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O “milagre dos transgênicos” anunciado nos argumentos de seus defensores, no entanto, não se confirma nos resultados

A liberação, por exceção, da atual safra de soja transgênica para a comercialização só ocorreu por conta da omissão e da irresponsabilidade do governo FHC, escoltado por grupos de grandes produtores do Rio Grande do Sul. Estes, por meio da Assembléia Legislativa daquele estado, proibiram o governo do petista Olívio Dutra de fazer cumprir a lei, o que reduziria o impacto do crime, apesar do descaso do governo federal da época.

A liberação, por exceção, da atual safra de soja transgênica para a comercialização só ocorreu por conta da omissão e da irresponsabilidade do governo FHC, escoltado por grupos de grandes produtores do Rio Grande do Sul. Estes, por meio da Assembléia Legislativa daquele estado, proibiram o governo do petista Olívio Dutra de fazer cumprir a lei, o que reduziria o impacto do crime, apesar do descaso do governo federal da época. O governo Lula, por outro lado, demonstrou grandeza ao compreender a situação socioeconômica daqueles milhares de agricultores; foi sensível com os que a cultivaram ao não queimá-la ou apreendê-la, livrando-os da cadeia e suas famílias da fome. O “milagre dos transgênicos” anunciado nos argumentos de seus defensores, no entanto, não se confirma nos números.

Nos EUA da tecnologia transgênica gasta-se 1,06 dólar a mais para produzir uma saca de soja do que no Brasil dos grãos convencionais. A produtividade brasileira cresce na média de 1,91% ao ano, enquanto os norte-americanos viram o índice despencar para 0,04% negativo. Nossa produção aumenta cerca de 8,8% ao ano, e a norte-americana estancou em 1,8%, retrocedendo aos níveis de 1997. Os EUA cultivam soja transgênica em 39 milhões de hectares e, com Argentina, Canadá e China, respondem por 99% da área com cultivo de transgênicos no mundo.

No Brasil, o Rio Grande do Sul dos transgênicos produziu menos, por hectare, no ano passado do que em 2001 e aumentou o uso de veneno em 47,6%.

A produção de soja brasileira superou a dos EUA, até o ano passado primeiros no ranking. O desempenho do Brasil sem transgênicos fez a produção de grãos crescer 19,3%, por conta da ampliação da área cultivada e também do aumento da produtividade, que é de 2,6% ao ano, com picos de até 5,2%, verificado no Mato Grosso do Sul, onde os transgênicos foram banidos.

Na safra brasileira, a soja transgênica representa pouco: 3,4% dos grãos e 7,9% da soja. Considerando o aumento de 6% (2,5 milhões de hectares) na área plantada e que são Pedro ajudou como nunca, está claro que superaríamos a produção de soja dos EUA e te­ríamos uma grande safra mesmo sem a malfadada soja modificada. Talvez até melhor, tendo em vista os números da produção gaúcha.

Fica patente, no entanto, que naquele estado o debate resulta de uma disputa político-ideológica entre um modelo agroeconômico falido e excludente e um novo modelo de agricultura de inclusão. Debate este que, se tratado irresponsavelmente como ocorre, terá reflexos negativos graves em toda a política agrícola do país, já que está calcado numa visão de curtíssimo prazo, no socorro desesperado fincado no imediatismo e, tão ou mais grave, na ilegalidade das ações, restando ao Poder Público a anuência aos atos ilícitos.

A medida provisória do governo é uma brecha diplomática para a comercialização dos grãos transgênicos. Evita que os agricultores que cultivaram soja transgênica – uns por má-fé, outros por má informação – sejam condenados pelo crime que cometeram, o que prejudicaria emocional, financeira e social­mente suas famílias. Evita que o governo tenha de gastar cerca de 1 bilhão de reais para adquirir a safra, numa espécie de indenização aos que desrespeitaram a lei, o que geraria um desconforto ainda maior ao se explicar o benefício por uma ação ilegal. A pura e simples apreensão, multa e bloqueio ao crédito provocaria, por sua vez, uma crise sem precedentes, ao menos no Rio Grande do Sul, com conseqüências graves à economia daquele estado durante, no mínimo, meia década. E, talvez, um desgaste social e econômico àquela população muito maior que o desgaste político do governo se, em vez de optar por uma ação diplomática, tivesse seguido à risca a lei.

De certa maneira anistiados pela MP, os grupos pró-transgênicos sentiram-se livres até para argumentos como creditar o aumento da safra de grãos à soja modificada. Se para os mais informados pode parecer ingenuidade, prefiro ser realista e incluir tal crédito na estratégia para disseminar os cultivos transgênicos – como fizeram ao afirmar menor uso de veneno, menor prejuízo ao meio ambiente, maior produção e maior lucratividade –, submetendo agricultores, governos, política agrícola e soberania alimentar aos interesses dos EUA, por meio da Monsanto. Aliás, não seria fato novo na história do Brasil.

Não consigo ver, na comparação dos números, indícios de evolução tecnológica, viabilidade financeira ou ambiental. Até porque o mercado consumidor da soja brasileira não aceita nenhum argumento pró-transgênico nem nenhum produto que inclua em seu cultivo, criação ou industrialização algum insumo transgênico. Por conta disso, os EUA perderam espaço no mercado mundial, justamente para o Brasil sem transgênicos (a exportação brasileira de soja convencional cresceu 27,5% ao ano de 1996 a 2001), e seus agricultores querem livrar-se do “abacaxii”, apesar dos subsídios de seu governo.

Com uma visão de mercado de longo prazo e alguma preocupação com os impactos no meio ambiente e na saúde do consumidor nacional ou estrangeiro, na política agrícola e na soberania nacional, algumas empresas, como a Cooperalfa, em Santa Catarina, ou a Federação da Agricultura do Paraná, não estão comercializando ou sequer armazenando a soja transgênica, prevenindo-se contra represálias futuras, ou da própria lei – já que a comercialização atual é exceção –, ou, pior ainda, do mercado, que tem forte rejeição aos transgênicos, seja in natura, seja industrializado, seja insumo na cadeia de produção de carnes. São questio­náveis, portanto, a análise e a “visão de mercado” de alguns capitalistas nacionais.

Mas a Monsanto quer garantir o lucro de suas “pesquisas” e os EUA, seu filão de mercado e seu domínio, não importando sobre quem recaiam os custos – sanitários, econômicos, ambientais, políticos. Aí entrou o grande potencial agrícola brasileiro. Não apenas potencial de cultivo, mas também de comercialização, que estão sendo colocados em xeque por conta das suspeitas que se levantarão sobre a produção de grãos e rebanhos brasileiros e seus derivados.

A quem caberá o ônus desse prejuízo iminente por conta da permissão da colheita e comercialização de grãos transgênicos, que, ressaltemos, preservou a dignidade de milhões de agricultores no Rio Grande do Sul ao amenizar a legislação? A quem caberão os custos pelos testes de detecção do porcentual transgênico, rotulagem, estocagem e transporte segregados dos grãos originados do cultivo ilegal? E dos royalties pretendidos pela Monsanto, sobre um grão contrabandeado, considerado ilegal e pelo qual nos acusam de pirataria?

Não pretendemos que recaiam sobre a sociedade brasileira e o governo os prejuízos financeiros, sanitários e ambientais do cultivo, comercialização e consumo dos transgênicos e seus derivados. A decisão sobre nosso futuro, nossa soberania agrícola, econômica e alimentar, no entanto, cabe a nós, brasileiros, à sociedade e ao Poder Público. A discussão precisa ser disseminada e a decisão tomada para além da medida de exceção do governo; além da ideologização falaciosa imposta pela Monsanto e por algumas entidades dos grandes proprietários de terra que viram no ato ilegal a possibilidade de “sair do vermelho”.

Mais do que o suposto lucro fácil e imediato, temos responsabilidade pela biodiversidade da natureza brasileira, uma das mais ricas do planeta. Temos responsabilidade pela saúde humana, quase sempre esquecida ou relegada a segundo plano quando se trata de mercado ou capital. Temos a responsabilidade sobre o futuro das próximas gerações. Temos responsabilidade pela “evolução tecnológica”, especialmente a apregoada neste caso, quando suas principais conseqüên­cias são a exclusão, a eliminação, o empobrecimento científico, ambiental e social. Temos responsabilidade sobre a distribuição de renda e as possibilidades de obtê-la.

Não pretendemos a estagnação, muito menos o caos resultante de análises limitadas, que interessam apenas ao acirramento das dificuldades agrícolas e comerciais impostas ao Brasil, durante décadas, em detrimento do interesse dos 170 milhões de brasileiras e brasileiros.

Não cabe aqui nenhum tipo de ingenuidade. Que interesse poderá ter a mesma companhia que vende agrotóxico num grão que supostamente reduziria seu uso? Que interesse poderá ter o país que liderou – até o ano passado – a exportação de soja em enviar-nos um grão que supostamente impulsionaria nossa produtividade, mas é rejeitado no mercado internacional? Já disseram os norte-americanos que, no mercado, não há amigos. São necessárias análises técnicas insuspeitas, comparativos sem tendência e um profundo senso de responsabilidade de toda a sociedade brasileira, principalmente dos seus representantes políticos.

Cabe ao governo Lula uma decisão construída com a grande maioria do povo brasileiro, em que não se permita barganha de nenhuma espécie. Uma decisão que possibilite o surgimento de um novo e amplo modelo de agricultura no país, com desenvolvimento e produção diversificada pela valorização da pequena agricultura e dos assentamentos rurais, com inclusão social, com cidadania, com geração de emprego e de renda na realização da reforma agrária e na produção de alimentos para o combate à fome e à miséria.

Um novo e amplo modelo que garanta nossa independência produtiva, nossa soberania alimentar e nossa participação no mercado mundial, sem alienação a este ou aquele grupo econômico ou científico. Um modelo que garanta a biodiversidade presente e futura do país e do planeta. Um novo e amplo modelo que garanta a saúde dos bilhões de seres humanos e dos milhões de brasileiros.

A discussão está sendo feita agora e nossa opção pelo desenvolvimento do país, pela preservação da biodiversidade e pela melhoria na qualidade de vida e de saúde do povo brasileiro está expressa na rejeição aos transgênicos.

Luci Choinacki é agricultora, deputada federal pelo PT-SC, titular da Comissão de Agricultura e Política Rural e vice-líder do partido na Câmara dos Deputados