Internacional

Mudanças estão indicadas nas palavras e nos gestos simbólicos de Lula em episódios sobre a Venezuela e a Alca

O primeiro indício de mudança na política externa surgiu antes mesmo da constituição do novo governo. Em dezembro de 2002, os jornais brasileiros veiculavam a informação insólita: emissário pessoal de Lula encontra-se em Caracas com o presidente Hugo Chávez, a quem expressa a viva preocupação do presidente eleito com os rumos da crise política que sacode o país vizinho e seu empenho em contribuir, na medida do possível, para encontrar uma solução pacífica para o conflito. Tendo conversado também com outros membros do governo venezuelano, em sua rápida visita o emissário brasileiro reuniu-se, ainda, com o secretário-geral da OEA, o ex-presidente colombiano César Gavíria, e com figuras expressivas da oposição. Os desdobramentos dessa iniciativa são conhecidos: a notícia de que a Petrobras enviaria um navio-tanque à Venezuela para atenuar os efeitos do desabastecimento de gasolina que paralisava sua economia naquele momento; a reação irada de setores radicalizados da oposição, que passaram a denunciar a ingerência indébita nos assuntos internos do país; pouco depois, a proposta de criação do Grupo de Amigos da Venezuela, para auxiliar na mediação do conflito, e a manifestação inicial contrafeita do governo norte-americano, que acaba por encampar a idéia, integrando-se ao grupo, ao lado de Brasil, Chile, México, Portugal e Espanha.

Estranho nesse episódio não era apenas a disposição corajosa (alguns diriam temerária) de envolver-se em um conflito de tal intensidade, ciente de que ao fazê-lo frustrava as expectativas dos grupos favorecidos pela ostensiva simpatia do governo dos Estados Unidos. Sob certo aspecto, mais estranho ainda era agir no plano internacional dessa forma, por meio de um ator pouco convencional: não um diplomata, não um homem de negócios, mas um dirigente partidário, intelectual com longo passado de militância na esquerda.

Duplo sinal, pois. Que logo seria confirmado por outros, marcados igualmente por forte simbolismo. Como a nomeação para o segundo cargo mais importante no Ministério das Relações Exteriores de um embaixador afastado de suas funções no governo anterior pelas reiteradas declarações públicas contra a Alca. Ou como a decisão de atribuir a representação diplomática do Brasil em Londres ao ex-diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), embaixador José Maurício Bustani, definido como persona non grata pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em virtude dos constrangimentos criados por sua intransigência face às pressões do governo norte-americano para que fosse removido do comando daquele organismo.

Mas o que deixava patente para o público interno e externo que algo de novo estava a se desenhar na política externa brasileira eram as palavras e os gestos do presidente Lula. Convém relembrar: a escolha nada casual da Argentina como primeiro país a visitar depois da consagração de sua vitória nas urnas; a ênfase posta, nos pronunciamentos que fez nessa e em ocasiões subseqüentes, no imperativo da integração sul-americana e na reconstrução do Mercosul; o discurso eletrizante que fez no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e o papel que desempenhou, nos dias seguintes, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, ao falar, com a autoridade de seu mandato e de sua história de vida, do problema da fome no auditório dos abastados.

O sentido geral desses atos, significativos em si mesmos, esclarecia-se nas exposições feitas, desde o período de transição de governos, pelos formuladores daquela política, com destaque para o ministro das Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim, e o assessor especial de Relações Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, que foi visto em ação na abertura deste artigo. Como didaticamente explicavam, a novidade na política externa do governo Lula não consistia na eleição de objetivos explícitos radicalmente distintos dos que prevaleciam até então. No plano do discurso, pareceria haver continuidade sensível entre os dois governos; mas tal aparência não deveria alimentar equívocos: a prática diplomática seria completamente diversa. Ela acentuaria algumas mudanças já esboçadas timidamente no final do governo passado, como a atribuição de papel privilegiado à América do Sul no traçado da estratégia de inserção internacional do Brasil, e traria para o topo da agenda algumas prioridades novas, como o fortalecimento político-institucional do Mercosul e a criação de mecanismos financeiros hábeis para a implementação das políticas de integração regional – nesse sentido, a menção, que aparece em entrevista do futuro assessor especial da Presidência da República, a uma "espécie de Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para o Mercosul" merece destaque"1. Mas as diferenças fundamentais não estariam aí: elas seriam expressas pela ênfase nova nos aspectos estritamente políticos da conduta diplomática, pela defesa mais incisiva dos interesses nacionais nos fóruns multilaterais e pela disposição de traduzir em atos as intenções proclamadas no discurso da diplomacia.

Curiosamente, no entender de alguns a relação entre as posturas dos dois governos no âmbito da política externa seria exatamente inversa ao que se expôs até aqui: diferenças no discurso da política; identidade nas práticas. Nas palavras de um observador qualificado, "atendidas algumas ênfases conceituais e a defesa afirmada da soberania nacional, a política externa do governo que inicia seu termo em janeiro de 2003 não destoará, substancialmente, da diplomacia conduzida de maneira bastante profissional pelo Itamaraty no período recente, conformando, aliás, uma concordância de princípio com a tradicional ‘diplomacia do desenvolvimento’ impulsionada pelo Brasil desde longos anos"2.

Cabe, então, indagar: continuidade ou mudança? Não há como responder de forma expedita a essa pergunta, pois – como na vida – em política esses elementos não se contrapõem. A ação política não é jamais igual a si mesma, posto que se exerce sobre um mundo em constante variação. Sendo assim, como interpretar as diferenças observadas? Mera adaptação às novas circunstâncias ou genuína reorientação?

Para responder a essa pergunta devemos registrar, de saída, este fato insólito em nosso universo político: dadas as suas raízes, sua orientação e seus vínculos com a sociedade, o PT desenvolveu ao longo do tempo uma perspectiva própria sobre o papel do Brasil no cenário internacional. Expressa em um sem-número de documentos partidários, artigos e análises, essa perspectiva traduziu-se em uma crítica severa, ainda que nuançada, da orientação externa adotada pelos governos que se sucederam no país desde o início dos anos 1990 e na defesa de uma política externa ativa, guiada pelo princípio da inserção soberana no mundo e subordinada a um projeto democraticamente construído de Nação. Envolvendo uma revisão em regra das negociações em curso – com destaque para a Alca –, tal política teria como prioridade maior a unidade sul-americana, condição sine qua non de uma estratégia de inserção internacional autônoma. Mas a política externa de um país como o Brasil não poderia ficar adstrita aos confins do continente: para afirmar sua individualidade própria, até mesmo nesse espaço, o Brasil precisaria estabelecer alianças fortes com países que ocupam no mundo, ou tendem a ocupar, lugares semelhantes ao seu, como a Índia, a China, a Rússia e a África do Sul.

A estreita conexão entre a perspectiva elaborada no âmbito partidário e as tomadas de posição que vêm marcando a política externa no governo Lula é bastante visível. Fica patente, por exemplo, na desenvoltura com que a diplomacia brasileira se movimentou na crise do Iraque, quando foi além da defesa protocolar da busca de saídas pacíficas para o conflito, colocando-se claramente ao lado dos países que rejeitavam o recurso à ação militar sem o aval do Conselho de Segurança da ONU. Transparece também na decisão de acionar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – instituição que, por suas dimensões e pelo papel que vem desempenhando desde sua criação, meio século atrás, não tem similar no continente americano – no financiamento de projetos na área de comércio exterior e na infra-estrutura em países vizinhos, bem como na sugestão feita por Lula de que seja criado um organismo semelhante ao BNDES para a América Latina3. Reflete-se, ainda, nos esforços desenvolvidos pelo governo brasileiro no sentido de aprofundar e ampliar o Mercosul, mediante aceleração dos entendimentos com vistas ao acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina das Nações, passo decisivo no caminho da desejada integração sul-americana.

Contudo, seria difícil entender a política externa do novo governo se não levássemos em conta um elemento apenas tangenciado na exposição precedente. Referimo-nos ao debate sobre os rumos da política externa no seio do Itamaraty e à incorporação desse tema na agenda da política nacional. Não poderemos nos estender sobre esse assunto, mas devemos mencionar dois de seus aspectos essenciais.

O primeiro diz respeito à reformulação ocorrida no discurso da política externa brasileira na primeira metade dos anos 1990. Ela se tornava imperativa pelos efeitos que a derrocada do bloco soviético produzia no sistema internacional. Ao contrário do que ocorreu em alguns países, onde a política externa foi palco de reviravoltas espetaculares, no Brasil prevaleceu o esforço de adaptar-se às novas realidades criadas pelas mudanças em curso na economia mundial – o tema da globalização – e pelo fim da Guerra Fria, sem rompimento declarado com sua tradição diplomática, em que tinha lugar de destaque o valor da autonomia e ao princípio do universalismo. Já esboçado no final do governo Sarney, esse processo de reformulação estava concluído cinco anos depois, quando Fernando Henrique Cardoso assumia a Presidência do Brasil3. Conhecemos a crítica que o PT fazia da orientação dele resultante. Cabe agregar este dado: embora expressasse um amplo consenso, a referida orientação não era igualmente abraçada por todos os segmentos da diplomacia brasileira. Havia, naturalmente, a inquietação dos mais jovens. Mas, juntamente com ela, a palavra mais ou menos dissonante de vários diplomatas graduados. Um deles, já referido neste artigo, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, externou publicamente com tal insistência suas discordâncias que acabou sofrendo uma punição drástica. Tudo isso deixa entrever um aspecto importante da história que estamos a retraçar: o amadurecimento da reflexão sobre a política internacional no PT e a evolução do debate interno no Itamaraty são dois processos que se interligam de maneira sutil por inúmeros laços. Na fase de transição entre os governos, quando o PT se prepara para chamar a si as decisões sobre os destinos do país, a convergência entre os formuladores da política internacional do partido e setores do Itamaraty se faz com naturalidade.

O segundo refere-se à importância que o tema da Alca teve no desenho da política externa brasileira nos anos 1990 e na ampliação do conflito em torno dela nos últimos anos. Como se sabe, a diplomacia brasileira sempre encarou com muita reserva a proposta norte-americana da "área de livre comércio" hemisférica. Tendo predominado entre os formuladores dessa política a avaliação de que seria irrealista negar-se, pura e simplesmente, a participar do processo negociador, estes adotaram uma linha de ação marcadamente defensiva: insistência na negociação em bloco, exigência de concessão de mandato negociador ao presidente pelo Congresso dos Estados Unidos, ênfase na discussão de temas sensíveis para o interlocutor – abertura do mercado norte-americano a produtos tradicionais com grande peso na pauta de exportações do país (sucos cítricos, produtos siderúrgicos etc), além de mudanças na política de subsídios agrícolas e na legislação antidumping, origem de fortes barreiras não-tarifárias. O objetivo mais ou menos óbvio dessa estratégia era ganhar tempo, na expectativa de que, no final da linha, fosse possível obter concessões expressivas o bastante para tornar aceitáveis no país os termos da negociação. Nos primeiros momentos, ele pareceu bem-sucedido, mas, à medida que as etapas do cronograma iam sendo vencidas e crescia na sociedade brasileira a percepção dos impactos distributivos da negociação4 , os limites desse plano de ação se tornavam a cada dia mais nítidos. Nesse contexto, a intensificação das tensões no corpo diplomático não surpreende. Não se estranha, tampouco, o fato de que, para além dos círculos empresariais diretamente concernidos, o tema da Alca tenha mobilizado inúmeros atores político-sociais e animado um vasto movimento de opinião – uma consulta popular não-oficial no segundo semestre de 2002 contabilizou cerca de 10 milhões de votos em repúdio ao acordo.

As negociações da Alca constituem um teste crucial para Lula, e a consideração delas nos devolve à questão original sobre a continuidade e a mudança na política externa de seu governo. O fato de ter-lhes dado seguimento, ao invés de denunciá-las – como gostariam os militantes do movimento contra a Alca e parecia sugerir seu próprio discurso em muitos momentos –, pouco nos informa a esse respeito. Se quisermos formar um juízo mais fino sobre o assunto precisamos examiná-lo com um mínimo de atenção.

O problema com que se defrontava o governo Lula surgia da conjugação de dois elementos: 1) a disposição realista de evitar conflitos desnecessários, buscando, com altivez, definir nos melhores termos possíveis suas relações políticas com a potência hegemônica; 2) o reconhecimento de que as virtualidades da estratégia negociadora passada estavam inteiramente exauridas. Além do simples decurso do tempo, combinavam-se, na produção desse resultado, dois fatores que escapavam a qualquer controle: a) a legislação aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos, que limitava drasticamente o mandato negociador concedido ao Executivo, condicionando os avanços nas matérias de interesse crítico para o país ao jogo de pressões no Legislativo; b) a decisão anunciada pelas autoridades comerciais daquele país de fatiar a negociação, apresentando "ofertas" diferenciadas a seus interlocutores, e transferir para o fórum da OMC a negociação dos itens mais sensíveis.

Diante desse quadro, a insistência na estratégia defensiva apontava para dois cenários, ambos igualmente sombrios: o impasse ou a aceitação do núcleo duro da agenda norte-americana em troca de concessões menores que dessem alguma satisfação aos produtores locais de bens de baixo valor agregado. Ou os dois cenários, sucessivamente, o que em vários sentidos acabaria sendo ainda pior.

Para escapar desse dilema mais que provável, o governo Lula fez alguns movimentos precisos. Em primeiro lugar, arejou o debate público sobre a Alca, rompendo com a ficção de que se trataria de um acordo eminentemente "comercial", ao enfatizar as questões relativas a serviços, proteção ao investimento estrangeiro e compras governamentais e ao estabelecer como meta para seus negociadores a preservação (ou mesmo a ampliação) das condições para a implementação de políticas de desenvolvimento econômico e social. Em segundo lugar, tornou explícita a interligação entre os múltiplos processos de negociação em curso simultaneamente.

Uma palavra rápida será o bastante para explicitar o sentido da operação. Vimos que os Estados Unidos resistem a idéia de negociar na Alca os temas que poderiam tornar um pouco menos assimétrica aí a barganha possível. Trata-se, então, de registrar sem estridência esse fato, e agir desabusadamente de forma recíproca. Na verdade, a arquitetura proposta pela diplomacia brasileira é mais complexa. Ela se desdobra em três linhas: negociações visando a um acordo de livre comércio entre o Mercosul e os Estados Unidos, que envolveria temas como acesso a mercados de bens agrícolas e industriais, além da liberalização de serviços e investimentos em segmentos definidos; a discussão na Rodada de Doha dos temas mais polêmicos, como regras sobre serviços, investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual, subsídios, medidas antidumping, direitos compensatórios e política de concorrência. Nesse desenho, a Alca seria convertida em um "acordo-quadro", um arcabouço legal para facilitar acordos bilaterais sobre comércio no hemisfério: tal a substância da "Alca light", como a proposta passou a ser conhecida4.

Os atrativos dessa fórmula para o Brasil e seus sócios são evidentes. Ela abre espaço para negociações substantivas em áreas de acesso a mercados entre o Mercosul e os EUA sem a pressão artificial de um calendário adrede definido, ao mesmo tempo em que desloca a negociação dos itens mais espinhosos para um fórum em que as assimetrias ficam atenuadas, pelo número e diversidade maior de participantes do processo negociador e pela concentração menor de poder entre eles5.

O significado desse deslocamento está claro, hoje, quando Brasil, Índia e África do Sul intervêm na reunião interministerial da OMC, em Cancún, com um documento no qual rejeitam as ofertas apresentadas conjuntamente pelos Estados Unidos e pela União Européia, definindo-as como obstáculos incontornáveis ao avanço nas negociações da Rodada de Doha. Primeira manifestação diplomática mais eloqüente do Grupo dos Três – coalizão criada na reunião de chanceleres realizada em Brasília, no início de junho, com o objetivo de estreitar a cooperação entre os três países, unificar sua atuação e fortalecer sua posição conjunta nos foros internacionais –, o documento recebeu o apoio de mais dezesseis países, entre eles, a China, recém-admitida na OMC.

E fica mais transparente ainda quando pensamos no que pode representar a entrada no jogo de um "parceiro" como a Rússia, em fase avançada de entendimentos com vistas a seu ingresso na organização.

Ora, por esses mesmos motivos a proposta brasileira está fadada a esbarrar em sérias resistências, que aliás já vêm se manifestando6. Para os Estados Unidos, remeter à OMC a discussão dos temas vitais de sua agenda positiva é o mesmo que abdicar da pretensão, inerente ao projeto de Alca, de estender a linha de exclusão da Doutrina Monroe ao campo das relações econômicas internacionais.

O cenário do impasse, portanto, não está excluído. Mas, caso ele venha a se confirmar, não terá a mesma figura. Porque seu objeto será outro, e porque o ônus da intransigência pesará sobre o outro lado.

O melhor, naturalmente, seria ver acolhida a sensatez da proposta, e poder consolidar entre as partes um relacionamento político maduro, fundado no respeito mútuo e na busca de benefícios compartilhados.

Este é o desejo manifesto do governo brasileiro, e motivos não faltam para que seja sincero. Contudo, na atmosfera crispada em que nos encontramos no presente, sua realização é bastante incerta. Seja como for, na negociação da Alca a política externa do governo Lula conhecerá seu momento de verdade.

Ao fim do caminho, podemos dar uma resposta cabal à questão formulada na abertura deste artigo: com o governo Lula, a política exterior do Brasil tomou um novo rumo. Haverá condições de mantê-lo? Esse é um novo problema, que não depende exclusivamente da vontade dos governantes, mas de sua capacidade de vencer os grandes desafios internos e externos com que, desde já, estão confrontados.

Sebastião C. Velasco e Cruz é professor de ciência política da Unicamp e do Programa San Tiago Dantas de Relações Internacionais Unesp/Unicamp/PUC-SP