Nacional

O atual processo de descredenciamento das agências reguladoras, que só interessa aos agentes econômicos, deve ser enfrentado com políticas de regulação consistentes, abrangentes e homogêneas, a fim de que as instituições possam ser fortalecidas

Nos últimos oito anos, tem-se salientado os temas agências reguladoras e regulação econômica, como decorrência do processo de privatização de empresas estatais, iniciado em 1996.

Como ocorreu em outros países latino-americanos, em especial na Argentina1, a ampliação das possibilidades de concessão de serviços públicos à iniciativa privada gerou a imediata necessidade de reformulação do exercício da função reguladora estatal. Não mais cabendo ao Estado encarregar-se diretamente da prestação de serviços, ou por meio de empresas de sua propriedade, tornava-se essencial prevenir e corrigir, por meio da regulação, as falhas do mercado, exercendo-se, ainda, a fiscalização sobre os serviços públicos prestados pelas empresas privadas nos setores de telecomunicações, energia, transportes e outros, além de submeter as empresas do setor de petróleo e combustíveis a controles até então inexistentes.

Independência e mecanismos de controle

Um dos fatores mais relevantes para a criação de agências reguladoras dotadas de graus de independência é, segundo Majone (1999), “a fé na força dos conhecimentos e experiências específicos como motor da melhoria social”. De acor­do com esse autor, a especificidade técnica requerida pela função regulatória, que não é detida nem pelos legisladores, nem pelos tribunais, nem pelos burocratas tradicionais, sempre foi uma fonte importante de legitimidade para as agências, atendendo de forma mais adequada ao “imperativo funcional” da espe­­cialização em troca de um maior grau de autonomia frente ao poder político e à necessidade de assegurar a “continuidade das políticas” nos setores regulados.

A independência regulatória não é absoluta. O arcabouço constitucional pode impor limites no grau de discri­cionariedade, tanto dos entes políticos centralizados quanto dos descentralizados. A independência regulatória é constrangida pelo fato concreto de que aqueles comprometidos com funções regulatórias precisam interagir com mercados, atores políticos e sociais.

A regulação afeta muitos atores no mercado e na sociedade. Se os players – as firmas estabelecidas, as novas entrantes, os empregados, os acionistas, consumidores, o governo, cidadãos etc. – agem racionalmente, tentarão influenciar o processo regulatório com vistas à satisfação de interesses próprios. Cada um desses interesses é legítimo e as tentativas, por parte de cada grupo, de promovê-los por meio do processo regulatório não são, necessariamente, impróprias. A dificuldade, portanto, surge quando o sistema regulatório é influenciado em uma forma não transparente, que reduz o bem-estar da sociedade e injustamente privilegia interesses particulares. A independência da agência reguladora visa assegurar condições para a imparcialidade e neutralidade no exercício dos poderes regulatórios. Porém, ela pode ser provida por meio de distintos modelos institucionais.

Em alguns casos, são constituídas unidades regulatórias identificáveis dentro dos ministérios, em que a regulação ainda integra uma função ministerial, como é o caso, no Brasil, do Departamento de Aviação Civil do Comando da Aeronáutica, órgão do Ministério da Defesa que exerce, diretamente, a regulação do setor de transporte aéreo.

Em outros, ela é obtida por intermédio de organismos colegiados independentes. Estes são criados separados do governo, para fornecer uma visão externa ao ministro que retém a responsabilidade e os poderes executivos da regulação. Esse modelo é mais comum na área da saúde, em que grupos de especialistas são constituídos para prover assessoramento técnico ao ministério na regulação da área.

Outra forma de instituição regulatória é um ente executivo separado do governo central, mas sujeito a poderes de intervenção ministerial – a agência ministerial, ou, no caso brasileiro, a autarquia. Os governos referem-se a tais entes como autônomos, mas essa autonomia é limitada pelo grau de sujeição a regras gerais ou interferências em seu processo decisório, ou quando seus dirigentes podem ser livremente exonerados.

Quando o escopo para a intervenção ministerial é removido, ou restringido à provisão de consulta ou direção em matérias não-econômicas, então o órgão regulador é geralmente considerado um ente regulatório independente. Em alguns casos, como na Itália e algumas agências nos EUA, a independência pode significar que o ente se reporta diretamente ao Parlamento, sem passar pelo governo. Obviamente, as entidades reguladoras nunca são completamente independentes, estando, de forma variada, sujeitas às legislaturas, governos, ao Judiciário e ao público.

A proliferação de organismos regulatórios especializados, separados, indica que o controle ministerial de funções regulatórias tem sido grandemente reduzido e, em muitos casos, eliminado. Em substituição a esse tipo de controle, tem avançado a instituição de controles pelo Legislativo, notadamente por meio da criação de comissões especiais de supervisão, a ponto de as disputas entre o Poder Executivo e o Legislativo pelo controle das agências adquirirem, em alguns países, grande importância. Segundo Majone, esse movimento evidencia o fracasso da regulação por meio da propriedade estatal e a adoção de um modo alternativo de controle dos serviços públicos e outros setores, que são deixados em mãos privadas “mas sujeitos a regras desenvolvidas e aplicadas por agências especializadas”, que operam fora da linha de controle dos ministérios do governo central (Majone, 1999).

A independência das agências reguladoras tem como justificativa assegurar que não sofrerão, por meio do controle político, influências ou pressões dos setores por elas regulados e fiscalizados que possam contrariar o atendimento do interesse público e dos usuários de serviços em suas áreas de atuação. Essa concepção é aplicada em alguns países, como EUA e Reino Unido, que também adotam agências com existência autônoma em relação aos órgãos formuladores de políticas.

Estabelecer independência levanta uma série de questões. Se, por um lado, a independência implica processo de seleção e nomeação diferenciado para os quadros dirigentes, a garantia e duração dos mandatos, fixação de condições de recondução e exoneração de dirigentes, provisão de recursos suficientes para a missão e restrições ao exercício de atividades de interesse pessoal, por outro exige transparência de procedimentos e garantias para o devido processo no exame dos casos e, obviamente, tornando as decisões finais dos reguladores sujeitas somente à revisão judicial.

A independência regulatória, contudo, não é uma panacéia para os desafios da estrutura. Estruturas regulató­rias independentes têm potenciais e inerentes desvantagens. Primeiro, o novo organismo pode ser visto como um “apêndice” ministerial. Essa percepção é, muitas vezes, relacionada com a distância entre o órgão regulador e o encarregado da função central de formulação de política. O distanciamento em relação ao Poder Executivo pode dar origem à negligência da autoridade do regulador para com outros fortes atores políticos do Executivo ou do Legislativo. Por último, ela pode reduzir a confiança na força da entidade e na significância de seu trabalho. A ausência de confiança do mercado na instituição, cujo propósito é sobrepujar as deficiências do mercado, por sua vez, reduz sua capacidade de supervisionar e regular os mercados efetivamente.

Em segundo lugar, sendo menor e mais focalizada que um ministério, a instituição regulatória independente pode ser mais vulnerável à captura. Isso pode ser uma questão de percepção, mais do que de realidade, mas, em relação à captura regulatória, a mera percepção de vulnerabilidade, muitas vezes, é suficiente para reduzir a confiança na estrutura.

Uma terceira fraqueza de estruturas regulatórias independentes é, paradoxalmente, relacionada a sua força. Há a possibilidade de uma agência independente tornar-se tão forte, ou “tão independente”, que venha a se comportar quase como um poder dentro do Estado. Com efeito, uma entidade independente pode ir além do papel visado para ela. Um exemplo é o Canadá, onde o grau de independência de muitos reguladores tem sido progressivamente reduzido e/ou restringido por medidas de controle social e político.

Ademais, há riscos adicionais associados com reguladores independentes, que podem reduzir a qualidade regulatória no longo prazo em setores de infra-estrutura vitais:

- A legitimidade democrática pode ser sacrificada – independência em excesso é inerentemente incoerente com o conceito de responsabilização e precisa ser balanceada com estes mecanismos: supervisão executiva, requerimentos de procedimento estrito, obrigação de prestar contas, consulta pública e revisão judicial substantiva.

- Reguladores independentes podem atrasar mudanças estruturais – o que resultaria em perdas de ganhos potenciais para os consumidores.

- A coerência de políticas no conjunto do governo pode ser reduzida – reguladores independentes podem contribuir para a inconsistência entre agências e órgãos do governo no exercício de políticas públicas, em particular no caso de sua interação com as autoridades de defesa da concorrência, por exemplo.

A experiência em vários países da OCDE indica que o desenvolvimento de reguladores independentes pode ser balanceado por mecanismos mais eficientes de responsabilização (accountability). O desafio para os arquitetos de instituições regulatórias tem sido fazer com que o sistema regulatório seja simultaneamente responsivo a cada um dos grupos sociais de interesse sem comprometer a independência operacional dos reguladores. Basicamente, a responsabilização do processo regulatório pode ser conseguida por meio de mecanismos relacionados a cada um dos poderes do Estado.

Constituir um regulador independente requer que o papel de cada agente público – reguladores, ministros e tribunais – seja definido ex ante, da mesma forma que o das autoridades de defesa da concorrência. Definir os respectivos papéis levanta diversas questões políticas e de desenho institucional, particularmente como o poder regulatório vai ser controlado. Em muitos casos, os entes regulatórios podem exercer, em certos limites, funções executivas, legislativas e judiciárias. Uma tendência, em muitos países, é aumentar a participação do Judiciário na revisão das decisões.

A independência pode criar desafios sistêmicos como o fato de que reguladores independentes não podem nunca ser completamente independentes do processo político: eles devem operar sob a autoridade de leis e regimes políticos que podem ser alterados por legisladores eleitos, as cortes, a opinião pública e, óbvio, indiretamente pelo governo e seus ministros. Finalmente, é necessário que as agências estejam sujeitas à supervisão ou fiscalização do Parlamento.

Segundo Majone (1999), a legitimidade das instituições depende também de sua capacidade de gerar e manter a crença de que são as mais apropriadas para as funções a elas confiadas. Alerta esse autor que, no caso das agências reguladoras, os critérios relevantes da legitimidade substantiva são a consistência em matéria de políticas, os conhecimentos e experiências específicos e a habilidade de solucionar problemas, além de sua capacidade de proteger interesses difusos, demonstrar profissionalismo e evidenciar uma definição clara de objetivos e limites de atuação.

Gênese e situação das agências

As agências reguladoras surgem no Brasil como conseqüência direta do processo de privatização de empresas estatais. Com o fim dos monopólios estatais nas áreas de energia, telecomunicações e gás canalizado e a flexibilização do monopólio do petróleo, atividades econômicas e serviços públicos prestados até então diretamente pelos entes estatais, por meio de empresas públicas ou sociedades de economia mista, passaram a ser explorados por entidades privadas, sujeitas integralmente à dinâmica do mercado. Assim, foi necessário estruturar um aparelho regulador e fiscalizador que, em cada um dos ramos de atividade, pudesse assegurar a capacidade de atuação do poder público.

O entendimento que norteou a reforma do aparelho do Estado empreendida pelo governo FHC, durante a qual foram criadas as agências reguladoras existentes, é que na execução das atividades do Estado é necessário distinguir três tipos de instituição:

- As secretarias formuladoras de políticas públicas, que, no núcleo estratégico do Estado, em conjunto com os ministros e o chefe do governo, participam das decisões estratégicas do governo.

- As agências executivas, que executam as políticas definidas pelo governo.

- As agências reguladoras, mais autônomas, que buscam definir os preços que seriam de mercado, na presença de monopólio natural ou quase natural. As agências reguladoras deveriam ser mais autônomas do que as executivas porque não existem para realizar políticas do governo, mas para executar uma função mais permanente, que é substituir-se aos mercados competitivos2.

Pedro César Lima de Farias (2002) alerta para o fato de que, na formulação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que orientou a reforma administrativa do governo FHC, as agências reguladoras não foram merecedoras de maior elaboração, uma vez que, na época, o debate sobre tais entidades era ainda incipiente. É claro, no entanto, que as agências reguladoras, como autarquias, pertencem a esse segundo tipo, ao qual pertencem todas as autarquias típicas, entre elas também as agências executivas. Ao longo de 1995, com o desdobramento dos debates sobre a privatização das concessionárias de energia e telecomunicações, tornou-se mais clara a relação entre a “reforma do aparelho do Estado” e a “reforma regulatória” que veio a se desenvolver.

O quadro abaixo relaciona as agências reguladoras já constituídas e suas respectivas leis básicas.

Além das agências já instituídas, tramitam no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.491, de 1999, que propõe a criação da Agência Nacional de Serviços de Correios, e o 3.846, de 2000, que propõe a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), vinculada ao Ministério da Defesa. Há também demanda para a criação da Agência Nacional de Defesa da Concorrência e do Consumidor, que reuniria as funções atualmente desempenhadas pela Seae/MF, SDE/MJ e pelo Cade.

A reforma do aparelho do Estado produziu, segundo Lucia Helena Salgado (2003), dois tipos distintos de agência reguladora: “de Estado” e “de governo”. Em uma primeira etapa foram concebidas aquelas voltadas para a regulação econômica no setor de infra-estrutura (“agências de Estado”); posteriormente, as que executam as diretrizes de governo, responsáveis pela regulação social, como a ANS, a Anvisa e a ANA3. A última agência criada, a Ancine, por suas competências formais pode ser classificada como uma forma intermediária.

Na área de saúde, apesar de as agências sob supervisão do Ministério da Saúde estarem bem mais próximas do conceito de agência de governo (autarquia em sentido estrito), observa-se que existem, do ponto de vista econômico, falhas de mercado, sendo a principal a assimetria de informações entre consumidores e provedores de serviços. Do ponto de vista da saúde pública, é imperioso garantir acesso da população e qualidade dos serviços, pois se trata de um bem meritório com a presença de grupos econômicos capazes de interferir nas decisões governamentais.

A classificação legal das agências define, como critério associado a sua natureza de autarquia especial, em alguns casos, sua condição de “autoridade administrativa independente”, como é o caso da Anatel e da Anvisa. Além da Anatel, que também é expressamente dotada de “ausência de subordinação hierárquica”, a Anvisa, ANS, ANA, ANTT e Antaq têm previstas, em suas leis de criação, garantia de “independência administrativa” ou “autonomia administrativa”, ou “autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos”, além de autonomia decisória.

Segundo a classificação proposta por Salgado, as agências reguladoras no setor de infra-estrutura, como a Aneel, Anatel, ANP, Antaq e ANTT, já constituí­das, e a Anac, podem ser conceituadas, facilmente, como agências de Estado. Esses órgãos atuam na regulação de serviços públicos concedidos.

Vale lembrar que as agências reguladoras foram criadas com a função de “melhorar a governança regulatória, sinalizando o compromisso dos legisladores de não interferir no processo regulatório e tranqüilizando os investidores potenciais e efetivos quanto ao risco, por parte do Poder Concedente, de não-cumprimento dos contratos administrativos, além de reduzir o risco regulatório e os ágios sobre os mercados financeiros”, como afirmam Pires e Goldstein (2001).

O exercício de competências de governo pelas agências reguladoras, como a absorção da atividade de formulação de políticas públicas e do poder de outorgar e conceder serviços públicos, é uma impropriedade que se constata em grande parte dos casos. Em relação ao poder de outorga ou de concessão, configura-se, conforme aponta Luis Roberto Barroso4, uma delegação às agências de poder que é do próprio do Estado, ao qual cabe, na condição de titular do direito, explorar, diretamente ou mediante concessão ou permissão, os serviços públicos. A absorção da atividade de formulação de políticas se deu por omissão e desestruturação dos ministérios supervisores, não tendo previsão legal.

Entre as causas prováveis desse aumento exagerado do campo de atuação das agências estão o esvaziamento dos quadros, a falta de capacitação técnica e a omissão dos ministérios no exercício de suas competências legais. Em vista do vácuo existente, em que os ministérios não demonstravam capacidade, aptidão ou mesmo disposição para atuar em suas competências, as agências passaram não só a regular e fiscalizar o setor como a atuar na formulação de políticas públicas, sendo o ministério mero homologador da política traçada pela agência.

Essa situação evidencia a necessidade de que os ministérios sejam fortalecidos, mediante a composição de quadros técnicos especializados, sob pena de perpetuar-se, pari passu à concessão de autonomia ou independência às agências, um processo de descontrole, quando não de apropriação indevida de competências.

As agências reguladoras têm recebido, a fim de assegurar-lhes o grau de independência decisória e de objetivos, tratamento diferenciado das demais autarquias no que se refere ao processo de nomeação e demissão de seu corpo dirigente. No entanto, o que vem ocorrendo é que as entidades já criadas, via de regra a partir da transferência de setores da administração direta ou autárquica, padecem de deficiências no plano institucional e material e vícios de origem que têm impedido que cumpram seu papel regulatório e fiscalizador a contento relativamente às empresas privadas.

Quanto ao processo de escolha de seus dirigentes, são nomeados pelo presidente da República para mandatos fixos, não renováveis, após ter sua indicação aprovada pelo Senado Federal; no caso da Anatel, os mandatos são de cinco anos5, enquanto na ANP, Aneel, ANTT, Antaq, ANA e Ancine o período é de quatro anos e, na Anvisa e ANS, de três anos.

Embora as agências sejam dotadas de autonomia financeira e administrativa, foi dedicada pouca importância, em seu processo de implantação, à constituição prévia de um quadro próprio de pessoal, organizado em carreiras e habilitado ao exercício de suas funções típicas.

As agências reguladoras requerem como condição indispensável para o exercício de suas atividades um quadro técnico profissional, efetivo, qualificado e protegido de interferências. No entanto, como característica comum, destaca-se a notória deficiência de pessoal. Na ausência de quadros técnicos próprios, as agências têm-se valido de servidores requisitados de outros órgãos e de contratações temporárias por excepcional interesse público, produzindo uma situação de precariedade em seu corpo funcional. Em conseqüência disso, o atual governo deverá encaminhar ao Congresso Nacional proposição legislativa que defina: a) os cargos a ser criados, seus conteúdos atributivos, os valores e componentes de sua remuneração, em cada agência reguladora; b) o cronograma de provimento dos referidos cargos e as dotações orçamentárias destinadas, em cada exercício, a essa finalidade.

Quanto ao controle social e transparência, merece ser ressaltado, como aspecto positivo, o fato de que algumas agências dispõem de instâncias de consulta e deliberação em que têm assento representantes da sociedade. Segundo o artigo 4º da Lei 9.427, “o processo decisório que implicar afetação de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, será precedido de audiência pública convocada pela Aneel” – exemplo que, ainda que possa gerar algum tipo de influência indesejável no processo de regulação do setor, torna mais transparente ao controle social a atividade regulatória. Regra idêntica está prevista no artigo 19 da Lei 9.478 (ANP), mas não na legislação da Anatel e da Anvisa. No caso da ANS, o artigo 19 da Lei 9.984 assegura a representação inclusive dos trabalhadores na Câmara de Saúde Suplementar. E, no da Anatel, é previsto o conselho consultivo, órgão de participação institucionalizada da sociedade na agência – integrado por representantes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo e por representantes das prestadoras de serviços, dos usuários e da sociedade, todos com mandatos de três anos –, ao qual cabe opinar sobre o plano geral de outorgas, o plano geral de metas de universalização de serviços e demais políticas de telecomunicações, entre outras competências. Também a Anvisa e a ANS dispõem de conselhos consultivos, com ampla representação da sociedade.

Outro instrumento formalmente previsto são as ouvidorias, presentes na Anatel, Anvisa, ANTT, Antaq, ANS e Ancine, destinadas à manifestação dos direitos dos usuários, a receber pedidos de informações e esclarecimentos e reclamações, bem como a formular e encaminhar denúncias contra atos praticados pelas empresas do setor regulado. Características comuns às ouvidorias são a fixação de mandato e a garantia de independência, não tendo vinculação formal com a direção da agência.

Além disso, as agências reguladoras, pelo menos em tese, têm no contrato de gestão um instrumento de controle que, empregado de forma efetiva, poderia servir de contrapeso ao excesso de autonomia. Assim, por exemplo:

- A administração da Aneel será objeto de contrato de gestão, negociado e celebrado entre a diretoria e o Poder Executivo.

- A Anvisa será também regida por um contrato de gestão, negociado entre seu diretor-presidente e o ministro da Saúde, ouvidos previamente os ministros do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Fazenda. Previsão semelhante consta da lei que criou a ANS e do Decreto que rege a ANA.

Na prática, tais contratos não têm sido implementados, revelando a reduzida capacidade de controle dos ministérios sobre as agências. Parte da responsabilidade por esse quadro pode ser creditada à forma como tais contratos de gestão são referidos, não incorrendo as entidades em nenhuma penalidade em decorrência de sua inexistência. Da mesma maneira, as ouvidorias não têm atuado com o grau de independência desejado, sendo, em alguns casos, excessivamente dependentes das diretorias e estruturas formais das agências.

Com grande propriedade, Murilo Ramos (2003) afirma que o modelo de regulação adotado no Brasil não está tão próximo do adotado nos EUA quanto, à primeira vista, se possa acreditar. Segundo ele, o modelo americano de regulação setorial por agências independentes surgiu das circunstâncias concretas daquele país ao longo de mais de seis décadas, e não por alguma imposição externa estranha a sua cultura política, administrativa e jurídica. Além disso, esse modelo não nasceu de um processo político cujo fim último era enfraquecer a capacidade de intervenção do Estado sobre a economia, mas de um processo de fortalecimento da ação estatal sobre a economia contra empresas privadas que tinham se tornado excessivamente fortes.

No caso brasileiro, contudo, as agências reguladoras foram impostas “por interesses políticos e econômicos externos, capitaneados pelo Banco Mundial, e, de sua implantação em meio a apressados processos de liberalização e privatização de setores estatizados de infra-estrutura, acabaram se tornando cópias malfeitas de instituições que, na sua origem, buscavam introduzir elementos importantes de racionalidade política, técnica e administrativa nos processos estatais de regulação econômica”.

A cópia do modelo americano, assim, teria sido “malfeita” – a partir da introdução na legislação brasileira do conceito de independência política, administrativa e financeira, mas de modo inconsistente, à medida que se atribuiu às agências reguladoras a condição de “autoridade administrativa independente”, ou condições de atuação independente, o que seria incompatível com a organização administrativa constitucionalmente admitida no Brasil.

Seguindo a mesma linha, Barbosa Gomes aponta que os fatores e condições empíricas que impulsionaram o surgimento das agências reguladoras nos EUA não são os mesmos que estão conduzindo à guinada que representa para o Brasil a adoção da “nova” forma de regulação e do novo tipo de estruturação estatal que ela engendra. No Brasil, a nova regulação nasce num processo de “modernização” do Estado, para que possa, num contexto de transferência a atores privados das atividades que antes detinha a título de monopólio ou quase-monopólio, assumir o papel de normatizador e de fiscalizador.

Do mesmo modo, conclui Barbosa Gomes, que as agências brasileiras configuram uma importação de um conceito, de um formato e de um modo específico de estruturação do Estado. Faltam-lhes, todavia, “um maior rigor na delimitação de seus poderes e na compatibilização destes com os princípios constitucionais; um controle efetivo pelo Senado do processo de designação dos seus dirigentes; um controle mais eficaz de suas atuações pelo Judiciário e pelos órgãos especializados do Congresso; e, por fim, uma maior preocupação com o estabelecimento, em seu benefício, de um mínimo lastro democrático, de sorte a evitar que elas se convertam em instrumento de dominação de uma determinada tendência político-ideológica”.

A preocupação de Barbosa Gomes é, sem dúvida, relevante, pois um dos mais evidentes problemas das agências reguladoras no Brasil é seu baixo grau de accountability, seja por ausência ou insuficiência de instrumentos de controle por parte do Legislativo, seja por parte dos cidadãos e usuários dos serviços públicos regulados. As agências, dotadas de “autonomia” administrativa e financeira, tendem a confundir essa característica com a de “soberania” ou a considerar-se instituições “extragovernamentais”, que não devem satisfações à sociedade nem subordinação às políticas governamentais. Murilo Ramos (2002), por seu turno, afirma que “as agências reguladoras existentes precisam aperfeiçoar, e aperfeiçoar muito, seus mecanismos de relação com a sociedade, em especial as consultas, audiências e sessões públicas, hoje muito mais processos formais de autojustificação do que de interação constante e efetiva com indivíduos, entidades e associações que não tenham interesse econômico direto na área regulada”.

Pedro César Lima de Farias (2002) reafirma a necessidade de que as agências tenham preservada sua autonomia, mas vinculada a mecanismos de controle: “Quando se estabelece um mecanismo que possa balancear autonomia com controle, o que se quer é que as agências possam funcionar preservando seus processos decisórios de interferências indevidas, mas sem recair no modelo que se transforma num enclave burocrático, muito menos num modelo em que sejam capturadas pela lógica do setor privado”.

Conclusão
O modelo das agências reguladoras no Brasil parece o mais adequado para o exercício da função reguladora do Estado. Entretanto, carece de aperfeiçoamentos relativos à dotação de quadros próprios de pessoal e ampliação dos mecanismos de controle social.

Sem que tais aspectos sejam superados, e em curto prazo, teremos cada vez mais evidenciados, para além do déficit de legitimidade e democracia, o déficit de capacidade e os conflitos entre as agências e o Poder Executivo, e mesmo entre elas e o Poder Legislativo e setores da sociedade, tornando-se, conseqüentemente, mais frágeis e desacreditadas.

Esse processo de descredenciamento das agências, que só interessa aos agentes econômicos que vêem em sua captura o meio de perpetuarem vantagens e as “falhas de mercado” de que se beneficiam, deve ser enfrentado mediante políticas de regulação consistentes, abrangentes e, tanto quanto possível, homogêneas, a fim de que essas instituições possam ser fortalecidas, posto que não se encontra no horizonte de opções de qualquer governo, no contexto atual, promover sua pura e simples extinção e substituição por um modelo que jamais esteve estruturado para o ade­quado exercício da função reguladora.

Agências constituídas
Ministério setorial / Agência reguladora / Legislação básica

Minas e Energias:
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) - Lei 9.427, 26.12.1996

Agência Nacional do Petróleo (ANP) - Lei 9.478, 6.8.1997

Comunicação: Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) - Lei 9.472, 16.7.1997

Saúde:
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVS) - Lei 9.782, 26.1.1999

Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) - Lei 9.961, 28.1.2000

Meio Ambiente: Agência Nacional de Águas (ANA) - Lei 9.984, 17.7.2000

Transporte:
Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) - Lei 10.233, 5.6.2001

Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) - Lei 10.233, 5.6.2001

Casa Civil: Agência Nacional do Cinema (Ancine) - MP 2.219, 4.8.2001

Bibliografia
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Salgado, Lucia Helena. Agências Regulatórias na Experiência Brasileira: um Panorama do Atual Desenho Institucional (Texto para discussão nº 941). Rio de Janeiro: BNDES, 2003.

Luiz Alberto dos Santos é especialista em políticas públicas e gestão governamental (ENAP), assessorou a bancada do PT na Câmara dos Deputados. É subchefe de Coordenação da Ação Governamental da Casa Civil