Internacional

A intransigência dos países centrais geraram um impasse que determinou o fracasso da Conferência de Cancún

O fracasso das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) na Conferência Ministerial de Cancún voltou a chamar a atenção do mundo para o papel dessa instituição na regulação do comércio internacional. O impasse em Cancún refletiu a acirrada disputa entre os países em desenvolvimento e os países centrais sobre as regras e práticas vigentes (ou a serem tornadas vigentes) no comércio mundial. Para melhor compreender essa disputa de poder e agenda no âmbito da OMC, é necessário situá-la no processo de gênese e transformação do sistema multilateral de comércio nas seis últimas décadas.

O fracasso da OIC
As origens da atual OMC remontam à frustrada tentativa de criação da Organização Internacional do Comércio (OIC) ao término da Segunda Guerra Mundial. Nos marcos dos acordos firmados em Bretton Woods, esta instituição foi concebida para integrar, junto com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird), o tripé de agências do Sistema da ONU responsáveis por estruturar e reger a nova ordem econômica internacional. A preocupação dominante na criação da OIC era consolidar um sistema de regras gerais no comércio internacional que impedisse a reedição do clima de guerra comercial que havia desembocado na própria Segunda Guerra.

Parte importante das regras definidas no Estatuto da OIC, aprovado em 1948, tinha por objetivo promover e garantir a abertura de mercados e a redução de tarifas e outras barreiras comerciais. Coerente com as idéias keynesianas predominantes na época, este objetivo de liberalização comercial estava subordinado a outros, como a promoção do crescimento da renda real e da demanda efetiva a escala mundial, bem como do desenvolvimento econômico (em especial o dos países não-industria­lizados). Vale lembrar que o próprio FMI defendia, então, a adoção de controles sobre o fluxo de capitais para preservar a autonomia da política macroeconômica dos Estados diante de movimentos desestabilizadores de suas moe­das. Ou seja, embora a arquitetura da nova ordem econômica internacional pudesse ser considerada “liberalizante” na esfera comercial, certamente não o era nas esferas monetário-financeira e de política macroeconômica.

As rodadas do Gatt
O Congresso dos Estados Unidos, no entanto, acabou por inviabilizar a formação da OIC ao se negar a ratificar a Carta de Havana, que a instituía. Em lugar de uma agência multilateral espe­cializada da ONU, as negociações sobre as regras e práticas do comércio internacional passaram a ser travadas no âmbito de um acordo provisório que havia ficado pendente na preparação da criação da OIC: o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt). Esse tratado estava previsto para caducar quando a Carta de Havana entrasse em vigor, já que a OIC abarcaria um sistema mais compreensivo de gestão do comércio internacional. Com a inviabilização da OIC, os esforços para formatar e regular o comércio internacional focaram esse tratado sobre tarifas, e não mais a montagem de uma organização multilateral integrada ao Sistema da ONU. O resultado foi a marginalização dos objetivos referentes ao desenvolvimento na negociação, que passou a se concentrar quase exclusivamente na liberação de mercados para os grandes países exportadores – entre os quais se destacavam os Estados Unidos, que emergiram da guerra em condição econômica absolutamente privilegiada – com base nos princípios da “não-discriminação” e dos “benefícios mútuos”.

Ao longo de seu quase meio século de existência, o Gatt abrigou oito rodadas sucessivas e cada vez mais prolongadas de negociação sobre as regras e práticas do comércio internacional. O número de Estados participantes nessas negociações passou de 23 na primeira, a Rodada de Genebra, em 1947, para 128 ao final da última, a Rodada do Uruguai, em 1994. Até esta última, o grande saldo das negociações travadas no âmbito do Gatt foram a redução progressiva de tarifas, sobretudo para produtos manufaturados, e a instituição de mecanismos para a resolução de disputas surgidas entre países signatários quanto à implementação de acordos. Com o apoio diplomático dado pelos países socialistas aos países em desenvolvimento no contexto da Guerra Fria, o avanço do processo de descolonização, a emergência do Movimento dos Países Não-Alinhados e o relativo enfraquecimento da hegemonia dos Estados Unidos, foi possível reintroduzir, ainda que timidamente, temas referentes ao desenvolvimento na agenda das rodadas de negociação realizadas nos anos 1960 e 1970. Mas os países centrais, sob liderança dos Estados Unidos, persistiram em excluir dos acordos do Gatt cláusulas ou medidas que forçassem a liberalização dos próprios mercados em setores tradicionais de comércio nos quais os países em desenvolvimento poderiam ser mais competitivos, nomeadamente os de produtos agrícolas e têxteis. Ademais, a partir dos anos 1980, passaram a recorrer crescentemente à adoção de variadas barreiras não-tarifárias para a proteção de seus mercados, além de mecanismos de retaliação comercial unilateral não cobertos pelo sistema do Gatt.

Dada a duplicidade dessa postura, houve grande resistência dos países em desenvolvimento à proposta de ampliação da agenda de negociações na Rodada do Uruguai, iniciada em 1986, para abarcar novas áreas de comércio em que os países centrais mantêm acentuada vantagem competitiva, destacadamente as de serviços, investimentos e pro­priedade intelectual. A posição assumida pelo Grupo dos Dez, formado pelos principais países em desenvolvimento, sob liderança do Brasil e da Índia, foi bloquear a ampliação da agenda de negociações no Gatt sem um acordo prévio para a eliminação das práticas protecionistas dos países centrais nos setores de produtos agrícolas e têxteis. O impacto combinado do colapso do campo socialista, do bloqueio das experiências na­cional-desenvolvimentistas pela crise da dívida, da ofensiva global da nova agenda de liberalização e da recomposição da hegemonia norte-americana no mundo, no entanto, alterou profundamente a correlação de forças nas negociações da Rodada do Uruguai no início dos anos 1990. A resistência dos países em desenvolvimento se dissipou e as negociações foram concluídas, em 1994, com uma gama de acordos de grande complexidade e abrangência que incluíram tanto as novas áreas de interesse dos países centrais quanto os setores tradicionais de produtos agrícolas e têxteis (como contrapartida, ainda que limitada, à incorporação das novas áreas aos acordos). Nessas bases, foi finalmente oficializada a fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Disputas e impasses na OMC
O Acordo de Fundação da OMC instituiu a Conferência Ministerial, com a participação de todos os países membros, como a principal instância de deliberação da organização, com reuniões a cada dois anos. Desde a criação da OMC já foram realizadas cinco conferências: a de Cingapura em 1996, a de Genebra em 1998, a de Seattle em 1999, a de Doha em 2001 e, por fim, a de Cancún, em setembro de 2003. A Conferência de Cingapura passou em revista a implementação dos acordos que deram origem à OMC e, por insistência dos países centrais, abriu negociações sobre nova ampliação da agenda de liberalização do comércio internacional em áreas de seu interesse: regras de concorrência, investimentos, compras governamentais e facilitação do comércio.

A proposta de ampliação da agenda de liberalização do comércio para os chamados “temas de Cingapura” foi formulada sem que os países centrais, principalmente os Estados Unidos e a União Européia, tivessem implementado as medidas de redução de subsídios, tarifas e cotas nos setores agrícola e têxtil acertadas na conclusão da Rodada do Uruguai. Pior, as práticas protecionistas desses países foram intensificadas após a criação da OMC. O total de subsídios fornecidos aos agricultores dos países da OCDE (isto é, dos países desenvolvidos) passou de 248 bilhões de dólares em 1986 para 318 bilhões de dólares em 2002. Nesse ano, o presidente Bush sancionou nova legislação agrícola nacional ampliando em 70% os subsídios para o setor. No que concerne à indústria têxtil, o acordo firmado para reduzir em 51% as restrições às importações dos países em desenvolvimento pelos países centrais até o ano 2000 e as eliminar por completo até o final de 2004 foi simplesmente ignorado pelos Estados Unidos e pela União Européia. Para agravar, enquanto os demais países foram obrigados a adaptar suas leis, normas e práticas administrativas para assegurar sua conformidade com as obrigações assumidas nos tratados do Gatt e da OMC, o sistema legal e o Congresso norte-americano reafirmaram a prevalência da legislação nacional sobre os compromissos assumidos nesses acordos em caso de conflito entre ambos.

O contexto internacional do final da década de 1990 já destoava bastante do clima de euforia liberal e aclamação da liderança global dos Estados Unidos que marcara seu início. Com o fim do antagonismo mundial-sistêmico da Guerra Fria, afloraram crescentes contenciosos políticos e econômicos entre os antigos parceiros da Aliança Atlântica. Face à crescente opção norte-americana pelo recurso a ações unilaterais em detrimento da negociação de suas posições em fóruns multilaterais, multiplicaram-se movimentos visando consolidar e ampliar as margens de ação autônoma de variados pólos alternativos de poder no sistema internacional. Sob o impacto de sucessivas crises financeiras, o próprio consenso político em torno da nova ortodoxia liberal foi abalado, o que se traduziu em uma escalada de derrotas eleitorais das forças mais abertamente identificadas com sua implementação em diversas regiões do mundo.

A mudança no quadro de forças do sistema internacional repercutiu nas negociações da OMC sobre a regulação do comércio internacional. Os países em desenvolvimento voltaram a se agrupar condicionando qualquer nova ampliação da agenda de acordos à efetiva implementação daqueles já firmados para a abertura dos mercados dos países centrais nos setores agrícola e têxtil. A intransigência dos Estados Unidos e da União Européia neste ponto determinou o fracasso da Conferência Ministerial de Seattle, em 1999, que foi marcada, ainda, por grandes manifestações de rua contra a posição hipócrita dos ”países ricos” e contra a própria OMC. Para contornar esse fracasso, a Conferência Ministerial de Doha, em 2001, deflagrou nova rodada de nego­ciações com o compromisso de garantir a implementação dos acordos já firmados nos setores agrícola e têxtil até a Conferência Ministerial de Cancún, em 2003, para abrir caminho para entendimentos sobre os chamados “temas de Cingapuraa”.

O fracasso das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) na Conferência Ministerial de Cancún voltou a chamar a atenção do mundo para o papel dessa instituição na regulação do comércio internacional. O impasse em Cancún refletiu a acirrada disputa entre os países em desenvolvimento e os países centrais sobre as regras e práticas vigentes (ou a serem tornadas vigentes) no comércio mundial. Para melhor compreender essa disputa de poder e agenda no âmbito da OMC, é necessário situá-la no processo de gênese e transformação do sistema multilateral de comércio nas seis últimas décadas.

O fracasso da OIC
As origens da atual OMC remontam à frustrada tentativa de criação da Organização Internacional do Comércio (OIC) ao término da Segunda Guerra Mundial. Nos marcos dos acordos firmados em Bretton Woods, esta instituição foi concebida para integrar, junto com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird), o tripé de agências do Sistema da ONU responsáveis por estruturar e reger a nova ordem econômica internacional. A preocupação dominante na criação da OIC era consolidar um sistema de regras gerais no comércio internacional que impedisse a reedição do clima de guerra comercial que havia desembocado na própria Segunda Guerra.

Parte importante das regras definidas no Estatuto da OIC, aprovado em 1948, tinha por objetivo promover e garantir a abertura de mercados e a redução de tarifas e outras barreiras comerciais. Coerente com as idéias keynesianas predominantes na época, este objetivo de liberalização comercial estava subordinado a outros, como a promoção do crescimento da renda real e da demanda efetiva a escala mundial, bem como do desenvolvimento econômico (em especial o dos países não-industria­lizados). Vale lembrar que o próprio FMI defendia, então, a adoção de controles sobre o fluxo de capitais para preservar a autonomia da política macroeconômica dos Estados diante de movimentos desestabilizadores de suas moe­das. Ou seja, embora a arquitetura da nova ordem econômica internacional pudesse ser considerada “liberalizante” na esfera comercial, certamente não o era nas esferas monetário-financeira e de política macroeconômica.

As rodadas do Gatt
O Congresso dos Estados Unidos, no entanto, acabou por inviabilizar a formação da OIC ao se negar a ratificar a Carta de Havana, que a instituía. Em lugar de uma agência multilateral espe­cializada da ONU, as negociações sobre as regras e práticas do comércio internacional passaram a ser travadas no âmbito de um acordo provisório que havia ficado pendente na preparação da criação da OIC: o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt). Esse tratado estava previsto para caducar quando a Carta de Havana entrasse em vigor, já que a OIC abarcaria um sistema mais compreensivo de gestão do comércio internacional. Com a inviabilização da OIC, os esforços para formatar e regular o comércio internacional focaram esse tratado sobre tarifas, e não mais a montagem de uma organização multilateral integrada ao Sistema da ONU. O resultado foi a marginalização dos objetivos referentes ao desenvolvimento na negociação, que passou a se concentrar quase exclusivamente na liberação de mercados para os grandes países exportadores – entre os quais se destacavam os Estados Unidos, que emergiram da guerra em condição econômica absolutamente privilegiada – com base nos princípios da “não-discriminação” e dos “benefícios mútuos”.

Ao longo de seu quase meio século de existência, o Gatt abrigou oito rodadas sucessivas e cada vez mais prolongadas de negociação sobre as regras e práticas do comércio internacional. O número de Estados participantes nessas negociações passou de 23 na primeira, a Rodada de Genebra, em 1947, para 128 ao final da última, a Rodada do Uruguai, em 1994. Até esta última, o grande saldo das negociações travadas no âmbito do Gatt foram a redução progressiva de tarifas, sobretudo para produtos manufaturados, e a instituição de mecanismos para a resolução de disputas surgidas entre países signatários quanto à implementação de acordos. Com o apoio diplomático dado pelos países socialistas aos países em desenvolvimento no contexto da Guerra Fria, o avanço do processo de descolonização, a emergência do Movimento dos Países Não-Alinhados e o relativo enfraquecimento da hegemonia dos Estados Unidos, foi possível reintroduzir, ainda que timidamente, temas referentes ao desenvolvimento na agenda das rodadas de negociação realizadas nos anos 1960 e 1970. Mas os países centrais, sob liderança dos Estados Unidos, persistiram em excluir dos acordos do Gatt cláusulas ou medidas que forçassem a liberalização dos próprios mercados em setores tradicionais de comércio nos quais os países em desenvolvimento poderiam ser mais competitivos, nomeadamente os de produtos agrícolas e têxteis. Ademais, a partir dos anos 1980, passaram a recorrer crescentemente à adoção de variadas barreiras não-tarifárias para a proteção de seus mercados, além de mecanismos de retaliação comercial unilateral não cobertos pelo sistema do Gatt.

Dada a duplicidade dessa postura, houve grande resistência dos países em desenvolvimento à proposta de ampliação da agenda de negociações na Rodada do Uruguai, iniciada em 1986, para abarcar novas áreas de comércio em que os países centrais mantêm acentuada vantagem competitiva, destacadamente as de serviços, investimentos e pro­priedade intelectual. A posição assumida pelo Grupo dos Dez, formado pelos principais países em desenvolvimento, sob liderança do Brasil e da Índia, foi bloquear a ampliação da agenda de negociações no Gatt sem um acordo prévio para a eliminação das práticas protecionistas dos países centrais nos setores de produtos agrícolas e têxteis. O impacto combinado do colapso do campo socialista, do bloqueio das experiências na­cional-desenvolvimentistas pela crise da dívida, da ofensiva global da nova agenda de liberalização e da recomposição da hegemonia norte-americana no mundo, no entanto, alterou profundamente a correlação de forças nas negociações da Rodada do Uruguai no início dos anos 1990. A resistência dos países em desenvolvimento se dissipou e as negociações foram concluídas, em 1994, com uma gama de acordos de grande complexidade e abrangência que incluíram tanto as novas áreas de interesse dos países centrais quanto os setores tradicionais de produtos agrícolas e têxteis (como contrapartida, ainda que limitada, à incorporação das novas áreas aos acordos). Nessas bases, foi finalmente oficializada a fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Disputas e impasses na OMC
O Acordo de Fundação da OMC instituiu a Conferência Ministerial, com a participação de todos os países membros, como a principal instância de deliberação da organização, com reuniões a cada dois anos. Desde a criação da OMC já foram realizadas cinco conferências: a de Cingapura em 1996, a de Genebra em 1998, a de Seattle em 1999, a de Doha em 2001 e, por fim, a de Cancún, em setembro de 2003. A Conferência de Cingapura passou em revista a implementação dos acordos que deram origem à OMC e, por insistência dos países centrais, abriu negociações sobre nova ampliação da agenda de liberalização do comércio internacional em áreas de seu interesse: regras de concorrência, investimentos, compras governamentais e facilitação do comércio.

A proposta de ampliação da agenda de liberalização do comércio para os chamados “temas de Cingapura” foi formulada sem que os países centrais, principalmente os Estados Unidos e a União Européia, tivessem implementado as medidas de redução de subsídios, tarifas e cotas nos setores agrícola e têxtil acertadas na conclusão da Rodada do Uruguai. Pior, as práticas protecionistas desses países foram intensificadas após a criação da OMC. O total de subsídios fornecidos aos agricultores dos países da OCDE (isto é, dos países desenvolvidos) passou de 248 bilhões de dólares em 1986 para 318 bilhões de dólares em 2002. Nesse ano, o presidente Bush sancionou nova legislação agrícola nacional ampliando em 70% os subsídios para o setor. No que concerne à indústria têxtil, o acordo firmado para reduzir em 51% as restrições às importações dos países em desenvolvimento pelos países centrais até o ano 2000 e as eliminar por completo até o final de 2004 foi simplesmente ignorado pelos Estados Unidos e pela União Européia. Para agravar, enquanto os demais países foram obrigados a adaptar suas leis, normas e práticas administrativas para assegurar sua conformidade com as obrigações assumidas nos tratados do Gatt e da OMC, o sistema legal e o Congresso norte-americano reafirmaram a prevalência da legislação nacional sobre os compromissos assumidos nesses acordos em caso de conflito entre ambos.

O contexto internacional do final da década de 1990 já destoava bastante do clima de euforia liberal e aclamação da liderança global dos Estados Unidos que marcara seu início. Com o fim do antagonismo mundial-sistêmico da Guerra Fria, afloraram crescentes contenciosos políticos e econômicos entre os antigos parceiros da Aliança Atlântica. Face à crescente opção norte-americana pelo recurso a ações unilaterais em detrimento da negociação de suas posições em fóruns multilaterais, multiplicaram-se movimentos visando consolidar e ampliar as margens de ação autônoma de variados pólos alternativos de poder no sistema internacional. Sob o impacto de sucessivas crises financeiras, o próprio consenso político em torno da nova ortodoxia liberal foi abalado, o que se traduziu em uma escalada de derrotas eleitorais das forças mais abertamente identificadas com sua implementação em diversas regiões do mundo.

A mudança no quadro de forças do sistema internacional repercutiu nas negociações da OMC sobre a regulação do comércio internacional. Os países em desenvolvimento voltaram a se agrupar condicionando qualquer nova ampliação da agenda de acordos à efetiva implementação daqueles já firmados para a abertura dos mercados dos países centrais nos setores agrícola e têxtil. A intransigência dos Estados Unidos e da União Européia neste ponto determinou o fracasso da Conferência Ministerial de Seattle, em 1999, que foi marcada, ainda, por grandes manifestações de rua contra a posição hipócrita dos ”países ricos” e contra a própria OMC. Para contornar esse fracasso, a Conferência Ministerial de Doha, em 2001, deflagrou nova rodada de nego­ciações com o compromisso de garantir a implementação dos acordos já firmados nos setores agrícola e têxtil até a Conferência Ministerial de Cancún, em 2003, para abrir caminho para entendimentos sobre os chamados “temas de Cingapuraa”.

O G-22 e a liderança brasileira
Ao longo dos 22 meses de negociação entre a Conferência de Doha e a de Cancún, os países centrais se mantiveram irredutíveis na posição de não-cumprimento dos acordos de abertura de seus mercados agrícola e têxtil. Como vimos acima, houve, inclusive, um recrudescimento das medidas protecionistas dos Estados Unidos nesse período. Sua ação se voltou para a intimidação e divisão dos países em desenvolvimento, buscando reeditar a estratégia de esvaziamento de sua resistência que havia dado certo na conclusão da Rodada do Uruguai do Gatt. Só que o contexto internacional já era outro. À medida que se aproximava a Conferência de Cancún, a unidade e coesão dos países em desenvolvimento na exigência do cumprimento dos acordos sobre os subsídios e barreiras protecionistas nos setores agrícola e têxtil se tornava cada vez mais robusta.

Uma iniciativa decisiva que frustrou a estratégia de intimidação e divisão adotada pelos países centrais nas negociações da reunião de Doha e na própria Conferência de Cancún foi a formação de uma ampla aliança agrupando os principais produtores agrícolas entre os países em desenvolvimento, o chamado G-22O grupo, na verdade, foi chamado inicialmente de G-16, passando depois para G-20, G-21 e G-22, refletindo a ampliação progressiva de seu número de membros.. A diplomacia brasileira exerceu papel crucial na composição e consolidação desse grupo. Ele foi composto a partir de um núcleo de treze países latino-americanos liderados pelo Brasil e expandido para integrar outras ”potências regionais”, como a África do Sul, a Índia, a China e a Indonésia. Em conjunto, esses países representam mais da metade da população mundial e quase dois terços dos agricultores existentes no planeta. Trata-se, sem dúvida, da mais importante articulação dos países em desenvolvimento para a defesa de seus interesses na regulamentação do comércio internacional desde a criação da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), no âmbito do Sistema da ONU, nos anos 1960.

O impasse de Cancún
Como é sabido, a renitente intransigência dos países centrais no cumprimento dos acordos relativos aos setores agrícola e têxtil e a firmeza da posição negociadora do G-22 nesse ponto geraram um impasse na Conferência de Cancún que acabou determinando seu fracasso. Acertou-se a retomada das negociações em Genebra no final de 2003, mas, sem uma alteração fundamental na postura negocial dos países centrais, as perspectivas para a consolidação de um sistema equilibrado e equânime de comércio internacional a partir da OMC vão permanecer sombrias.

O impasse de Cancún torna o próprio futuro da OMC uma incógnita. Os Estados Unidos parecem dispostos a oficializar o que já praticam: ignorar ou até mesmo abandonar o marco multilateral de regulação do comércio internacional e se concentrar no fechamento de acordos bilaterais ou regionais de comércio que melhor atendam a seus interesses. A União Européia parece estar empenhada em reformar a estrutura da OMC de modo a esvaziar o papel da Conferência Ministerial (com participação paritária de todos os países membros e decisões por consenso) como principal instância de deliberação. Ou seja, pretende que a organização assuma um caráter menos “democrático” e mais “oligárquico”, de forma a ser mais permeável aos interesses e exigências dos países centrais. Para os países em desenvolvimento, a existência de um sistema multilateral de comércio é fundamental para garantir mecanismos de proteção, baseados no direito internacional, contra a ação unilateral das potências que concentram maior poder econômico no mundo. Mas, para tal, esse sistema tem de assegurar o princípio básico da reciprocidade na negociação e implementação de acordos e tratados. Isso, infelizmente, a OMC ainda não conseguiu fazer. Seu futuro depende disso.

Sugestão de leituras
Robert Gilpin, A Economia Política das Relações Internacionais. Brasília, Editora da UnB, 2002.

Reinaldo Gonçalves, Renato Baumann, Luiz Carlos Delorme Prado e Otaviano Canuto, A Nova Economia Internacional – Uma Perspectiva Brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1998.

Renato Baumann (org.), O Brasil e a Economia Global. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1996.

Paul Krugman e Maurice Obstfeld, Economia Interna­cional – Teoria e Política. São Paulo, Makron Books, 1999.

Durval de Noronha, Arbitration in the World Trade Organization. Miami, Legal Observer, 2003.

Luis Fernandes é professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio