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Programas focalizados e políticas universais no Brasil estão inacabados e podem desaparecer frente à tentação do modelo liberal

O governo federal prepara, com cautela, uma nova etapa do que poderia ser chamado de sua política nacional de combate à pobreza. Imagina-se que assim o seja. Isso porque o que parece em gestação é a definição de critérios e mecanismos que configurariam um programa de transferência de renda para os grupos mais desfavorecidos da sociedade. Do desenho desse programa conhecem-se alguns poucos ingredientes: ele teria o formato de uma bolsa, seria condicional, impondo contrapartidas aos beneficiários, e o valor básico do benefício seriam 50 reais. A novidade, e das mais alvissareiras, é sua cobertura, prevista para atingir perto de 10 milhões de famílias1.

Como o recorte institucional das ações compensatórias traçou raias paralelas, a solução foi promover a tão falada unificação dos programas sociais: a saber, a centralização de todos os tipos de intervenção de cunho assistencialista sob um só comando. Ou seja, desponta um tratamento que se pretende de cobertura ampla e racionalizada no atendimento aos pobres e indigentes, evitando superposições e ineficiências. Trata-se de monitorar e controlar a clientela exclusiva desse tipo de programa focalizado mediante a construção de um cadastro único dos pobres, denominado como o CPF da pobreza.

Isso nos faz recordar a proposta de um saudoso colega de tempos do IPEA, o Francisco Barreto de Oliveira (o outro), que tentou emplacar, sem sucesso, a cria­ção de um número nacional de seguridade social, identidade social ou o que o valha, comum a todos os indivíduos, para efeito de acompanhamento da sua trajetória trabalhista, securitária e assistencial. Isso existe na grande maioria das democracias ocidentais e permite agilidade na identificação de cada indivíduo, por meio do cruzamento de todas as informações que dizem respeito a sua vida socioeconômica, desde seu nascimento. Em muitos casos, facilita até a criação de um prontuário médico único, com o histórico de saúde do indivíduo. Essa idéia jamais vingou, pois suscitou viva reação por parte dos verdadeiros cidadãos, aqueles – nós – com poder de barganha político e força econômica para vetar sombras inquisidoras. O CPF permanece sendo um registro essencial para os que dispõem de cidadania financeira, mas não armazena nada além do número de identificação. Este, cruzado com os dados sigilosos da Receita Federal, permite ao Estado cumprir uma de suas funções constitucionais.

O que não é bom para os ricos seria bom para os pobres? Ou, como Simmel nos ensinou há mais de um século, a pobreza, enquanto categoria da prática que pressupõe algum tipo de intervenção reguladora, não pode fugir a métodos de classificação que ranqueiam os assistidos e forçosamente os estigmatizam? Se assim é, que pelo menos não se apresentem métodos de mensuração, identificação e acompanhamento dos pobres como inovação social. Essa base de dados, centralizada – cujo acesso, espera-se, venha a ser regulamentado antes de lançado –, vai sem dúvida alimentar excelentes análises sobre a trajetória dos pobres e excluídos, satisfazendo a voracidade por números e tipologias de todos nós cientistas sociais, ou pelo menos daqueles com lugar de proa no aparelho de Estado. Mas cadastro, centralizado ou não, é meio, não é fim. Tampouco garantia de eficiência ou eficácia.

Fica a pergunta: o governo deve promover distintas categorias de cidadania pelas práticas (regras, convenções, classificações) que institucionaliza, ou, dito de outra maneira, um número de identificação social pode ser aplicado às clientelas dos programas focalizados quando é rejeitado como regra universal? Como se vê, a polarização permanece a mesma que nos últimos meses recolocou na ordem do dia um debate velho de uma década no Brasil: focalizar na dimensão assistencial implica condenar a proteção social universal, como reza a cartilha liberal? A experiência recente do Reino Unido, que abandonou o modelo universal de bem-estar, visto como degenerativo por gerar “dependência cultural”, em prol do modelo de workfare – um novo contrato social firmado na agenda RIO (responsabilidade, inclusão e oportunidade) –, promoveu entre outras calamidades uma explosão sem precedentes da pobreza infantil, caso único na União Européia. Hoje o desafio do governo Blair é erradicar a pobreza infantil na Inglaterra até 2010.

Pelo andar da carruagem, vai-se travestindo de focalizado aquilo que poderia ser universal, bem de todos, cimento social, num país onde a cada dia que passa o que nos une é pouco mais do que a vertigem que nos vem da sensação de ter perdido o norte. Exemplo patente, o programa Fome Zero, que pretendia oferecer aos brasileiros uma política nacional de segurança alimentar, detalhada, variada, complexa, compensando na medida de suas necessidades os mais carentes, obviamente, e cuja ponta do iceberg traz à tona aquilo que o governo FHC abandonou por força das evidências: distribuição e doação de alimentos. A gente sabe, iceberg é sempre um perigo. Em que este esforço institucional seria distinto daquilo que fez o Comunidade Solidária, na sua tentativa de coordenar os programas assistenciais, ou do projeto Alvorada – que privilegiava uma intervenção territoria­lizada nas áreas de menor IDH – ou da distribuição de mais de 30 milhões de cestas de alimentos do governo FHC? Ainda não dispomos de elementos que nos permitam responder a essa pergunta. Não estamos falando de resultados, mas discutindo o rumo que causa vertigem. De fato, na continuidade que vem caracterizando a forma petista de governar no plano federal, sempre justificada pela excepcionalidade inerente à emergência, o falso contraponto focalizado versus universal parece ganhar roupa nova.

Lembrar é aprender!

Da década de 1990, duas certezas nos vêm do front das políticas sociais.

Pelo lado da inovação – patrimônio grandemente petista –, experiências municipais de combate à pobreza e contra a exclusão transformaram radicalmente o desenho dos programas compensatórios no país, ensinando que nem tudo o que é assistencial é inexoravelmente de pouca valia. A descentralização da assistência social firmada na Constituição de 1988 largou-lhes as amarras, e a redemocratização política e a participação popular fizeram das gestões municipais um laboratório de experimentação social rico de ensinamentos. O exemplo mais exitoso é, sem dúvida, o Bolsa-Escola, versão “ajustada” dos programas de garantia de renda mínima. De Brasília, ele ganhou outras prefeituras brasileiras – majoritariamente as metropolitanas, em razão de sua capacidade fiscal –, tomou de forma irresistível o Ministério da Educação ainda na gestão do professor Paulo Renato, influenciou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e acabou conquistando o mundo2.

No Brasil, o efeito demonstração foi de tal envergadura que o label bolsa, sem adesão de marqueteiros, tornou-se selo de qualidade, e trouxe credibilidade à massa falida da política assistencial brasileira. Transmutou-se no Bolsa-Alimentação, Bolsa-Renda, Bolsa-Trabalho, ou ainda nas versões menos exuberantes porque não-seculares, senão clientelistas, do Cheque-Cidadão ou do Cheque-Escola, este recém-lançado no Rio de Janeiro. Comum a todas essas modalidades, temos a opção pela transferência na forma de renda, uma novidade em matéria de política assistencial, antes marcada pelas doações in natura, e o estabelecimento de condicionalidades impostas para a manutenção do benefício.

A cada novo tipo de bolsa que surge corresponde uma clientela específica, talhada segundo a dimensão da pobreza que se pretende mitigar. Esta, a função das políticas compensatórias: atenuar carências, déficits que não podem ser compensados através dos mecanismos de distribuição universais vigentes numa dada sociedade e exigem uma transferência extra, suplementar, na forma de renda ou serviços, para aqueles que se encontram numa situação de vulnerabilidade extrema ou risco e para os quais escasseiam oportunidades. Quanto menos universal o sistema de proteção social, maiores a pobreza e a exclusão. Isso a gente também já sabe, informados pelo passivo monumental de pobreza e exclusão que nos interroga a cada esquina.

Mas, afinal, o que deu certo em Brasília3, o que surtiu tamanho efeito, num país tão carente de boas políticas sociais? Três vetores conjugados tiveram um impacto surpreendente e de grande porte: primeiro, o grau de cobertura, que atingiu cerca de 80% do público-alvo potencial (ou 26 mil famílias); segundo, o valor significativo do benefício mensal (um salário mínimo), que levou a uma redução importante do hiato de renda dos mais pobres e também do número de pobres, com rebatimentos expressivos no consumo local de bens-salários; terceiro, uma elevação do gasto social per capita nas ações de combate à pobreza, graças a uma melhor sinergia entre todos os programas e políticas sociais do Distrito Federal, cujo acesso foi estendido prioritariamente à clientela do Bolsa-Escola. Isso porque o aumento da renda das famílias pobres gerou novas demandas por parte do público-alvo. E o governo, obrigado a prover, fez funcionar de forma mais competente e azeitada a máquina pública.

Em outras palavras, o diferencial espetacular do Bolsa-Escola foram sua escala, o valor elevado do benefício, condizente com a intensidade da pobreza, equivalente a um salário mínimo, e seu efeito incremental na coordenação dos demais programas e políti­cas sociais em nível local, aumentando a eficiência do gasto e suprindo necessidades outras, igualmente prementes e incontornáveis.

Coordenação não é sinônimo de unificação. A primeira significa articular e sintonizar os diversos programas e políticas existentes para que atuem de forma interativa e complementar no atendimento e superação de um conjunto de carências e debilidades de matizes múltiplos, já que não há uma solução única para todas. Já unificação remete, como mencionamos anteriormente, a uma matriz comum na concessão e controle dos benefícios, caracterizada por sua gestão centralizada. São coisas radicalmente distintas.

Houve um sem-número de outros efeitos de monta, não menos interessantes, como o aumento da taxa de atividade e de ocupação das mulheres4, jogando por terra aquela conversa fiada de que transferir renda para a população carente gera dependência e desperdício. Até a renda familiar do trabalho aumentou ligeiramente em decorrência das condições mais favoráveis de inserção econômica e ocupacional da população beneficiada, potencializada por uma situação mais estável (previsão de uma entrada de renda regular), o que não foi verificado junto ao grupo de controle. Ou seja, em terras tupiniquins, onde o paradigma da vadiagem alimentou e justificou a exclusão social por tantas décadas, não trabalha quem não pode. E não quem não quer. Garantir renda é garantir algum nível de funcionalidade, recordando Amartya Sen, para que os indivíduos possam agir e participar minimamente numa sociedade de mercado. Para que possam exercer direitos elementares de cidadania.

Isso já sabe o pensamento neoliberal, que se apóia no paradigma do individualismo econômico: déficits monetários agudos podem levar a sérias distorções no mercado, razão pela qual, em existindo comprovação inegável de insuficiência de renda – institui-se, para tal, um rol de exigências rigorosamente controladas para elegibilidade das famílias –, justifica-se algum nível de redistribuição compensatória. Daí a multiplicação dos programas safety nets (ou mínimo social, ou manutenção de uma renda mínima), que nada mais fazem do que assegurar a regulação estática da pobreza. O Banco Mundial disseminou – quase universalizou – nos países em desenvolvimento, ao longo da década passada, programas de safety nets como forma de atenuar no curto prazo os efeitos socialmente nefastos das políticas de ajuste, que agravaram o grau de destituição e desamparo de milhões de indivíduos mundo afora.

Ora, esse modelo de mínimas sociais é o oposto da matriz do welfare, ou do bem-estar, este pautado pela universalização da proteção social, que une, de facto e no plano simbólico, todos os cidadãos através da equalização do acesso ao que poderia ser genericamente denominado necessidades básicas5. O modelo liberal de mínimas sociais tem sua lógica assentada nas “obrigações sociais de cidadania”6, o contrário da matriz dos direitos. Justificando-se no princípio dos direitos e deveres enquanto um conjunto de relações de reciprocidade entre membros de um sistema político alimentado pela lógica do mercado, esse paradigma reduz o escopo dos direitos e impõe condições aos assistidos. Sua responsabilização individual aumenta ou diminui em função da conjuntura econômica e de outros fatores externos determinantes da pobreza e da exclusão. Mesmo nos países onde prevalece o modelo da solidariedade e da inclusão (Europa continental), o mal-estar decorrente da permanência da pobreza e da amplitude dos processos de exclusão tem levado a uma polarização crescente do debate direitos versus deveres, em favor da extensão das condicionalidades. A pobreza é personalizada e seus contornos redefinidos com base em valores morais e atitudes comportamentais que implicam ativação. Isso tem ocasionado um aumento dos controles, da seletividade, das contrapartidas que resultam na aplicação de mecanismos disciplinares, refletindo um padrão de integração social distinto do modelo do bem-estar: o da inclusão compulsória, em lugar do reforço da coe­são social, da consolidação dos vínculos de solidariedade e pertencimento, indispensáveis nas sociedades capitalistas para contra-arrestar a lógica de reprodução do sistema, que se nutre da diferenciação social, das desigualdades e do esgarçamento das relações sociais.

Renda só, não basta

Outro ensinamento importante do Bolsa-Escola reside na demonstração inequívoca7 de que renda é muito bom, é indispensável, mas não é suficiente (se fosse, os índices de pobreza americanos seriam bem menores porque há um espectro amplo de programas de transferência de renda que sustentam outro maior, o Food Stamps. Lá, como não há garantia de universalização, nem vacinação é objeto de política pública). Constatou-se que a renda monetária não apresentou significância quando correlacionada ao desempenho escolar dos alunos – para melhor ou para pior. Surpresa? Só para quem não entende de educação. A avaliação feita mostrou que importa mesmo na promoção do bom desempenho escolar a qualidade da escola e dos professores. Tudo aquilo que a gente já sabe. Portanto, renda ajuda a freqüentar a escola, mobiliza a comunidade e a família, reduz a evasão escolar a zero, mas só uma oferta de ensino na quantidade e qualidade compatíveis com o que está disponível permitirá aos cidadãos – pais e filhos – honrar seu compromisso com o ensino fundamental obrigatório. E educação, como sabemos, é formação e capacitação permanentes, o degrau primeiro do tal do longlife learning, um caminho que só tem começo e deve ser trilhado muito cedo.

Em tempo: Brasília, Recife e outras iniciativas afins como Belo Horizonte, já estudadas, demonstraram que não foi preciso impor condicionalidades suplementares às famílias carentes beneficiadas pelos programas, tais como a obrigação de adultos iletrados freqüentarem cursos de alfabetização, visitas a postos de saúde etc. Ao contrário, tais demandas e outras surgiram espontaneamente à medida que aqueles antes excluídos do sistema passaram – como resultante da escolha de um incentivo adequado, e não de maneira compulsória – a integrá-lo, pressionando o Estado por mais e melhores serviços públicos. A jornada ampliada, por exemplo, foi uma exigência dos pais, ciosos de expandir as reais oportunidades de aprendizado dos filhos, já que freqüência regular à escola tornou-se a norma.

Resumindo os ensinamentos do nosso primeiro caso de sucesso, deve-se buscar um efeito redistributivo nas políticas focalizadas, o que é factível em situação não-emergencial. No caso em questão, o incentivo à escolaridade, reduzindo o custo de oportunidade do trabalho infantil e compensando os custos diretos derivados da escolarização regular das crianças, ônus significativo, quase impeditivo, para famílias trabalhadoras, contribuiu diretamente para a valorização da escola, do ensino, trouxe nova centralidade ao conjunto escolar e impôs repensar a oferta de um serviço público universal e de qualidade em nível local. Aprendemos, assim, mais uma coisa: gasto social redistributivo e investimento social têm de andar juntos, como os dois lados da mesma moeda. Como já se sabe, o efeito mais imediato da concessão do Bolsa-Escola é o aumento significativo do gasto social. Não há como escapar. A prefeitura de São Paulo tem demonstrado compreensão clara de como enfrentar essa questão com sucesso.

Universalizar para nocautear a desigualdade

O segundo caso de sucesso inquestionável nos vem pelos circuitos mais tradicionais de justiça redistributiva. Trata-se da adoção da previdência rural universal para idosos e inválidos no âmbito da chamada economia familiar (incluindo também as mulheres cônjuges como não-dependentes) e do pequeno setor formal da agricultura. Ela veio calar o parti pris de quem ainda questiona a eficácia e efetividade das políticas universais. Como bem salientam Guilherme Delgado e Cardoso Jr., responsáveis por uma rigorosa avaliação de seus impactos, o regime de universalização de atendimento, instituído na Constituição de 1988, “cumpre uma função de proteção social moderna, que é essencial à sociedade democrática”8. Como? Garantindo cobertura quase integral da população potencial, sem distinção de sexo (eqüidade de gênero), sem vinculação à capacidade individual contributiva anterior e através da unificação do valor do benefício ao piso das aposentadorias urbanas (de novo, um salário mínimo).

Os resultados são conhecidos: aumento expressivo da renda familiar dos beneficiários, reduzindo sensivelmente a pobreza e, sobretudo, promovendo um impacto redistributivo espantoso no meio rural, pouco freqüente no país, que levou a uma revitalização da economia familiar rural, com retornos indiretos indiscutíveis também na esfera da questão agrária. O pequeno comércio local do interiorzão mais abandonado do Brasil se sustenta desses recursos. Preserva ativos que poderiam ter sido expropriados, como a terra, e facilita o acesso a crédito, em razão da garantia de regularidade da renda e da credibilidade da fonte pagadora.

Mas isso a gente também já sabe. Aliás, sabemos disso tão bem que o governo estuda a concessão de uma linha de crédito especial para aposentados, por meio da Caixa Econômica Federal. Segundo entrevista do próprio presidente Lula a uma revista semanal9, “por que o trabalhador não pode ir ao banco pegar dinheiro e dar como garantia o salário, descontando a prestação da folha de pagamento? O risco do empréstimo cai e não há por que o juro ser muito alto. Vamos fazer um negócio que está em estudo para todos os aposentados brasileiros. Estamos analisando a possibilidade de abrir uma linha de crédito para que eles possam tomar até dois salários de empréstimo pagando 2% de juros ao mês”. Simultaneamente à entrevista do presidente, a imprensa nacional veiculou outras propostas do governo igualmente voltadas para a liberação de crédito para aqueles brasileiros, raros, é verdade, que dispõem de uma renda fixa e regular, os aposentados.

Ora, as propostas governamentais, ainda em debate, são contemporâneas de uma taxa Selic a 1,94% ao mês (início de agosto). Nessa mesma ocasião, uma concessionária de carros internacional anunciava, na imprensa, juros mensais de 0,99% para queimar estoques. Outras concessionárias, confortadas pelo corte do IPI oferecido pela Fazenda, julgaram que algo aproximado a 2% ao mês estava muito bom. Ou seja, de compensatório, compensatório mesmo – diferencial favorável aos deserdados –, nada, a não ser o governo se colocando à frente não do combate à pobreza, mas do combate à inadimplência, filha da estagnação econômica, da queda da renda e do empobrecimento. Ora, pobre, como a gente também já sabe, é bom pagador. Seria aceitável instituir como salvaguardas para o capital financeiro desconto compulsório em folha de salário ou no contracheque da aposentadoria, em troca de um empréstimo irrisório, em lugar de fortalecer a credibilidade (dada ex ante pela natureza e origem do benefício) e a confiança entre agentes econômicos? E pensar que a confiança é, no debate contemporâneo, o mote do crescimento econômico e do desenvolvimento de longo prazo sustentável!

Somar, em vez de excluir
Tudo o que foi dito anteriormente pretendia chamar a atenção para o que já se sabe: o aparente contraponto focalização versus universalização é um falso dilema. Programas focalizados e políticas universais são indiscutivelmente necessários e indissociáveis. Os primeiros são, por natureza, paliativos, compensatórios e, por isso mesmo, transitórios. Nesse caso, trata-se de reduzir o estoque de pessoas que vivem em condições socialmente indignas, fragilizadas, destituídas, incapacitadas de cuidar da própria vida, de empreender, de agir, aumentando suas funcionalidades para escaparem da pobreza. As políticas universais têm por meta regular o fluxo para que não haja mais gente engrossando o estoque dos destituídos. Ou seja, resistir contra o empobrecimento, o sofrimento social. São preventivas, porque atuam como um suporte constante para atenuar ou vencer vulnerabilidades e as mais variadas formas de insegurança socioeconômica. São, entretanto, mais do que isso, pois essencialmente equalizadoras das condições de vida de toda uma nação, reduzindo desigualdades sociais, territoriais. E a desigualdade – a gente também sabe – é a razão primeira da pobreza no Brasil.

Ora, como nível de emprego e grau de proteção social são os dois fatores de impacto na variação da pobreza, sem crescimento econômico e redistribuição por meio do sistema de proteção social, nada feito.

Programas focalizados ou compensatórios e políticas e programas universais, ambos fazem parte do sistema de proteção de que um país não pode abrir mão. Justamente aí reside o grande desafio: desenhar esse sistema de proteção social, que, embora de vocação universalizante, pois assentado na matriz dos direitos, continua inacabado no Brasil e pode desaparecer frente à tentação sedutora do modelo liberal tutelado compulsório de (não) fazer política social. Falar nisso é enfrentar o conflito redistributivo que deixamos esquecido e enterrado dentro de nós. Senão, vamos continuar achando que propostas simplificadoras como repassar a cada pobre do Rio de Janeiro 39 centavos mensais poderia vencer a pobreza. Nesse caso, vamos abrir um alistamento para ver quantos pobres cada um de nós pode tirar da pobreza e quem sabe ainda ganhar de brinde uma dedução no imposto de renda. Idéia quase gêmea é o “tudo por R$ 1,00” do governo do Rio de Janeiro, onde o aumento do consumo dos pobres ou quase-pobres é alinhado por baixo, com impactos regulatórios não desprezíveis no território urbano, que podem gerar novas formas de segregação espacial. Ou, na outra ponta, ouvir, impotentes, o pessoal aguerrido das secretarias municipais de assistência e ação social8, sob a coordenação da professora e secretária de Assistência Social da prefeitura de São Paulo, Aldaíza Sposati. contar, atônito e frustrado, que famílias que há tempo vêm se beneficiando de um atendimento especial, cuja cobertura se estende a todos os membros, fracassam ao ser desligadas do sistema, e acabam tendo de ser reintegradas. A generosidade de nossas servidoras municipais sugeriu um acompanhamento psicanalítico individual para entender o ininteligível. É a contaminação liberal, a despeito de nós mesmos: o fracasso aparece como individual, quando ele reflete a ausência de uma rede de proteção social de escopo amplo, perene e universal, que dê sustentabilidade para desativar a gangorra do para cima, para baixo da linha de destituição.

Uma política de transferência de renda monetária é absolutamente indispensável. É, sem dúvida, um dos pilares do arcabouço institucional de um sistema de proteção social universal e redistributivo. O território do universal e da justiça redistributiva é, por definição, do governo federal. Como isso será financiado via Orçamento, qual o papel dos fundos públicos, que mudanças terão de ser feitas no plano tributário, promovendo a progressividade, que partilha federativa é mais adequada, tudo isso será discutido e pactuado quando se definir o que se quer em matéria de proteção social. Não se trata de desenhar o possível, mas de configurar um sistema para todos os brasileiros, o que não se destaca nas prioridades mais imediatas do governo federal.

A política social não pode estar circunscrita nem se resumir a uma política de combate à pobreza. Esta é apenas parte daquela. Senão, vamos manter a gangorra. Prova de que a prioridade não está posta desta maneira é que se fala de combate à pobreza numa ponta, enquanto corre por fora a reforma tributária sem que se dê importância à matéria da maior relevância: a criação de um imposto de renda negativo, que pode ser um dos mecanismos eficientes de justiça redistributiva, favorecendo os trabalhadores pobres. Diz a Cepal que, de cada dez trabalhadores pobres, sete o são porque, mesmo ocupados, têm salário baixo, pouca escolaridade e assumem ônus elevados (despesas). Esses três fatores explicam juntos dois terços da pobreza. Proteção social pode reduzir tais ônus se estiver assentada no paradigma da redistribuição.

O presidente Ricardo Lagos, em visita recente ao Brasil, mostrou que o Chile já entendeu que é preciso mudar de rota. Falou na coesão social necessária, a ser fortalecida para ampliar a competitividade externa. Só como lembrança, países como Dinamarca, Noruega, Suécia têm coeficientes de exportação os mais altos do mundo. Não por acaso. Essa correlação já foi investigada e confirmada.

Antídoto pode virar veneno, se a dose não for adequada e, sobretudo, se o diagnóstico estiver errado. Não existe antídoto universal. Logo, multiplicar bolsas de vários tipos para clientelas específicas que serão reunidas num grande cadastro dos pobres não parece ser a direção que devemos tomar. Está na hora não de fazer mais, mas de fazer melhor. Governos locais, como o de São Paulo, mostram, com competência, a centralidade da escola no rumo da redução das desigualdades e no combate à pobreza. Ela tem revelado ser portadora de um efeito sistêmico extraordinário, que nos remove da anestesia do que o companheiro Cunca, da Fase, denomina “prático inerte”.

Por que o governo federal não universaliza o Bolsa-Escola, fazendo da transferência às famílias, por meio da escola, a pedra angular de um novo sistema de proteção, que possa dirimir desigualdades, atenuar vulnerabilidades e garantir um patamar de segurança so­cioeconômica? A proposta não é nova e tem tudo para dar certo. A escola é o lugar da educação cidadã, da educação ambiental, da educação alimentar, da inteligência coletiva, da educação contra a violência. E, sendo tempo integral – assunto que continua fora de pauta –, como deve ser, e como se programa há muito fazer, permitirá reduzir significativamente as desigualdades de gênero, ao promover mais autonomia para as mulheres em razão de um melhor equacionamento da tensão família/trabalho.

Universalizar para não impor compulsórios, não estigmatizar nem multiplicar clientelas. Como a gente já sabe.

Lena Lavinas é professora-adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da UFRJ