Economia

Enquanto permanecer a dependência do financiamento externo, só o bom humor dos mercados pode garantir a estabilidade do câmbio e o cumprimento das metas de inflação. Resta saber se o novo governo terá forças para resistir às tentações do endividamento fácil.

 

Nos cinqüenta anos que terminaram no início da década de 1980, a economia brasileira cresceu de forma acelerada.

O projeto “desenvolvimentista”, que então dominava o imaginário da sociedade, foi construído por uma singular articulação entre as camadas empresariais nascentes, o estamento burocrático-militar, as lideranças intelectuais e o proletariado em formação. Suas características maiores foram a internacionalização produtiva da economia; a intervenção de um Estado competente na distribuição de incentivos à acumulação privada e na arbitragem entre o capital doméstico e estrangeiro; a incorporação restrita das massas às normas “modernas” de produção e de consumo; e a completa exclusão política dos mais fracos e menos favorecidos.

Na década perdida, a dos anos 1980, multiplicaram-se as críticas à industrialização brasileira. Elas concentravam-se, para além das desigualdades, na denúncia de uma suposta tendência à autarquia, à ineficiência, à falta de competitividade externa e à estatização. Estes, diziam os detratores, eram males congênitos do processo de substituição de importações.

Para os liberais conservadores, a aventura desenvolvimentista não passou de um doloroso engano. Engano que fez prosperar o famigerado populismo econômico, uma forma de politização à outrance da economia que combinava nacionalismo e hostilidade ao mercado. As políticas desenvolvimentistas, diziam, enredaram o Estado nas malhas de grupos predadores de renda que lançaram o ente público na incontinência fiscal e monetária, caldo de cultura da hiperinflação.

É bom notar que os críticos à esquerda já haviam apontado a exaustão do chamado “modelo de substituição de importações”, sublinhando, aliás, alguns desafios importantes que estavam postos em meados da década de 1970: 1) a criação dos instrumentos e de instituições para a mobilização do crédito doméstico, particularmente para suportar o financiamento de longo prazo; 2) a reestruturação e modernização da grande empresa de capital nacional e de suas relações com o Estado; 3) a constituição do que Fernando Fajnzylber chamava de “núcleo endógeno de inovação tecnológica”.

Mas, no começo dos anos 1990, um novo consenso pregava as “verdades eternas” do crescimento saudável. Em essência, seus princípios eram os seguintes: 1) a estabilidade de preços cria condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial impõe disciplina competitiva aos produtores localizados no país, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam gargalos de oferta na indústria e na infra-estrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a abertura da conta de capital atrairia poupança externa em escala suficiente para complementar o esforço de investimento nacional e para financiar o déficit em conta corrente.

Os períodos em que se revigora o pensamento liberal são momentos de predominância do cosmopolitismo avant la lettre. Esse cosmopolitismo liberal trata, em primeiro lugar, de borrar as diferenças entre as situações nacionais, de ocultar e negar a existência de hierarquias e formas de dominação nas relações internacionais. O liberalismo à brasileira sempre combinou, além disso, a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da política na economia com uma profunda e mal dissimulada desconfiança na capacidade nativa de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e seus padrões modernos de convivência.

O resultado da nova empreitada cosmopolita foi, do ponto de vista do desenvolvimento econômico e indus­trial, para dizer pouco, desapontador. Ao contrário do processo de endividamento dos anos 1960 e 1970, que financiou, direta e indiretamente, projetos destinados a substituir importações e/ou a estimular as exportações, a nova etapa de dependência do financiamento externo provocou um salto qualitativo na vulnerabilidade externa da economia brasileira.

Nos anos 1990, a abertura da conta de capital foi um convite ao uso abusivo da âncora cambial e dos juros elevados, desestimulou os projetos voltados para a exportação, promoveu um “encolhimento” das cadeias produtivas – afetadas por importações “predatórias” – e aumentou a participação da propriedade estrangeira no estoque de capital doméstico. Esses fatores promoveram um aprofundamento do desequilíbrio externo com dolorosas conseqüências para as políticas de desenvolvimento.

Nos oito anos de “política modernizadora”, o governo FHC procurou, na verdade, executar diligentemente a agenda reformista do regime Dólar-Wall Street: o Brasil caiu na esparrela da abertura financeira à outrance. Depois da estabilização de 1994, a abundante liquidez internacional juntou-se ao câmbio valorizado e aos juros altos para estimular o endividamento em dólares dos agentes domésticos e desatar a febre de aquisições de empresas brasileiras – públicas e privadas.

Durante os dois mandatos, nossos ouvidos foram emprenhados pela retórica do “Novo Renascimento”, pelas teorias “neobobas” da integração competitiva, por tolices sobre as virtudes da taxa de câmbio valorizada. Essa mixórdia ideológica e pseudocientífica era supostamente portadora de estímulos aos ganhos de produtividade e de bem-estar. Mas, na vida real, teve apenas um propósito: armar outro ciclo de endividamento externo e de enriquecimento rápido da piranhagem cosmopolita, os daqui e os de fora.

Essa aventura financeira e patrimonial é a maior responsável pela situação atual do país. A dívida privada em moeda forte e a transferência maciça de propriedade para os estrangeiros (ou seja, a ampliação do passivo externo líquido para uma cifra em torno de 450 bilhões de dólares) são hoje fonte de instabilidade da taxa de câmbio, pois geram um fluxo importante de pagamentos e amortizações para o exterior. Nos próximos três anos, mesmo com um superávit comercial capaz de zerar o déficit em conta corrente, as necessidades de financiamento do balanço de pagamentos ficarão acima dos 30 bilhões de dólares.

Os departamentos econômicos dos bancos esmeram-se em demonstrar que os fluxos de entrada de capitais em 2003, incluindo os recursos do FMI, são suficientes para zerar os compromissos. Fecha, mas na conta do chá, à custa de um superávit comercial de economia prostrada na recessão e, pior ainda, com as reservas líquidas num nível perigoso, 13 bilhões de dólares.

Ao longo de 2002, o Brasil sofreu um choque cambial negativo, desferido por uma contração da liquidez internacional e amplificado pela desconfiança dos mercados em relação ao desfecho das eleições. O novo governo recebeu a economia à beira de um colapso nervoso. O choque cambial se transmitiu aos preços indexados ao dólar e à fração dolarizada da dívida interna. Para conter a inflação, o governo aumentou os juros e elevou o superávit fiscal primário. O contubérnio entre juros reais elevados na ponta do crédito, carga tributária em elevação e superávit primário derrubou o PIB, além de afetar a trajetória da parcela da dívida pública indexada à taxa Selic. A relação dívidaa–PIB parecia, então, escapar ao controle. O risco país saltou para uma pontuação improvável: os “investidores” e seus arautos tupiniquins gritavam e exigiam – além da elevação dos juros – o conforto de um superávit primário ainda mais alentado.

A atitude do governo recém-eleito foi, de fato, um “sucesso”: numa situação internacional em que prevalecem taxas de juros muito baixas, crescimento lento e ameaças de deflação na tríade desenvolvida (Estados Unidos, União Européia e Japão), os detentores de riqueza líquida tomaram a decisão, outra vez, de deslocar uma fração marginal de seus haveres para aplicações de maior risco. Na verdade, os prêmios de risco – para empresas e países de menor reputação – começaram a cair de forma generalizada desde o final de 2002.

Seja como for, a entrada de capitais de curto prazo por intermédio do mercado interbancário – cerca de 9 bilhões de dólares –, bem como a volta do governo brasileiro e de algumas empresas ao mercado de bônus, reverteu o quadro “pessimista”. O real apresentou forte valorização, com impacto positivo sobre a dívida e a inflação. Os exagerados prêmios de risco despencaram na mesma toada em que se valorizavam os C-Bonds. Alegando a existência de fatores inerciais na inflação e mirando uma meta irrealista para a evolução dos preços, o Copom resistiu às pressões para baixar a taxa Selic, que continua na casa dos 26%.

O sucesso no curto prazo pode, no entanto, ser o prenúncio de velhos problemas no longo prazo: pior do que a valorização do câmbio é sua volatilidade. Quem contratou fatores de produção e adquiriu insumos importados com o propósito de exportar à taxa de 3,40 reais no começo do ano, certamente vai engolir um baita prejuízo ou cancelar o contrato de exportação com a taxa a 2,87 reais. Seja qual for o desfecho, sairá debilitada a inclinação a exportar do empresário brasileiro.

O Brasil vive, assim, uma situação difícil: o superávit atual na conta de comércio vem sendo obtido, sobretudo, à custa da queda das importações, ainda que nos últimos meses se observe uma animadora elevação das exportações. O superávit só será saudável caso as exportações e importações cresçam, as exportações acima das importações. Só assim o aumento do saldo comercial é compatível com o crescimento da renda e do emprego domésticos. A economia estaria, nesta hipótese, crescendo e, ao mesmo tempo, gerando um superávit com o resto do mundo. A expansão das vendas líquidas nos mercados externos significa não só um aumento do lucro macroeconômico, como também a possibilidade de acumulação de reservas em moeda forte.

Essas políticas são desdenhosamente chamadas de neomercantilistas, porquanto colocam ênfase na obtenção de um saldo comercial favorável e na acumulação de reservas. Na visão contemporânea, tais práticas afetam negativamente o comércio internacional, na medida em que perpetuam desequilíbrios nos balanços de pagamentos de outros países e subtraem liquidez às transações globais.

Mas, num mundo em que são fortes as assimetrias de poder econômico e financeiro entre as nações, as práticas neomercantilistas não só têm propiciado o avanço tecnológico e produtivo das economias em desenvolvimento, como permitem a adoção de políticas monetárias mais frouxas, isto é, taxas de juros mais baixas, que favorecem a expansão do crédito. Isso porque a acumulação de reservas elevadas – capturadas por meio dos saldos comerciais, e não de endividamento – garante o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio.

Fácil de dizer, difícil de fazer. Primeiro, problemas do “lado da oferta”. Muitos setores vão precisar de investimentos para atender simultaneamente ao crescimento das demandas interna e externa. A capacidade instalada em siderurgia, petroquímica, alumínio, papel e celulose e em outros insumos praticamente não se expandiu nos últimos anos. Não vai suportar um aumento simultâneo das exportações e da demanda interna sem novos investimentos. Isso para não falar da geração e transmissão de energia. Hoje está “sobrando” capacidade de geração por conta do desempenho medíocre da economia. Mas vai faltar, caso o crescimento retome, de forma sustentada, um ritmo superior ao atual.

Esses investimentos demandam importações, sobretudo de bens de capital. Este setor não está em condições de satisfazer a procura: não só sofreu um relativo atraso tecnológico durante os últimos vinte anos, como viu desaparecer ou encolher muitos subsetores, diante da queda vertiginosa dos gastos de investimento do setor público. Assim, mesmo nas áreas em que a especialização brasileira era notória, a retomada do crescimento vai exigir novas inversões.

Tais circunstâncias não recomendam tolerância com uma taxa de câmbio valorizada e muito menos complacência com flutuações acentuadas na taxa de câmbio. Se a taxa de crescimento da economia global continuar muito baixa, com riscos de deflação e de desvalorizações competitivas, a tarefa de aumentar as exportações e alentar o crescimento continuará dependendo muito mais da desvalorização real do câmbio e menos da baixa absorção interna e da contenção das importações.

Está claro agora que a desaceleração da economia norte-americana tem uma característica muito especial. Ela não foi precipitada pela política econômica com o propósito de abortar repique da inflação, como em outros episódios semelhantes do pós-guerra. A origem da crise está nos “excessos” do setor privado. As grandes corporações cortaram a exuberante escalada de gastos de investimento (e de endividamento) nos setores de nova tecnologia, agora afogados em capacidade ociosa. Os consumidores continuam gastando, estimulados pela baixa de juros e pelo efeito riqueza proporcionado pela bolha dos imóveis residenciais. Mas não há como manter isso.

Seja como for, é perigoso alimentar fantasias. Nos próximos anos, é difícil uma repetição das condições que sustentaram a farra de dólares da segunda metade dos anos 1990. O Brasil tem um grave problema de liquidez em moeda forte. Precisaria de uma ponte para atravessar este período. O crédito externo está se recuperando a conta-gotas e muitos devedores – os que conseguem – estão refinanciando suas dívidas com empréstimos de curto prazo. A volta do financiamento externo em volume suficiente está fora de nosso controle. O Brasil não pode esperar mais quatro anos para reduzir os juros.

Enquanto permanecer a dependência do financiamento externo, só o bom humor dos mercados pode garantir a estabilidade do câmbio e o cumprimento das metas de inflação. Resta saber: se, restaurada a fidúcia dos mercados globais, o novo governo terá forças para resistir às tentações do endividamento fácil; e se a melhoria das condições externas vai ser utilizada para liberar a política econômica dos constrangimentos atuais.

O governo garante que não pretende impor restrições ao fluxo de capitais. Os que advogam tal comportamento são adeptos da idéia de que no mundo das finanças internacionais todos os gatos são pardos: não parecem levar em conta que o sistema monetário global é constituído por uma hierarquia de moedas, umas mais “líquidas” que as outras. É improvável, por exemplo, que um exportador alemão e um importador japonês escolham o real como moeda de transação em seus negócios ou que no mercado de Nova York surjam investidores ansiosos para adquirir títulos de dívida denominados em reais.

Para as economias de moeda sem reputação e “ilíquidas”, a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Seja qual for o regime cambial adotado, as autoridades monetárias do país de “moeda fraca” – com “ponto de compra” imprevisível – poderão ser obrigadas a vender reservas ou subir as taxas de juros para estabilizar o curso do câmbio dentro de limites considerados seguros.

Pois a razão maior do fracasso econômico de FHC foi não ter – vamos ser generosos – compreendido as armadilhas da abertura financeira. Daí nasceu uma economia sem instrumentos de governança, sem liberdade de utilizar instrumentos fiscais e monetários compatíveis com o crescimento e incapaz de engendrar estratégias de longo prazo.

Ainda que imperfeitamente, muito imperfeitamente, a coordenação de longo prazo foi executada no Brasil “desenvolvimentista” pelo núcleo produtivo estatal e pelos bancos públicos, até a malfadada crise da dívida externa do início dos anos 1980. A relativa capacidade de sustentar uma aproximação competitiva dos padrões do mundo industrializado foi, em alguma medida, produzida por essa forma de organização do mercado capitalista. As principais deficiências do “modelo capitalista brasileiro” – além da escandalosa e anacrônica desigualdade social – estavam nas formas atrasadas de organização empresarial, na baixa capacidade de inovação tecnológica do sistema produtivo e na inapetência do sistema de crédito e do mercado de capitais em buscar “funding” e instrumentos adequados para financiar projetos de maturação mais longa. Esse conjunto de “falhas” impediu o fortalecimento patrimonial e financeiro das empresas nacionais. Muita gente sabe que essas deficiências foram responsáveis, entre outras coisas, pela excessiva dependência do financiamento externo. O processo de privatização teria sido uma boa oportunidade para reestruturar e centralizar o capital nacional, inclusive o bancário, colocando a grande empresa brasileira num nível intermediário de competitividade, com chances de avançar para patamares mais elevados. Imagino que alguns dos responsáveis pelo programa de transferência de ativos públicos para o controle privado tenham pensado nisso. Foram atropelados pelas conseqüências de um regime cambial absurdo e pelas idéias toscas sobre a globalização, duas pérolas do ex-presidente.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor da Universidade Estadual de Campinas e conselheiro editorial da revista Carta Capital

Nota: este artigo é uma síntese de outros trabalhos do autor já publicados.