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Uma operação duvidosa ocorrida em torno de 1990 desviou a atenção da agenda progressista de redução das horas na jornada de trabalho para a agenda conservadora de ampliação dos anos de vida trabalhando

A discussão que ora ocorre sobre a Previdência é insuficiente e ideológica. Ela se concentra num ponto só, o atuarial, e pretende enfrentar poucos problemas, entre os quais o aumento da expectativa de vida – e portanto a dificuldade de sustentar um aposentado por um período maior que no passado. Essa questão é legítima, mas repito: é insuficiente enfocar apenas isso. Há dois outros aspectos que devem também ser considerados em qualquer abordagem que pretenda resultados duradouros, positivos e justos da Previdência. Um é o desemprego. Outro são os ganhos de produtividade obtidos com o avanço tecnológico. Começarei por estes últimos.

Até o final da década de 1980, era comum pensar na redução da jornada de trabalho que seria permitida pelos progressos tecnológicos. A automação realizava ganhos de produtividade notáveis, os quais poderiam ser repassados para o trabalhador. (Outras possibilidades incluem eles beneficiarem o consumidor, baixando-se o preço dos produtos, ou serem apropriados pelo capital, aumentando-se a margem de lucro. É claro que as opções mais democráticas são as que avantajam o consumidor e o trabalhador.) Contudo, ao começar a década de 1990 esse tema desapareceu das agendas políticas. A iniciativa de François Mitterrand, em seu primeiro mandato presidencial (1981-1988), de reduzir a jornada de 40 horas semanais para 35 não foi levada a termo.

O importante, porém, é que esse tema sumiu da discussão sem que se tenha dito por quê. Ninguém demonstrou, por A mais B, que não dava para reduzir as horas de trabalho por semana. E começou-se a dizer que era preciso aumentar os anos de trabalho por vida. Ou seja, inverteu-se a mão de direção, mas sem explicar por que razões. Penso que é significativo que a inversão de rumo se tenha dado sem uma discussão clara e, além disso, não mais no plano das horas semanais, mas no dos anos. Ou seja, mudou-se a agenda, mas de modo a não deixar traços. Por que não se veio dizer que a automação não permitia a redução da jornada? E isso ainda é mais estranho porque a automação, com seus ganhos de produtividade, foi substituída pela informatização, que aumenta ainda mais tais ganhos.

A ocasião em que se mudou de agenda dá a resposta. Foi no final dos anos 1980 e começo dos 1990, isto é, quando a queda do comunismo deixou vitorioso o capital, que não se sentiu mais obrigado politicamente a fazer concessões ao trabalho. Pouco importa, aqui, a avaliação negativa que tenhamos do comunismo, um regime ditatorial que faliu por suas contradições internas; o fato é que, no equilíbrio de forças políticas, sua existência forçava o capitalismo a ceder às reivindicações trabalhistas mais do que fez depois. E é provavelmente por isso que se passou de uma agenda da redução do trabalho para uma do aumento de sua duração, sem nenhuma discussão sobre as razões dessa mesma mudança. A omissão desse debate faz suspeitar que houvesse um caráter ideológico em tal operação.

E a questão é ainda mais ideológica porque no debate contemporâneo dois problemas sérios, talvez os mais sérios de todos, são apresentados em separado. Um é a Previdência Social e seu déficit, para o qual a única solução aventada é o aumento da contribuição e do tempo de trabalho. É um problema que afeta seriamente as finanças do Estado. O outro afeta gravemente a sociedade e o próprio Estado: é o desemprego, para o qual se sugere uma flexibilização dos contratos, acarretando, entre outras coisas, uma redução dos valores a serem pagos à mesma Previdência. O fato de considerá-los em separado faz com que certas sugestões para resolver um prejudiquem o outro. Temos assim dois enormes problemas, quando poderíamos ter uma solução, se os considerássemos em conjunto.

É quase óbvio que, se temos um desemprego estrutural, e não conjuntural, que permanece estável há anos em patamares altos, nos mais diversos países do mundo, a solução mais simples seria a repartição do trabalho existente entre todos, empregados e desempregados. É evidente que isso implicaria uma redução das horas de trabalho e também, é claro, dos salários. Mas é razoável supor que essa baixa dos salários não precisaria ser tão grande quanto a diminuição do tempo trabalhado. Ou seja, imaginemos que num primeiro tempo, para absorvermos, digamos, 10% de desempregados num mercado em que os 90% de assalariados trabalham 40 horas por semana, reduzíssemos a carga horária para 36 horas semanais e o salário em cerca de 10%. Há vários fatores, no entanto, que atenuariam ou mesmo dispensariam essa redução no valor percebido, numa breve escala de tempo:

1) o aumento do número de assalariados, com renda garantida, aumentará também o consumo e, portanto, as empresas terão como pagar mais a seus trabalhadores, novos ou antigos;

2) serão reduzidos os gastos com auxílios a desempregados, cestas básicas e mesmo programas sociais de apoio aos carentes;

3) a sociedade e o Estado gastarão bem menos do que gastam hoje em segurança pública e privada, em repressão a crimes ou em perdas causadas por eles, ou ainda com questões como a má saúde e a desnutrição, que decorrem em larga medida da exclusão social causada por um desemprego perpétuo no qual se encontra parte da população;

4) a produtividade por hora aumentará, porque as pessoas trabalharão mais descansadas; há uma fadiga que vai ocorrendo ao longo do dia que faz a oitava hora trabalhada render menos que a segunda ou a terceira.

Assim, uma eventual e absolutamente compreensível resistência dos atuais assalariados a um projeto desses, porque perderiam renda (embora não mais do que o correspondente às horas que deixariam de trabalhar), seria superada em pouco tempo – no espaço de alguns anos, se tanto, os salários poderiam chegar ao patamar anterior e mesmo ultrapassá-lo. Teríamos um desenvolvimento econômico mais sólido, mais sustentado socialmente, porque o grau de descontentamento diminuiria enormemente na sociedade.

É óbvio que tudo isso precisa ser aprimorado, mas mostra como é plausível uma redução das horas de trabalho e do desemprego, ao mesmo tempo. A própria Previdência Social, conseqüentemente, arrecadará mais para as aposentadorias e precisará de menos dinheiro para gastos com saúde – sem contar a redução dos gastos em assistência social, que também oneram o Estado. Isso liberará as finanças públicas para destinos mais nobres, quer dizer, em vez de terem de sanar as carências, o que falta (saúde, comida etc.), poderão mais e mais ser destinadas a construir algo positivo, como educação, boa saúde, beleza.

Não nego que a questão da expectativa de vida continuará presente. Ajustes atuariais ainda serão necessários. Mas temos de deslocar o centro do enfoque. O problema crucial não está aí. Está em como usar os ganhos de produtividade para melhorar a condição de vida e, em especial, para enfrentar o desemprego. O agrônomo René Dumont, quando foi o primeiro candidato pelos Verdes à Presidência da França, em 1974, disse que, se seus compatriotas aceitassem – naquela época – o nível de vida de 1940, que não era nada ruim, poderiam trabalhar três dias por semana, seis horas por dia, dos 25 aos 40 anos. Isso dá um total de menos de 15 mil horas de trabalho por vida. É claro que ninguém pensaria em voltar atrás na qualidade de vida – mas é razoável perguntar até que ponto queremos avançar e se certos ganhos em termos de qualidade não geram perdas, por outro lado. Ganhar mais muitas vezes vem junto com mais trânsito, mais problemas de saúde, mais estresse. O que se ganha no salário se perde no médico e, entre nós, com a segurança privada. Menos desemprego significará menos carros a blindar. O problema é que a própria discussão está blindada, em termos que são sempre os mesmos. O que proponho, então, é mudar a agenda da discussão. Estamos demasiado pautados por uma agenda que nos é vendida a partir de uma operação ideológica duvidosa, que ocorreu em torno de 1990 e desviou a atenção da agenda progressista de redução das horas, pelo menos do trabalho que não realiza o ser humano, para a agenda conservadora de ampliação dos anos de vida trabalhando. Podemos e devemos mudar esta agenda.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo.