiu se recuperar rapidamente, enquanto o Brasil patina até hoje.

Voltando ao Brasil, você acredita que hoje temos uma situação de estabilidade econômica?
Em parte, sim. Dada a dependência externa, a estabilidade é sempre provisória. Enquanto não quebrarmos nossa vulnerabilidade externa podemos ter recaídas. É verdade que hoje estamos numa situação melhor: há superávit inédito da balança comercial, portanto há uma capacidade demonstrada de reação. Mas isso não quer dizer que a questão da vulnerabilidade externa esteja superada. O Ipea patrocinou em abril seminário no Ministério do Planejamento, com a presença do ministro Palocci, do ministro Guido Mantega (Planejamento), de Carlos Lessa (BNDES), do senador Aloizio Mercadante, do professor Luciano Coutinho, em que essa questão foi discutida e houve concordância entre os palestrantes. Não estou dizendo que não haja diferença entre eles, mas a uniformidade foi muito grande. O grave problema da vulnerabilidade é que não temos cacife para saldar nossa dívida e, ao mesmo tempo, financiar, manter e sustentar nosso desenvolvimento. O Japão, por exemplo, tem uma reserva de mais de 200 bilhões de dólares, por isso ele sobrevive melhor às crises. É por isso que, quando há crise na Tailândia, no Japão ou na Coréia, a população não sofre como a nossa. O que eu gostaria de realçar é que o governo precisa desenvolver políticas ativas para quebrar a vulnerabilidade externa: de exportação, de reforma tributária, de estímulo ao processo produtivo, desonerando a produção, prospectando mercados interna­cionais. Políticas ativas que interfiram nos processos produtivos e comerciais. Em segundo lugar, o governo precisa modificar sua política de crédito. Temos de ter crédito mais barato. A busca da estabilidade é básica para ter confiança na economia, para ter condições de controlá-la e governá-la, para diminuir a taxa de juros. O grande problema para isso é o processo inflacionário; se conseguirmos dar esse passo, vamos abrir um período monumental para o Brasil. Tem chance de dar errado? Tem. Mas acredito que tem muita chance de dar certo. A partir das condições que estão sendo geradas será possível colocar a gigantesca máquina produtiva brasileira a serviço do desenvolvimento do mercado interno, dos processos exportadores, do crescimento. Acredito, portanto, que abriremos um ciclo completamente novo em nossa história.

Está falando de um processo a médio prazo...
No curto prazo corremos o risco da miopia. No longo, estaremos todos mortos, como disse Keynes. Falo de processos de médio prazo, sem milagres, infelizmente.

Mas, no imediato, como tomar medidas no rumo da retomada do crescimento econômico?
Em primeiro lugar, atacando o núcleo duro da inflação e forçando os empresários a rebaixar seus preços. Esse é o processo de estabilização da economia. As medidas de debate e de pacto social levantadas pelo presidente Lula vão nessa direção. Ou será consagrado um novo contrato pelo Brasil, ou continuaremos escorregando. Aliás, diga-se de passagem, até a própria Maria da Conceição Tavares, em entrevista à Folha de S.Paulo, afirmou que o que está sendo feito não é o desejável, mas o que precisa ser feito.

Mas por que não baixar mais a taxa de juros?
Porque havia uma pressão inflacionária muito forte. Eu não sou contra testar alternativas. Acredito que Palocci também pensa nisso o tempo todo. Mas gostaria de chamar a atenção para uma questão: acho de uma pobreza lamentável a esquerda brasileira concentrar toda a sua discussão em se a taxa de juros é alta ou baixa. Eu nunca li nenhum livro, nem marxista, nem protomarxista, nem filomarxista, que diga que o problema central para avaliar o desempenho da economia de um país é a taxa de juros; hoje parece que tudo se resume à taxa de juros. É alta? É óbvio! Constrange o crescimento? Muito! Pode atrapalhar ainda muito. Tem gente que queria baixar a taxa de juros no primeiro dia de governo, que repete o tempo todo que o remédio é errado, pois não há no Brasil inflação de demanda. Não conseguem ver que muitas empresas estão operando com mais de 80% de sua capacidade instalada, que nós ainda estamos pagando a alta do dólar do segundo semestre do ano passado. As pessoas que defendem que o governo está errando com os juros altos na verdade pedem sua redução desde o dia 1º de janeiro. E têm uma dificuldade muito grande para explicar por que a inflação conseguiu ser controlada com a política atual. Alguns chegam mesmo a dizer que ela não foi controlada pela política econômica. Talvez pela marcha automática – e sensata! – da economia. Claro que acreditar nisso seria acreditar na morte da política.

O grande nó não é sabermos se podemos ou não reduzir a taxa de juros, porque todos concordam que tem de reduzir. A questão é escolher o momento, e já chegamos nesse ponto. As projeções do Ipea, os cenários que estamos simulando indicam que o governo está dando os passos adequados, ainda que bem comedidos, comme il faut. O ponto central é outro. Em uma situação como a atual, de transição, as medidas que tomamos são pesadas para o conjunto da população porque dificultam o processo de geração de empregos. O debate necessário sobre a geração de empregos é a questão crucial, e isso diz respeito ao conjunto do governo, às iniciativas dos ministérios do Trabalho, da Fazenda, do Planejamento, ao Plano Plurianual que estamos discutindo e vamos apresentar ao Congresso Nacional até 30 de agosto.

Mas não diz respeito essencialmente à taxa de juros?
Se queremos reduzir a discussão sobre crescimento exclusivamente à taxa de juros, então vamos repetir a mesma discussão do primeiro dia de governo até hoje: a taxa de juros está alta; logo, o país não vai crescer. Não é bem assim. O quadro hoje é distinto da primeira semana de governo e já estamos numa situação em que a taxa de juros começa a baixar. Agora quem vai conduzir a baixa são o Banco Central, o Ministério da Fazenda, o presidente da República. A questão está tão mal colocada que muitos críticos petistas da atual política econômica deixaram passar em brancas nuvens o contingenciamento das verbas do orçamento público, que tem impacto muito mais profundo sobre a economia do que a taxa de juros. Essa discussão ficou sem foco, seja porque a imprensa foi ensinada a jogar o facho de sua lanterna em cima dos juros, seja porque o empresariado brasileiro estrila muito com a taxa de juros alta. Como uma parte significativa do empresariado não liga muito para a degradação do aparelho público, o contingenciamento de 14 bilhões de reais ficou à margem da discussão. Os dados, porém, são claros: o contingenciamento dos gastos, a interrupção de investimento público feita pelo governo em fevereiro, tem um impacto no médio e longo prazo muito mais profundo sobre nossa capacidade de geração de empregos, de desenvolvimento e de crescimento do que a taxa de juros. Estou dizendo que muitas vezes pessoas de esquerda têm o pensamento enviesado da direita, que relega a atuação do Estado a segundo plano. Quem nos pauta nem sempre são nossos grandes ideais, como se pode ver no caso.

Grande parte dos economistas históricos do PT tem maiores ou menores restrições à política econômica em curso. Em que você acha que eles estão errados?
Não é bem assim. A maioria dos economistas históricos do PT está no governo. A professora Maria da Conceição Tavares, por exemplo, defendeu a política do governo. Criticou o viés monetarista da equipe da Fazenda, mas não deixou de afirmar que o que se estava fazendo era necessário. As críticas são legítimas. Vozes esparsas apresentam alternativas que não constavam – nem constam – do programa do PT, como o controle de capitais, do câmbio, a suspensão do pagamento da dívida externa e outras. É sempre bom lembrar que a diversidade da equipe de Palocci é grande e exemplar, muito coerente com a história do próprio PT. Há não só gente com perfil liberal na equipe da Fazenda. Há gente de esquerda, alguns até de ultra-esquerda. O que se vê, no entanto, é uma coesão em torno dos passos que o ministério vem dando. Acho esse aspecto relevante, pois a política não foi em ziguezague; foi consistente e coerente com as posições do PT anunciadas durante a jornada eleitoral. Os principais documentos da campanha prenunciaram os passos que estão sendo dados.

Você sabe que a política econômica não obedece às regras de nenhuma ciência exata, por mais que muitos economistas não acreditem. Ou seja, apesar do uso intensivo de métodos quantitativos, a “ciência” econômica não é previsível. A questão dos juros é uma questão de timing, de tomar a decisão no momento mais adequado – se você reduzir antes, corre o risco de fazer a economia desandar; se demorar, pode desandar de outra maneira. Eu perguntava aos que defendiam baixar os juros na primeira semana: “Mas e se a inflação dispara??” Ninguém sabia o que responder, a não ser que “talvez um pouco de inflação possa ajudar”. O problema é que já estamos com um pouco de inflação. Na verdade, recebemos do governo FHC uma projeção de inflação que dava quase 30% ao ano! E hoje ela está descendo a níveis mais razoáveis. O problema não é saber se vamos ter ou não um pouco de inflação; o problema está em saber se você quer abrir as porteiras. Vejo alguns economistas próximos ao PT afirmarem: “Nós controlamos o capital, baixamos imediatamente a taxa de juros, soltamos as amarras do Orçamento e reduzimos ao mínimo possível o superávit primário”. Basicamente, o oposto do que está sendo feito no curto prazo. Se isso for feito, o governo não dura uma semana. Nem o governo nem o país suportam essa política, que representaria enorme alteração nas regras que o PT ditou durante as eleições. Quem teria condições de praticá-la se estivesse no comando da economia? Não podemos falar como se estivéssemos à frente de algum exercício acadêmico. Muitas vezes, escondidos na universidade, pensamos alto. É importante, claro. Mas sempre lembrando que estamos desenvolvendo um exercício acadêmico, de abrangência enorme, porém limitado pela ausência dos parâmetros governamentais.

Quais são suas expectativas em relação aos rumos da política econômica e ao futuro do Brasil?
Estou bastante otimista, ainda que as condições e as escolhas sejam dificílimas. O debate político é extremamente benéfico para o PT. O problema todo é que nós temos pouca tradição de concentrar o debate nas alternativas reais. O presidente Lula afirmou várias vezes que os remédios não têm sido agradáveis. É sempre bom lembrar que estamos operando em condições muito adversas, mas estou esperançoso porque há um processo seguro na condução da política econômica, que não se verga diante da primeira pressão. A questão do emprego continua sendo chave, mas para dar passos no sentido de sua resolução o governo tem de funcionar em sua totalidade. É preciso que haja integração das políticas, coordenação dos ministérios, uma atuação mais orquestrada de nossos governantes. Em todas as áreas temos de ter um governo mais orquestrado. Mesmo assim, gostaria de enfatizar que estou bastante confiante em nossa capacidade de recuperação no próximo período.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate