Cultura

Produto mais nobre dentro da cadeia audiovisual, só o cinema pode exportar, sem resistências, a marca Brasil, na tentativa de firmar o país como potência econômica e cultural da América Latina

Há menos de dois anos, poucos acreditavam na probabilidade de o PT ganhar as eleições. O Brasil parecia ser um eterno refém da cruel arquitetura de dominação estabelecida pelas elites tradicionais. A esquerda, sempre dividida, se mostrava incapaz de conquistar o poder pelas vias democráticas. Mas, lentamente, ao longo de 2002, a insatisfação e o desejo de mudança foram catalisados e transformados em votos nas urnas por um genuíno líder popular, um ex-metalúrgico que quebrou a perversa lógica do establishment. Estava reinstalada a esperança na terra gentil.

O povo do cinema recebeu com grande satisfação a vitória de Lula. Era um velho sonho da maioria dos cineastas, que sempre militaram, flertaram ou tiveram simpatias com as diferentes correntes do pensamento de esquerda. Foi através das lentes de Renato Tapajós, João Baptista de Andrade, Roberto Gervitz, entre outros, que ficaram registrados o nascimento e a história do PT. Desde a década de 1960, a partir do movimento cinemanovista, liderado pelo vulcão Glauber Rocha, o cinema nacional vem construindo um mosaico tridimensional de nossas mais profundas contradições sociais. Um quadro vivo de imagens que possibilitam um caminho de reflexão sobre nossa natureza cultural.

Há quarenta anos, enfrentando altos e baixos, num processo ciclotímico, o cinema brasileiro vem tentando dialogar com a sociedade ao revelar, representar, denunciar e apresentar os polivalentes aspectos das realidades do país. Ao contrário dos meios de comunicação de massa, comprometidos com os poderosos interesses da indústria de consumo, o cinema nacional tem cara de povo, de gente de verdade, tem riqueza, miséria e glamour, tem classe média, alta, miserável, neurótica, alegre e triste, tem a cara de nossa complexa e difusa identidade cultural. E tem também uma cara industrial, voltada para um emergente mercado cinematográfico, hoje dominado pelo filme norte-americano.

Foi neste contexto, uma romântica expectativa do povo do cinema por suas afinidades naturais com o PT, que entramos em 2003. Afinal, tínhamos feito a lição de casa nos dois últimos anos da era FHC. O terceiro e o quarto Congresso Brasileiro de Cinema, a revitalização das carcomidas entidades de classe, a repolitização dos principais agentes do setor e nossa maior conquista: a criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), com poderes e autonomia para fomentar, regular e fiscalizar a atividade audio­visual do país. A sensação era “agora é só botar a máquina para funcionar”, mas rapidamente a realidade se impôs. De um lado, o governo, concentrado nas aflitivas e urgentes questões socioeconômicas, deixou para tratar o mote cinema um pouco mais tarde; de outro, a classe cinematográfica, sem uma notória liderança interna, rachou quanto aos destinos da agência. Logo depois veio o conflito com a Secom, que teve uma exagerada exposição de mídia sobre os patrocínios culturais das empresas estatais. Não foi um bom começo, houve um estremecimento de ambas as partes. Mas agora, já navegando em mares menos turbulentos, um novo horizonte começa a se delinear.

A Casa Civil vem dando sinais concretos de que o cinema brasileiro é estratégico para os planos políticos desta gestão. O PT tem propagado abertamente que um dos quatro macroobjetivos do mandato Lula é a inserção internacional, com a redefinição e a reconstrução da soberania nacional. O cinema pode ser um dos carros-chefe desta empreitada, porque, além da auto-estima que gera dentro da sociedade, atravessa as fronteiras, levando a outros países nossa cultura e nossos produtos.

Nos anos 1930, o presidente Franklin D. Roosevelt convocou seu staff para uma reunião e declarou: “Onde entram os filmes americanos, vendemos mais automóveis americanos, vendemos mais vitrolas americanas”. E assim foi feito. O american way of life conquistou corações e mentes em todo o planeta. E com isso produtos e serviços norte-americanos tornaram-se mundialmente conhecidos e consumidos. É essa a natureza estratégica do cinema, de um lado eminentemente cultural e formador de opinião e, de outro lado, industrial e gerador de negócios.

Essa equação tem de ser entendida dentro de nossa frágil conjuntura. O cinema traz prestígio e é de longe o produto mais nobre da cadeia audiovisual. Contudo, economicamente representa muito pouco, comparado às duas gigantes indústrias da TV e da publicidade. Sua rede de produção é pulverizada em pequenas produtoras independentes, não capitalizadas, dependendo totalmente de uma política pública de Estado. Ao lado dos dois grandes Golias, o cinema nacional é um mirrado Davi. A televisão, um meio voltado para si mesmo e às aspirações de uma sociedade cada vez mais materialista, é um importante instrumento de integração na­cional, projeto vitorioso da ditadura militar, mas restrito ao consumo interno. A publicidade brasileira, uma das maio­res do mundo, fecha o círculo, mas seu negócio é vender ou criar o desejo de comprar naqueles que podem ou não. Só o cinema pode exportar, sem resistências, a marca Brasil, na tentativa de firmar o país como potência econômica e cultural da América Latina.

Os desafios

Sem políticas de Estado e fortes subsídios não há cinema em nenhum país do mundo. Todas as indústrias cinematográficas nacionais são fortemente protegidas por seus governos. É assim em toda a Europa e até nos EUA, a única indústria de produção de escala, mas também muito bem blindada por seu governo. É claro que nosso objetivo final são a auto-sustentabilidade e a transformação do cinema em um bom negócio para os empreendedores privados. Mas até chegarmos a essa situação teremos de intervir (esta palavra pode causar calafrios) corajosamente no mercado audiovisual nacional. Um mercado, ainda hoje, desconhecido do próprio governo, sem controle ou fiscalização, vivendo há treze anos (desde o falecimento da Embrafilme) um laissez-faire bem aproveitado pelo produto norte-americano. É quase inacreditável, mas não há dados confiáveis de mercado, número certo de salas no país, quantos ingressos são realmente vendidos, o verdadeiro faturamento do circuito exibidor, nada sobre o home video, pouco sobre a produção publicitária, e por aí vai. Pois é a partir do conhecimento e da compreensão da economia audiovisual brasileira que poderemos auferir os recursos necessários para o fomento da cadeia produtiva, os conhecidos três elos sistêmicos: produção, distribuição e exibição. Taxando apropriadamente o produto estrangeiro, teremos os recursos para implantar as políticas de desenvolvimento do cinema brasileiro, sem precisar “tirar o leite das crianças”, uma vez que parte da imprensa neoliberal e antinacionalista continua investindo na surrada caricatura do cineasta que “mama nas tetas do Estado”.

Exibição

O elo da exibição exige duas ações concomitantes. Numa ponta, investimentos para uma forte expansão do circuito tradicional, aumentado a oferta de salas de cinema. Dizem que hoje temos em torno de 1.800 salas. É um número muito baixo, uma sala para cada 100 mil habitantes. Nos EUA, para uma população só 55% maior que a nossa, existem mais de 29 mil salas, uma sala para cada 9.600 pessoas.

Nosso mercado de exibição tem potencial para crescer nos grandes e médios centros urbanos atendendo a uma população que vive na periferia, com ascendente poder aquisitivo e pouquíssimas opções de lazer. Assim, o preço dos ingressos poderia baixar e o cinema voltar a ser uma das grandes formas de entretenimento das emergentes classes C e D brasileiras.

Ações nessa direção significam investimentos em infra-estrutura por meio de linhas de crédito do BNDES, por exemplo. O cinema norte-americano também tem muito a lucrar com essa proposta, porque haverá um mercado ainda maior para seus produtos. A verdade é que políticas de desenvolvimento do cinema brasileiro não significam ações xenófobas de exclusão do produto importado, mas sim a criação de um quadro de isonomia competitiva entre o nosso cinema e o estrangeiro.

A outra vertente custa muito menos e depende exclusivamente de políticas do Ministério da Cultura. O Minc e o Ministério da Educação podem orquestrar uma sinergia com as esferas estaduais e municipais para desenvolver amplos programas de difusão cinematográfica, inserindo o cinema no currículo escolar e expondo o filme brasileiro nos espaços públicos já existentes, criando um efetivo circuito alternativo, com reflexos na formação de público e na inclusão social.

Distribuição

No que tange à distribuição, os desafios não são menores. Se por meio da política de incentivos fiscais, que comemoram agora uma década de existência, se acreditava que o mercado atendesse às necessidades da distribuição do filme nacional, hoje não há mais ilusões. Sem o apoio do Estado não sairemos do gueto em que estamos.

Nos últimos anos o cinema brasileiro ocupou um percentual abaixo dos 10% do marketing share. Neste ano chega excepcionalmente a 20%, em função dos bem-sucedidos blockbusters nacio­nais (Cidade de Deus, Deus é Brasileiro, Carandiru e Lisbela e o Prisioneiro), mas esse quadro otimista não deve se repetir em 2004.

O que vivemos hoje é que os filmes que têm lançamento garantido pelas distribuidoras (majors) norte-americanas e pela parceria com a televisão (Globofilmes) conseguem a necessária visibilidade para chegar ao público, enquanto o resto da turma fica restrito e limitado a um esquálido circuito. Mas as majors não dão conta de absorver a produção atual, e o grande prejudicado é o filme médio, que sem o apoio em cópias, mídia e promoção tem seu potencial de público achatado e é canibalizado num pequeno circuito cult (Espaço Unibanco, Botafogo etc.).

Esse gargalo só será resolvido pela criação de uma grande distribuidora nacional, ou de várias fortes, inicialmente subsidiada pelo Estado e trabalhando em parceria com a TV. Assim, poderá atrair o blockbuster nacional e os melhores profissionais de mercado com o compromisso de alavancar o conjunto da produção nacional. Se o problema da distribuição não for atacado de frente, o cinema nacional continuará a gerar cada vez mais lucros para as empresas norte-americanas em troca dos 11% de renúncia fiscal que elas reinvestem em nossos filmes (artigo 3º da Lei do Audiovisual).


Produção

Finalmente, o primeiro elo da cadeia produtiva. É daqui que emana a nossa força, nossa razão de ser. Tudo o que foi dito anteriormente não teria o menor sentido se não existisse o filme brasileiro, se não tivéssemos essa teimosa vocação em produzir nossas próprias imagens. Não haveria conflito com a hegemonia norte-americana e vivería­mos contentes em ser um país consumidor das películas estrangeiras.

Mas o brasileiro, além de dócil, é também inquieto, rebelde e apaixonado pela produção de imagens. Somos um país audiovisual. Até o olhar da população humilde é mais sofisticado aqui que em qualquer outro lugar, graças à televisão. Temos hoje uma vigorosa produção de vídeos, curtas, documentá­rios acontecendo em todos os cantos do continente. O cinema está novamente em lua-de-mel com a sociedade. Há dez anos, estigmatizado pelo som de baixa qualidade e o excesso de peitos e nádegas na telona, o cinema brasileiro andava em baixa.

Nossos filmes readquiriram prestígio entre o público. Por isso é fundamental que o fomento não sofra interrupção. As leis de incentivo fiscal devem ser aperfeiçoadas, e não extintas. Entendemos que o governo quer mudar os paradigmas da relação entre iniciativa privada, Estado e produtor cultural. Bem-vindos os diversos fundos, mais democráticos e transparentes, e todas as outras configurações de fomento. O importante é preservar um amplo leque de formas e maneiras de financiar um filme. Cinema custa muito caro e sua engenharia financeira é um conjunto de fontes de recursos, parcerias e co-produções. A redução das fontes pode causar estrangulamento da produção, com reflexos na diversidade que hoje temos.

Portanto, é fundamental que o Conselho Superior de Cinema, órgão formulador da política audiovisual do país, seja empossado e inicie seus trabalhos o mais breve possível. É também fundamental que a Ancine, em sua capacidade operacional, seja profundamente avaliada, com o objetivo de fortalecê-la e dotá-la de instrumentos legais, econômicos e cérebros para a aplicação das futuras políticas. Esperemos que a agência, uma vez estacionada no Minc, se reporte diretamente ao ministro da Cultura, evitando disputas e zonas de sombreamentos com a Secretaria do Audiovisual.

Nada disso é tarefa fácil nem deixará de sofrer forte resistência jurídica e política dos interesses constituídos. Mas um governo popular e de esquerda, que defende a indústria nacional, que almeja a soberania e pretende reformar as estruturas do Estado, tem em suas mãos uma oportunidade histórica para pautar os caminhos do desenvolvimento do cinema brasileiro.

Toni Venturi é diretor de O Velho, a História de Luiz Carlos Prestes, Latitude Zero e Cabra-Cega. Terminou em setembro seu mandato como presidente da Associação Paulista de Cineastas (Apaci)